sexta-feira, 10 de maio de 2024

O duplo reflexo de Otamendi


"Argentino não foi líder fora de campo porque não o deixaram e no relvado por culpa própria

Otamendi veio a público dizer que só não deu mais vezes a cara nos maus momentos esta época porque o departamento de comunicação do Benfica não lho permitiu. Com isso, foi elogiado pelos adeptos por ter colocado a nu toda a fragilidade da estratégia comunicacional do clube, evidente durante a temporada, quando deixou crescer a aura negativa em torno de Roger Schmidt e, por arrasto, dos seus futebolistas. Provavelmente, o capitão dos encarnados sentiu que podia ter dado um ou dois murros na mesa, tocado a reunir e ajudado a contribuir para melhorar a situação. Talvez. Nunca o saberemos.
No entanto, se o argentino se sentiu reduzido no seu papel de capitão no discurso, já não se conseguiu assumir como tal por culpa própria em campo. Não que não tenha gritado, corrido ou cortado jogadas perigosas, mas porque não foi o exemplo de serenidade e controlo que alguém com a sua experiência e a jogar na sua posição deveria ser. Otamendi, que estava em final de contrato e renovou por duas temporadas, até junho de 2025, ficou para ver António Silva – que ainda assim também realizou uma época aquém das expetativas – ficar com a imagem de adulto na sala. Foram inúmeras as vezes em que se precipitou na abordagem, tentou o carrinho ou o desarme, em vez de apostar na contenção e aguardar pela decisão do rival. Veja-se o golo de Gyokeres em Alvalade na Taça de Portugal e muitos outros exemplos, até em encontros recentes.
Se o campeão do mundo não pode ser encarado como único réu da má temporada, igualmente há algum tempo que também não deveria ser olhado como indiscutível, nem que seja por poder estar a tapar a progressão de jogadores com qualidade como Morato ou Tomás Araújo. Em teoria, de acordo com a forma como o Benfica quer jogar, aparentemente com ou sem Schmidt, uma linha defensiva com maior capacidade na construção e mais rápida, com privilégio para o jovem português, teria mais condições para sair da pressão contrária, e jogar mais subida com maior controlo da profundidade. Ao mesmo tempo, tudo parece apontar para que António Silva e Morato sejam negociáveis, a fim de que João Neves não o seja já, porém a SAD não pode continuar a acreditar que seja Otamendi a continuar a segurar as pontas.
Muito ainda está por saber sobre o mercado do Benfica, e os problemas estão longe de cingir-se apenas à defesa. Não só a época ainda não acabou como a indecisão em torno de Schmidt persiste – e o despedimento, enquanto não surgir alguém inequívoco para substituir o alemão, só poderá ser mau ato de gestão, ainda mais com tamanhos custos associados – e só se poderá avançar a partir do traçar de rumo.
À luz do que sabemos, que é o que Rui Costa disse a certa altura sobre a forma como queria ver o Benfica jogar, os reforços terão de ser cirúrgicos. E rápidos a fechar. Com tudo o que se passou na temporada passada, esperar pelo verão para atacar as laterais e eventualmente o tal ponta de lança eficaz parece a espera de Godot. Com os riscos que acarreta. O mesmo se pode dizer da comunicação. Nada irá mudar?"

A mania de começar a construir pelo telhado


"Neste País iniciam-se os projetos pelo fim em vez de sustentados pela base

Quem me conhece, sabe que uma das máximas que sigo diariamente é que «não se começa a construir a casa pelo telhado». Mas neste País, em muitas áreas, é exatamente isso que acontece, iniciam-se os projetos pelo fim em vez de sustentados pela base.
Quem me conhece, sabe bem que desde sempre defendi, e já o escrevi neste espaço, que enquanto não chegar a profissionalização à Liga de Futebol Feminino não conseguiremos olhar a fundo para os problemas e dificuldades que os clubes e a própria competição enfrentam.
Vem isto a propósito do incidente divulgado aquando da deslocação da equipa do Sporting à Madeira, para jogar com o Marítimo. O episódio revelado nas redes sociais pelas jogadoras do Sporting relativamente às péssimas condições do balneário que encontraram, é exemplo do que digo. Para os responsáveis federativos, é mais importante ter VAR e dizer que somos a primeira liga a ter VAR do que proporcionar condições dignas às jogadoras. Como por exemplo um balneário com água quente, com portas e janelas, com espaço para se equiparem. E, já agora, limpo, sem insetos e sem estar degradado. É o mínimo.
Infelizmente há muito boa gente que continua a não pensar assim. Que uma equipa de uma I Liga feminina pode trabalhar em condições que já nem as equipas dos distritais admitem. Só com a profissionalização da liga conseguiremos impor regras obrigatórias para que as equipas cumpram para participar. E é tão simples quanto isto: se não cumprem, não podem participar. Uma equipa A feminina, que joga na divisão máxima de futebol, tem de ser tratada com o mesmo respeito e as mesmas condições que os homens de uma equipa A masculina. Mas continuamos a dar condições inapropriadas e lamentáveis às nossas jogadoras. É por isso que, no mês em que se celebra o Dia do Trabalhador e também o Dia da Mulher, nunca é demais apelar e lutar pela igualdade de condições de trabalho das jogadoras. Existe uma desigualdade a nível de condições de trabalho muito grande, como se percebeu pelo péssimo exemplo que vimos do balneário do Marítimo, que - infelizmente - não é caso único. Esse foi tornado público porque as jogadoras tiveram a coragem, e bem, de o revelar, mas há muitos outros, noutros clubes, que não são dignos de primeira divisão. Não há é coragem de o denunciar. O que é pena.

