terça-feira, 12 de abril de 2022

Anfield no limite e sem limites


"Quando a 3 de Março de 2006, juntamente com dois amigos, apanhei comboio com destino ao Porto, desconhecia que embarcava na viagem mais marcante da minha vida.
O destino final era Liverpool e conduzia-nos a incontrolável vontade de ver o Benfica em Anfield Road, uma meca para qualquer adepto de futebol. Eram os quartos de final da Champions, "apenas" contra o campeão da europa em título.
À distância destes 16 anos, 5 dias de antecedência (o jogo foi a 8 de Março) parecem muito para a tarefa, não fosse o facto de termos partido sem bilhetes para o jogo e sem sítio para dormir. O plano era simples: resolver tudo quando chegássemos a Liverpool, mesmo que a chegada fosse pelas 23h00. Em suma, uma loucura.
Quis o destino começar a sorrir-nos ainda no aeroporto Sá Carneiro, antes do embarque para Liverpool. Uma senhora perdida do marido, a precisar de ajuda, foi o mote para a criação de uma ligação especial com a Wendy e o Stephen, um casal que para além de nos ter feito um "roteiro" de Liverpool (como evoluiu o acesso aos dados desde então), acabou por nos dar boleia para a cidade.
Daí a terem-nos convidado a ficar em casa deles durante a nossa estada foi um passo natural. Agradecendo a hospitalidade dessa noite, acabámos por encontrar um hotel simpático no dia seguinte e dedicar-nos a tentar obter bilhetes.
Com a manhã veio a constatação do óbvio: bilhetes esgotados há meses. Alternativa? Percorrer a cidade em busca de quem nos vendesse os ingressos (e como andámos e procurámos) e a romaria diária até ao estádio, na esperança de que a sorte nos continuasse a guiar.
Começou aí a nascer uma amizade com o "gateman" (o guarda do portão de Anfield) e um respeito mútuo com o chefe de segurança de Anfield, convergindo tudo para que no dia do jogo, ainda sem bilhetes e em puro "stress", proporcionassem a oportunidade de chegar à fala com aquele que era, segundo eles, "a única pessoa do Clube que podia resolver o nosso problema". Bryce Morrisson de seu nome, penso que secretário-geral do Liverpool à data, que me recebeu com uma arrogância que ainda hoje me faz sorrir e confirmando os avisos dos nossos interlocutores.
Quando saí do gabinete com os ingressos no bolso, após uma conversa de almanaque não recomendável para este espaço, a reação de quem me esperava (os amigos da viagem e os novos de Liverpool) foi de pura alegria numa "roda de abraços" que espantava quem ali passava. Porque acima da rivalidade, surgiu o respeito de uma paixão saudável pelo jogo.
Daí ao The Arkles, um pub em "Anfield Road" de onde só saímos para entrar no estádio, foi caminhar nas nuvens. No pub, partilhar histórias, emoções e sorridos durante sete horas naquele mesmo local (até atrás do bar), foi o corolário para uma aventura de quem nunca desistiu, mesmo perante a escassa probabilidade de conseguir ver o jogo no estádio. Uma apoteose de quem sente o dever cumprido, depois de tantos obstáculos.
No estádio, o golo sublime do Simão só podia ser ultrapassado pelo golo do Piccoli Miccoli, que bem à nossa frente nos fez atingir um estado de quase levitação … Como que a dançar por cima dos nossos adeptos… Uma alegria que só quem ali estava sabe a que me refiro. A ovação que os adeptos do Liverpool prestaram à nossa equipa, após terem cantado o "You Will Never Walk Alone" fica gravada na memória como uma das mais belas histórias de orgulho benfiquista.
Meses depois, um dos meus parceiros de viagem morreu. "Apenas" o meu melhor amigo de infância, ironicamente jornalista do Record, André Romeiras de seu nome, o ser humano que conheci com mais capacidade para gerar empatia nas pessoas. E que legado deixou…
Quando voltei a Liverpool (para ver o Benfica contra o Everton, em 2010), fui a Anfield visitar os amigos e agradecer o momento mágico ali vivido. Descobri que o gateman e o chefe de segurança estavam reformados e que Bryce Morrisson tinha morrido repentinamente. Fui também ao pub e estava a decorrer um velório de alguém, mas depois de dizer ao que íamos, fomos gentilmente convidados a comer e beber.
Apesar do embate, e a vida teve de continuar, cá como em Liverpool, recordo que quase todos nos chamaram de loucos por ir com tamanha fé. A maioria disse-nos ser ainda mais difícil conseguirmos ver o jogo no estádio do que o Benfica vencer a partida.
Existe algo que se mantém vivo e actual: não desistimos, fomos dedicados e premiados por isso. Sorte? Sim, mas fizemos por merecê-la. Tal como o fez a equipa em campo em 2006, que mesmo sem talento por aí além (com honrosas exceções), teve rigor e muita dedicação ao jogo, sendo também premiada por ter acreditado e deixado tudo em campo.
Aos jogadores do Benfica que entrarem Quarta-feira em campo, desejo que honrem quem tanto sacrifica (e sacrificou) de forma natural para os apoiar e dar-lhes todas as condições para deixarem as pessoas felizes. E que acreditem que é mesmo possível e que depende sobretudo deles mesmos.
Creio que os jogadores do Benfica (e não só) estão algo desfasados do esforço que muitos fazem para que nada lhes falte. Falta-lhes sentir os adeptos, perceberem que para quem enverga o manto e representa o Benfica não é aceitável menos do que fazerem tudo o que puderem. Tudo até ao limite!
Os adeptos querem resultados, mas exigem que não deixem nada por fazer. Uma entrega no limite e uma crença sem limites é o que precisamos desde logo no terreno de Anfield.
Como dizia o André: não tenhas medo de ser feliz!
Porque no Benfica, dentro ou fora de campo, não vencer nunca pode ser encarado ou aceite como algo natural."

