"Passam os anos mas ninguém me tira da cabeça que o antigo árbitro Francisco Silva, único a sofrer um castigo de irradiação no futebol português (cadê os outros?, perguntariam os nossos irmãos brasileiros...), foi, no seu tempo, uma espécie de pastilha elástica para o sistema dirigente do futebol de então. Ou seja, primeiro mastigado, depois deitado fora. Literalmente sem apelo nem agravo.
Francisco Silva, para os menos recordados, árbitro e chefe de família algarvio, foi apanhado numa célebre noite fria de Penafiel, na sua cabina do Estádio 25 de Abril, ainda antes de entrar em cena para dirigir um Penafiel-Belenenses. Em cima da mesa, Francisco Silva tinha um envelope e dentro do envelope estaria um cheque.
O 25 de Abril de Francisco Silva foi-lhe tudo menos gratificante, além de nada democrático, pois os então dirigentes da sua classe irromperam-lhe pela cabina e condenaram-no sumariamente. Se tinha um cheque, Francisco Silva fora corrupto. Sem direito a uma palavra. Sem defesa possível.
Ninguém me tira da cabeça: como a pastilha elástica, era chegada a hora de deitar fora Francisco Silva. O bode expiatório que o próprio sistema implorava ver encontrado para que tudo pudesse continuar na mesma no mundo da arbitragem: as observações, as classificações, as internacionalizações, as promoções e despromoções, enfim, o regabofe em que o futebol português chegou a parecer tornar-se muito forte nos últimos 25 anos.
Vem este exemplo de pastilha elástica (coisa que nos vêm à cabeça, sabe-se lá porquê...) a propósito de cabinas, túneis e de verdadeiras pastilhas elásticas, tão do agrado, entre outros, de figuras como o velho treinador do Manchester United, sir Alex Ferguson, ou do ainda recente treinador do Benfica, armado cavaleiro logo na sua primeira época na Luz, que dá pelo nome de Jorge Jesus. Tal como o sábio treinador escocês tão campeão pelos ingleses, também o inconstante treinador português do tão campeão clube encarnado de Lisboa não dispensa a pastilha.
Elástica das boas, daquelas densas, cheias de goma, tipo Gorila ou mesmo Super-Gorila, capaz de se ver esticada sem partir, eis a favorita de Jesus, que parece gostar delas resistentes, e passa os 90 minutos de um jogo (mais o respectivo tempo de compensação e não de descontos, como muitas vezes por aí se diz e escreve) a mascá-las com a experiência e o empenho de um autêntico cowboy.
Tem, porém, o treinador do Benfica o curioso cuidado de tirar a pastilha da boca para se atirar em campo aberto, por exemplo, à confusão de uns empurrões e muitos impropérios com adversários - de calções, fato de treino ou mesmo engravatados - no final de um qualquer jogo muito emotivo como foi o que a sua equipa disputou com o Marítimo.
Inequivocamente contra um total desrespeito pelas pastilhas elásticas parece realmente ser Jorge Jesus, nada dado a mastigá-las e a deitá-las fora, como se viu depois do triste espectáculo em pleno relvado das águias, após o apito final do tal encontro Benfica, 2 - Marítimo, 1.
Logo que acalmaram os ânimos daquela súbita investida de personagens de ambas as cores, em torno do árbitro ou de adversários, foi possível descortinar a decisão do treinador encarnado de recolocar a pastilha no seu devido lugar, passando-a de novo - num acto não muito higiénico, é verdade, mas sempre muito dedicado - da mão direita para a boca.
Acto pouco higiénico mas honesto, esse, de quem preza a pastilha elástica e a considera companheira inseparável nas horas boas e nas horas más, e é incapaz de a ver transformada numa espécie de Francisco Silva das chicletes.
Noutros tempos, a pastilha elástica no futebol tinha, pois, um significado bem mais de acordo com a sua própria origem. Era mesmo só para mastigar e deitar fora. Nestes tempos, a muitos nem era dada a oportunidade de terem a dignidade da pastilha elástica de Jorge Jesus. Depois de usados - como o bom do antigo e pobre árbitro algarvio - corriam mesmo o risco de ser deitados fora, o que alguns até mereciam dada a sua apaixonada dedicação a causas pouco nobres.
Nesses tempos, aliás, a pastilha elástica era realmente um hino à metáfora do lado mais escuro do futebol, quando se vivia, ao mesmo tempo, o tempo de grandes confusões nos túneis de alguns estádios, criadas por quem hoje tem a distinta lata de querer atribuir a sua autoria a responsáveis da Luz como Jorge Jesus e Rui Costa, lamentavelmente exaltados em dois ou três jogos episódios nada edificantes, é certo, na sua luta por uma verdade que nem sempre sabem construir e muito menos defender. Mas hoje, pelo menos todos podemos ver às claras a pastilha na boca de Jesus ser mastigada e nem sempre deitada fora, e a irreflexão (sempre criticável) ser obra do acaso e não de um sistema.
Mas é a vida. Continuo, porém, a ter pena dos que jamais saberão perder. Porquê? Saberão esses alguma vez ganhar?"
João Bonzinho, in A Bola