PS - Mónica Jorge, diretora executiva da FPF para o futebol feminino, disse ontem no podcast Admira-te: «Estamos no caminho certo da evolução para o perfume do futebol [feminino] português ser dos melhores a nível internacional». Sobre a profissionalização da Liga, zero, nem uma palavra. O que também é pena."

Villas-Boas já errou


"Apelar ao bom senso e à elevação não é, seguramente, o melhor caminho para convencer o presidente da SAD a renunciar ao cargo

O presidente do FC Porto, André Villas-Boas, tomou posse, terça-feira, com a legitimidade da esmagadora votação de 80,3 por cento e de tudo o que isso representa, também, para quem foi derrotado. Quer, como se percebe, tomar conta o mais depressa possível da SAD e, para que isso aconteça, só precisa que partam aqueles que lá estão. Mas, pelo visto, não está fácil.
O ex-presidente do clube e ainda presidente da SAD, aquele que com um gesto poderia ter evitado tudo o que se passou na famosa, pelos piores motivos, assembleia geral das agressões, insultos e coação, o maior responsável por se ter chegado na sociedade desportiva a «uma situação limite», nas palavras de Villas-Boas, não quer de lá sair. Até parece que está difícil aceitar o resultado das eleições.
Villas-Boas ainda agora começou e já está a errar. Compreende-se, está na primavera das funções de dirigente, talvez prefira evitar confrontação mais forte numa altura em que precisa de zelar pela união e de não ferir o espírito das viúvas de quem está, com relutância, a deixar do clube.
Apelar ao bom senso e considerar a renúncia um ato nobre que elevaria os ainda administradores e presidente da SAD, porém, é tão óbvio como inocente. É difícil, também temos de reconhecer, saber qual o melhor caminho para tirar já da SAD aqueles que os sócios não querem que lá estejam.
O ex-presidente do clube e ainda presidente da SAD argumenta que não sai pelos interesses do FC Porto, que se sacrifica ao conforto da tribuna presidencial, onde poderia estar ao lado dos amigos, para estar no banco de suplentes e ajudar a equipa. Pode ser comovente para os mais sensíveis ou para os que andam distraídos há mais de 42 anos. É inútil lembrar quem está agarrado como lapa ao poder que os sócios consideram, esmagadoramente, que os interesses dos dragões estão mais bem salvaguardados com Villas-Boas, ou perguntar porque só agora se sacrifica a estar no banco de suplentes se considera que é lá que mais ajuda a equipa. Para quem gozava dos louros de usar da mais fina ironia, a piada faz-se sozinha. Talvez seja difícil, porém, encontrar alguém que lhe encontre graça. 
Villas-Boas lamentou que o FC Porto, nesta transição, não seja um exemplo, como foram os «rivais mais diretos». Também não valerá a pena ir por aí contra alguém cujo comportamento só denuncia o desrespeito pela vontade de quem votou.
Somos todos mais aquilo que fazemos mais vezes do que aquilo que dizemos mais ou menos vezes. E o que está a fazer o ex-presidente do clube e ainda presidente da SAD enquadra-se na dignidade de outros comportamentos que já testemunhámos e de que ninguém terá saudade.
Villas-Boas prometeu um FC Porto moderno, organizado, arrojado, estruturado, transparente e financeiramente sustentável. Não se sabe, ainda, como lá chegará, mas os sócios deixaram bem claro por onde não querem que vá. E provavelmente ninguém levaria a mal se o presidente do FC Porto citasse o poema Cântico Negro de José Régio para dizer «só sei que não vou por aí»."

Nuno Paralvas, in A Bola

‘Can you tell me where my country lies?’


"Isaac Newell foi o mais argentino dos ingleses. Abriu um colégio em Rosário e comprou uma bola.