Liga à beira da irrelevância


"Portugal, um país pequeno na sua extensão territorial mas enorme na sua ambição, tem exportando ao longo destes últimos anos não só imensos jogadores, mas também muitos treinadores e dirigentes, posicionando-se claramente como um dos principais motores do futebol internacional. No entanto, apesar da proliferação do número de portugueses a brilhar além-fronteiras, temos sido incapazes de exportar o campeonato nacional.
Perante o novo formato da Champions League, que entrará em vigor já na temporada 2024/2025, com mais equipas, mais jogos e mais receitas, temos de ser proativos, procurando soluções alternativas que permitam às equipas portuguesas ser mais competitivas a nível internacional. Não nos podemos agarrar a modelos anacrónicos ou desistir de aspirar sempre a mais, aceitando a perspectiva de permanecer na cauda de um futebol europeu cada vez mais disputado a duas velocidades. Quando se é pequeno em dimensão económica no mercado do qual fazemos parte, temos de compensar e ser gigantes na ambição mas também na inovação.
Face à necessidade de reequilibrar a distribuição de jogos entre os campeonatos nacionais e as competições internacionais, porque não analisar um novo modelo onde o campeonato se divide em duas fases - uma primeira com as 18 equipas e uma segunda fase com dois grupos distintos (um para o apuramento do campeão e outro para decidir quem descerá de divisão)?
Este novo modelo permitiria dar lugar a desafios mais competitivos (os três grandes disputariam três jogos entre si ao longo de toda a temporada), acrescentando valor tanto a clubes, como aos jogadores e também aos adeptos, garantindo um aumento nas receitas televisivas graças ao maior número de jogos com interesse. As equipas portuguesas apuradas para as competições europeias teriam assim menos compromissos nacionais, tendo então mais tempo para se concentrarem na Europa, o que as tornaria realmente mais competitivas.
Os responsáveis do futebol nacional não podem aguardar, impávidos e serenos, incapazes de ver para lá das fronteiras do próprio país. Se queremos competir na Europa, não podemos ser complacentes, ignorando as mutações constantes do futebol internacional enquanto aguardamos que os tubarões tomem todas as decisões por nós. Chegou a hora de ousar ver para lá da espuma dos dias e encontrar um novo modelo para o nosso futebol."

