Manifesto anti-autogolos


"Sabe que jogador esteve mais perto de marcar pelo Brasil na estreia na Copa América frente à Costa Rica? Se respondeu Vini Jr, errou. Rodrygo? Não. Endrick? Também não. Foi o central costarriquenho Quirós, num desvio infeliz, salvo no limite pelo companheiro de equipa Sequeira.
O exemplo da Copa América, entretanto, serve apenas de gancho para o Euro, onde, como muita gente vem notando, há chuva de autogolos - são sete até ao fim da primeira fase. No Euro passado foram 11. No Mundial de 2018 chegámos a uma dúzia. Assim como é nas estradas mais rápidas e movimentadas que os acidentes são mais comuns, num futebol cada vez mais a alta velocidade e em que cada metro quadrado do terreno é disputado por duas, quatro, às vezes, seis pernas, os autogolos vêm aumentando.
Mas não se pretende discutir aqui o crescimento dos autogolos - pretende-se discutir o seu desaparecimento. Ou, mais bem explicado, o desaparecimento do seu registo. A quem agrada o registo de um golo como autogolo? A absolutamente ninguém. Logo...
Conforme a classificação do economista italiano Carlo Cipolla em Le Leggi Fondamentali della Stupiditá Umana, os inteligentes conseguem, pelas suas ações, criar vantagens para si e para os outros. Os bandidos só vantagens para si. Os crédulos só vantagens para os outros. E os estúpidos desvantagens para toda a gente - quem teve a decisão de registar um golo como autogolo cabe, com todos os méritos, neste grupo.
O registo do autogolo não agrada ao defesa infeliz, que preferia evitar essa mancha na carreira. Não interessa ao último atacante a tocar na bola, a quem dava jeito somar mais um golo no currículo. Irrita o público que quer festejar o golo de um dos seus. E ainda incomoda árbitros, designers gráficos e jornalistas, obrigados, na ficha de jogo, a acrescentar ao evento um arreliador «p.b.», iniciais de própria baliza, entre parêntesis.
Ah, mas seria justo atribuir o segundo golo português com a Turquia a Cancelo? Para começar, esse autogolo faz parte da categoria dos excepcionais, a maioria resulta de um desvio mínimo, e, depois, a pergunta certa é: prejudicaria alguém? A não ser um eventual inimigo figadal do atleta do Barcelona ou um espírito muito chato e muito burocrata, não. E pouparia Samet Akaydin de um constrangimento para a eternidade.
Um constrangimento que persegue, por exemplo, a seleção de Trindade e Tobago, que em mundiais tem mais autogolos registados, um, do que golos marcados, zero. E se naquele Estados Unidos-Colômbia em 1994, o golo fosse atribuído ao americano John Harkes e não a Andrés Escobar, quem sabe se não teríamos poupado uma vida."

Pontapé de Estugarda ‘Blackout’ com as luzes acesas


"Dois dias de contactos com ucranianos em Kiev e na Alemanha fizeram-me perceber o motivo de eles terem surpreendido o mundo pela forma como resistiram à invasão russa

As mensagens demoravam muito a chegar, mas acreditei que fosse por causa do excesso de trabalho ou de solicitações que a impedissem de responder em tempo útil. Depois percebi que era por causa dos blackouts, os cortes de energia que duram em média 10 horas na capital da Ucrânia. Sem energia não há internet, logo, as comunicações de civis podem tornar-se um inferno. Mas um povo em guerra aprende a encontrar soluções. Ser diligente, ter uma atitude proativa e muita dedicação é uma forma de contornar os obstáculos.
Conseguir organizar encontros com cidadãos ucranianos vítimas da ocupação russa em hotéis diferentes de Estugarda separados por mais de 30 quilómetros, em dia de jogo ao final da tarde e tudo a partir de Kiev pode ser uma dor de cabeça logística, mas nos dois dias de contactos com a Alina, Olina e os dois Oleksandr (uma das assessoras da federação lembrou-me, a brincar, que todos os homens de chamam assim) deu para entender o porquê desta gente ter surpreendido o mundo pela forma como resistiram aos ataques em escala da Rússia em fevereiro de 2022. São ágeis, não têm redundâncias, cumpridores e decididos em passar uma mensagem. Porque sabem desde há muito tempo que esta guerra se vence através da comunicação. Decorreram mais de dois anos desde que o mundo não falava de outra coisa e portanto é normal o assunto deixar as primeiras fileiras mediáticas. Os bombardeamentos deixam de ser abertura de jornal porque se tornam o novo normal e só será verdadeira notícia quando um dos lados cair.
A Ucrânia encontrou no Euro 2024 um palco para recolocar o foco no seu território: trouxe uma bancada destruída do estádio de Kharkiv para expor em várias cidades alemãs (começou em Munique, passou para Dusseldorf e irá deslocá-la para Berlim, palco da final), fez campanha nos estádios e tentou mitigar a dor de muitas vítimas diretas e indiretas de uma guerra que parece não ter fim e cuja indefinição e indiferença serão porventura um inimigo tão feroz quanto o invasor. O pior blackout é aquele que se dá com as luzes acesas."