Isaac Newell nasceu no dia 24 de abril de 1853, Em Strood, condado de Kent. E, no entanto, é argentino como poucos. Podia ouvir, não se desse o caso sempre incomodativo de ter morrido cedo, com 54 anos, em 1907, os Genesis perguntarem: «Can you tell me where my country lies?/said the unifaun to his true love’s eyes/It lies with me!’ cried the Queen of Maybe/– for her merchandise, he traded in his prize». O toque economicista da Rainha do Talvez perde-se, na sua biografia, pela verdade de ter sido um lídimo professor do Colegio Comercial Anglo Argentino, que aliás fundou, na cidade de Rosário, Argentina. A pergunta, no entanto faz sentido porque ele acabou por já não saber ao certo a que país pertencer por inteiro, se é que alguém se deixa pertencer por inteiro por um país.
Com apenas 16 anos e uma carta de apresentação do pai para, ao que se consta, um velho companheiro de estroina que se instalara em Rosário, um tal de William Wheelwright que era de muito pouca estima da Mrs. Newell mãe, Isaac embarcou num cargueiro saído de Southampton e tratou de usar e abusar da generosidade do fraternal amigo paterno, um industrial rico das áreas naval e ferroviária, indo viver para um palacete que lhe foi posto à disposição e assumindo um emprego bem remunerado na Central Argentine Railway. Ou seja, aqui já pode entrar o sentido do negócio da Queen of Maybe: era um bom partido e não tardou a ser caçado por uma moçoila britânica de bom porte, cara rosada e glúteos abundantes, a calipígia Anna Margaret Jockinsen que lhe deu, de imediato, um filho para alimentar, batizado muito argentinamente de Claudio Lorenza.
Estudou também o jovem Isaac e tornou-se professor. Juntamente com a esposa, e financiado pela vasta fortuna do padrinho Wheelwright, abriu o tal Colegio Comercial que de comercial tinha pouco já que tratou de abrir portas a tudo quanto era rapaziada pobretana da zona, algo que se deve enquadrar numa vertente bem generosa da alma de Newell. Contudo, o seu feito mais glorioso acabou por ensombrar a fundação do estabelecimento de ensino: ganhou fama por ter comprado uma bola de futebol, de couro, das autênticas, a um escocês chamado George Burton, alegrando por completo o pequeno mundo dos adolescentes de Rosário que passavam mais tempo aos pontapés no redondo objeto do que propriamente na gramática inglesa. «Citizens of Hope & Glory/Time goes by – it’s ‘the time of your life’», ouço na memória a voz de Peter Gabriel, e não trago para aqui os Genesis só por trazer, fiquem sabendo que a sua génese tem também uma certa aura curricular já que se formaram como banda musical na Charterhouse School, Godalming, Surrey, embora muito posteriormente aos factos entretanto descritos, no ano de 1967.
Pouca bola para tanto aluno, pensou sabiamente Isaac quando decidiu sabiamente abrir com Burton uma firma de importação de bolas de futebol vindas lá de «where he country lies» diretamente para Rosário. Seguiu-se a sua obra grandiosa de desenhar um campo de futebol com todos os requisitos dentro da propriedade do colégio algo que não tardou a provocar outra génese, a do Club Atletico Newell’s School. Foi como tascar fogo em campo de palha seca. Clube atrai clube na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias, diria outro Isaac, o Newton. No dia 6 de maio de 1899, os fedelhos do Newell’s School entram em campo para disputarem uma acesa partida contra o seu recém-nascido e logo grande rival, o Central Argentine Railway Athletic Club. Algum inglês mais reservado, clássico como uma patilha tipo suíça, amante do críquete e enojado com este novo jogo popularucho, terá sussurrado para com os seus botões: «…Selling england by the pound». Mas nada a fazer que o fogo já era um incêndio. Hoje, o Club Atlético Newell’s Old Boys, fundado em 1903 pelo seu filho Claudio, orgulha-se do seu mentor ao ponto de os ‘hinchas’ levarem para os campos tarjas com o seu nome e com a sua figura: «Carajo!». De forma mesquinha, e por se terem oferecido para jogar uma partida de beneficência num abrigo para leprosos, o Hospital Carrasco, os inimigos trataram de lhes colocar o apodo desagradável: ‘Los Leprosos’. Isaac partiu cedo de um mundo que aprendera a adorar. Doente, ainda assistiu a muitas manifestações de carinho de gente que o considera como verdadeiro pai do futebol argentino. Não, não vendeu a Inglaterra por uma Libra! Levou a Inglaterra para Rosário consigo e deixou lá uma das marcas indeléveis do seu país de nascença. Quanto muito vendeu-a por uma bola. Eu continuo a ouvir, lá ao fundo: «‘Old man dies!’ The note he left was signed ‘Old Father Thames’/– it seems he’s drowned;/selling england by the pound»."