A troca de chuteiras por patins


"Livramento começou pelo futebol, mas dispensou as chuteiras para calçar os patins, um jogador ímpar no hóquei

António José Parreira Livramento mudou-se ainda novo para Lisboa e acabaria por viver no bairro de Benfica, onde viria a cruzar-se com o treinador Torcato Ferreira, que era orientador das escolas de jogadores de futebol no Clube Futebol Benfica.
Torcato viu-o jogar muito novo, por volta dos 10 anos, e desafiou-o a entrar nos rinques do hóquei em patins. Nos juniores do Sport Lisboa e Benfica o seu talento começava a chamar a atenção. Em 1960, foi chamado pela primeira vez à seleção nacional de juniores e conquistou o campeonato europeu, um feito muito importante para impulsionar a sua carreira de 14 épocas ao serviço do Clube.
Nessa altura, com 17 anos, foi um dos quatro benfiquistas selecionados de forma imediata: 'Já na fase final da preparação Jorge e Livramento foram considerados indispensáveis na seleção, e o acerto da escolha ficou bem provado com as magníficas exibições realizadas por ambos, no decorrer do Campeonato em que Portugal arrebatou brilhantemente o título a Espanha', lê-se na revista O Benfica Ilustrado de Novembro de 1960.
Livramento foi considerado o melhor marcador do Campeonato com 6 golos marcados nos jogos contra França, Bélgica e Holanda: 'Franzino, imberbe, toneladas de habilidades, uma revelação de todo o tamanho, e temos Livramento', relatava uma notícia do jornal O Benfica de 20 de Outubro de 1960.
Considerado por todos os críticos, jogadores e público como o melhor jogador do Campeonato da Europa de Juniores, os elogios imortalizaram-se nas páginas dos jornais: 'Um jovem com talento invulgar para praticar hóquei em patins. Desde as fintas desconcertantes até ao seu auto-sentido de bem jogar, tudo nele cheira ao jogador especial'.
Depois dessa grande conquista europeia, a jovem promessa do Clube viu a sua carreira ascender de uma forma rápida. O seu nome foi escolhido pelo selecionador nacional António Raio, para a equipa de seniores: 'Chamado a jogar contra França e Espanha, António Livramento fê-lo de maneira a confirmar as suas excelentes qualidades para a prática do hóquei em patins, defendendo com brilho a equipa das quinas e dando razão ao selecionador nacional sobre a sua chamada à equipa de todos nós', noticiou o jornal O Benfica de 10 de Novembro de 1960, que revelou ainda que estes foram os primeiros voos internacionais deste jovem.
Para saber mais sobre António Livramento, visite a área 2 - Joias do Ecletismo, no Museu Benfica - Cosme Damião."

Cláudia Paiva, in O Benfica

Darwinismo


"O Darwinismo é uma teoria científica criada pelo naturalista britânico Charles Darwin que explica a evolução das espécies com base em dois conceitos fundamentais: a ancestralidade comum e a seleção natural.

Não é logicamente desse darwinismo que aqui tratamos mas sim de um outro: o de Darwin Nuñez, avançado do Benfica que este fim de semana fez o seu terceiro hat-trick no campeonato. Aproveitando o trocadilho e o paralelo com a teoria do naturalista, diria que a ancestralidade comum está na história e no peso da camisola que veste o jovem avançado uruguaio, chama-se mística. Já a seleção natural sempre presente nas competições de alto nível, que, em certa medida, são cruéis e implacáveis como a natureza no seu estado puro, é aquilo que faz de Darwin um dos melhores e mais prometedores avançados da atualidade e o jogador mais valioso da Liga, neste momento. Se o estatuto podia ser repartido com Díaz, após a saída do colombiano do F. C. Porto para o Liverpool, a posição cimeira é indiscutivelmente do uruguaio. É evidente que se ninguém é feliz sozinho, como diz a música, não é menos verdade que ninguém marca golos sozinho e o sucesso de Darwin e os 24 golos em 24 jogos tem muito a ver com a qualidade das assistências como vimos este sábado, com Taarabt, por duas vezes, e João Mário, uma.
A partir daqui está criado um problema para a administração do Benfica: com uma cláusula de 160 milhões não faltarão propostas vindas dos maiores clubes europeus pelo jovem talento. Só o libertar pelo valor da cláusula ou aceitar um valor abaixo desta ainda que muito significativo será a questão. Mas não deixa de ser um problema positivo.
Darwin, mais uma vez decisivo, com um hat-trick.
Mais um jogo decidido para o F. C. Porto com um penálti, no mínimo, duvidoso."

Engraxar!!!


"Nenhum outro clube no mundo tem esta relação com os árbitros. Uma história de amor e cumplicidade.
A subserviência à frutaria das Antas é total."

