sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Rigoletto e Sparafucile

"Ninguém sabe se veio ou se não veio. Se é autêntico ou um produto da nossa imaginação. A verdade é que a sombra do vigilante pairou sobre o palco como uma maldição de tempos coevos. Eram olhos sobre olhos. Um olhar a tomar conta de todos os olhares. Neves Moreira tremeu como se, de repente, se esquecesse da sua fala. Não deixou, por esse motivo, de ser incompetente. Mas tremeu. Habituando a que sejam permitidas todas as malfeitorias ordenadas pelo Madaleno, sentiu sobre si, e sobre os seus actos, uma atenção inusitada. Inusitada porque isenta. Repito: tenha ela sido um facto ou não. E as pedras e os calhaus??? Ficaram nos bolsos. E as bolas de golfe??? Ficaram guardadas nas lancheiras à mistura com côdeas ressessas e tripas enfarinhadas frias.

Houve quem, por isso, tivesse perdido a viagem. Outros, mais afoitos, debandaram na busca ansiosa de um viaduto sem guarda, cosidos com as esquinas, saco de seixos ao ombro como se carregassem o cadáver de Gilda, filha de Rigoletto. Ah! Porque neste teatro do grotesco também existe um Sparafucile, assassino desta vez assassinado com um golpe nos glúteos. Tudo mentira, tudo falso, tudo ópera, tudo palhaçada! O saco de seixos é, desta vez, atirado às águas barrentas do rio: só a ponte do velho Eiffel ficou sem guarda. O Madaleno faz de Duque de Mântua. Leva jeito no seu jeito de nenhum jeito ter. Troca olhinhos com Madalena e faz-se desinteressado da peça que vai chegando aos fim. É também a ele que vigiam, se é que vigiam. Mantém-se distante, quase mudo. Tem medo! Sim, ele também tem medo. Eras começam a sumir-se no tempo que de eras vem. Sempre foi um poltrão disfarçado de artista. E remói a inveja. Não queria ter o papel de Duque. Queria ser Rigoletto - nasceu para bobo da corte."


Afonso de Melo, in O Benfica

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