Continua a macacada


"Fernando Madureira, dirigente do Canelas e líder da claque do FC Porto “Super Dragões”, foi suspenso por quatro meses e meio por ter violado três vezes uma suspensão inicial de 23 dias, que não cumpriu. Além desta suspensão, existe ainda outra que o proíbe de entrar em estádios durante cinco meses, aplicada pela Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto (APCVD).
Para estupefação de todos, Fernando Madureira tem vindo a marcar presença nas bancadas dos estádios, como se nada se passasse. Seja em jogos da Liga 3, seja em jogos da Liga Bwin ou seja em jogos da seleção nacional, lá está ele, sem que nada nem ninguém o impeça de tal. A justiça fecha os olhos e ignora o assunto e a federação, promíscua e conivente, até lhe fornece bilhetes de borla.
Recorde-se que em 2017, após o Benfica ter exigido uma clarificação sobre a relação da federação com a claque formada por Fernando Madureira, esta esclareceu que não havia formado “um grupo organizado de adeptos" e que condenava “de forma inequívoca toda e qualquer tentativa de instrumentalização da seleção nacional”.
O absurdo da situação é que após este comunicado, o apoio “oficioso” intensificou-se e, mais recentemente, nos jogos para o play-off do mundial no Qatar, veio a saber-se que a federação tinha disponibilizado 200 bilhetes a Fernando Madureira para distribuir pela sua claque “oficiosa”. Por mera coincidência, parte dos bilhetes acabaram a circular no mercado negro e vendidos a preços proibitivos. Os Lamborghinis e Porsches não são de graça e não é com ordenados mínimos declarados que certamente se ficará rico.
É absolutamente vergonhoso o conluio desta instituição com elementos dúbios que lesam todo o desporto português e o próprio Estado. Vivemos num país sem rei nem roque onde quem é criminoso sai impune e beneficiado com o manifesto apoio de quem rege o desporto nacional.
A Federação Portuguesa de Futebol está podre nos seus alicerces e necessita urgentemente de uma reforma nos seus orgãos federativos. Só através de uma limpeza profunda poderá voltar a existir isenção, neutralidade e justiça."

Desporto: os esqueletos no armário


"No passado dia 6 de Abril comemorou-se o Dia Internacional do Desporto ao Serviço do Desenvolvimento e da Paz. Uma data instituída pela ONU e determinada pela primeira edição dos Jogos Olímpicos da era moderna em 1896 e realizados em Atenas.
Uma comemoração mais do que necessária num tempo em que o desporto é, ele próprio, atingido pela guerra. Num tempo em que o desporto é usado como arma de arremesso para combater essa mesma guerra. Cabe-nos, a nós, reflectir sobre a eficácia destas comemorações e sobre as várias e diferentes campanhas de sensibilização que são lançadas utilizando o desporto como meio. Entre nós, e das últimas, recordamo-nos da campanha «Violência Zero», promovida pela Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto (lançada a 17 de abril de 2019), assim como da campanha «Start to Talk» desenvolvida pelo IPDJ entre o final de 2018 e o final de 2020 para prevenir e responder ao abuso sexual de crianças e jovens no desporto. Cabe-nos, a nós, reflectir não só sobre a eficácia (resultado) destas comemorações mas também sobre a sua eficiência (processo). Ele é as «virtudes desportivas», ele é os «valores no desporto», ele é «as boas práticas no desporto», ele é a «ética no desporto»… e o que resulta de tudo isto? Já em 1985 Melo de Carvalho (1) nos dizia que “é evidente que estas campanhas não terão qualquer consequência prática, a não ser dar satisfação à «boa consciência» dos dirigentes políticos e calar as críticas mais acérrimas (…)”.
Mas regressemos à paz, à guerra e ao desporto. Num momento em que a FIFA, a UEFA, o COI e inúmeras federações internacionais retiram a Rússia e a Bielorrússia das competições internacionais, num momento em que os ministros do desporto da União Europeia e de outros 11 países - Austrália, Canadá, Coreia do Sul, Estados Unidos, Islândia, Japão, Liechtenstein, Noruega, Nova Zelândia, Reino Unido e Suíça -, validaram todas as sanções aplicadas a desportistas, clubes ou seleções que representem a Rússia e Bielorrússia, o desporto foi colocado no mapa geostratégico da política internacional deixando de ser «uma guerra por meios pacíficos», excluindo-se a derrota como «morte simbólica» neste substituto do conflito armado entre países e passando a ser instrumento da própria guerra.
Se nos estatutos da FIFA, nos estatutos da UEFA e na Carta Olímpica se vislumbra um suporte jurídico que permita a aplicação destas sanções, não é menos certo que nos mesmos também são plasmados princípios de neutralidade. Mas esta neutralidade cai por terra com a aplicação dessas sanções. É excelente pensarmos a quatro dimensões mas de nada serve se agirmos apenas a três dimensões. O desporto neutro foi uma bandeira agitada ao vento por certos ideais e durante muito tempo mas nunca o foi na realidade. O mote já tinha sido dado há muito e socorremo-nos de novo de Melo de Carvalho quando nos dizia que era “absolutamente necessário liquidar essa velha visão tecnocrática do desporto que afirma que entre os dois (desporto e política) não há qualquer relação, pretendendo fazer daquele uma «ilha» de pureza (considerando que a política é sempre «suja»).” E foi reforçado uns anos mais tarde quando Gustavo Pires (2) falando de Gestão do Desporto nos dizia que o interesse das pessoas por estes processos ficava-se “a dever não só ao seu valor económico como também à sua dimensão política.” E rematava afirmando que neste domínio, “a utilização do desporto como um dos instrumentos da política tem vindo a acentuar-se de uma forma cada vez mais acentuada, desde os anos sessenta.”
Nestes tempos conturbados propalaram-se inúmeros e diferentes ‘clichés’, banalizaram-se conceitos… O desporto é uma ferramenta que fortalece os laços sociais, promove o desenvolvimento sustentável, fomenta a solidariedade e o respeito… O desporto une e reúne, o desporto favorece e incrementa a aproximação e o bom relacionamento entre os povos… O desporto, para além da manutenção da paz, encontra-se imbuído de valores como o ‘fair-play’, a cooperação, a disciplina, a confiança mútua, a superação, o diálogo, a fraternidade… Instaladas num politicamente correcto, estas expressões vulgarizaram-se, revelando-se perigosas como artefactos de uma narrativa única, manipuladora.
Recorreu-se à trégua da guerra no Natal de 1914, na Bélgica, em que soldados alemães e britânicos abandonaram as trincheiras para se defrontarem num jogo de futebol, exemplificando-se assim como o futebol pode interromper uma guerra e gerar momentos de paz. Evocou-se o exemplo do «jogo da morte», entre os ucranianos do Start e os alemães do Flakelf em 1942, e em que, segundo se consta, ao intervalo, no balneário, os jogadores do Start de Kiev foram visitados por um oficial da Gestapo que lhes recomendou perderem o jogo sob pena de perderem a vida – certo é que a equipa ucraniana derrotou os alemães por 5 a 3, que oito jogadores foram detidos pelos nazis, e que um deles foi assassinado após interrogatório dos invasores e outros três foram executados num campo de concentração. Trouxe-se o facto de, em 2018, as duas Coreias competirem sob a mesma bandeira nos J. O. de Inverno (já o tinham feito em Sidney 2000, Atenas 2004 e Turim 2006) em hóquei no gelo…
No entanto ninguém se lembrou das duas partidas entre as selecções de futebol de El Salvador e Honduras, em 1969, e que foram o pontapé inicial para um conflito fora das quatro linhas. Foram quatro dias de batalhas até que a Organização dos Estados Americanos conseguisse negociar uma trégua. No campo desportivo, a guerra foi decidida numa terceira partida, em território neutro, que os salvadorenhos venceram por 3-2. Derrotada saiu a população anónima: entre salvadorenhos e hondurenhos, os números apontam para mais de dois mil mortos. Também se olvidou o encontro de futebol entre o Dínamo de Zagreb e o Estrela Vermelha de Belgrado em 1990 (117 polícias feridos, além de 39 adeptos do Estrela Vermelha e 37 do Dínamo) e que marcou o início dos combates pela independência da Croácia. E por que motivo não se trouxeram estes factos à colação? Porque o desporto também tem esqueletos no armário...
Caiu o pano e, definitivamente, temos de considerar o desporto como uma actividade não-neutral, não apolítica. Em 2004, um Catedrático em Ciências do Desporto, na área de Pedagogia do Desporto – Pedro Sarmento (3) – dizia-nos que o desporto “é um instrumento da política e é fácil constatar como tem sido usado por políticos, ao serviço de ideologias ou de regimes, que se revêem politicamente nos feitos desportivos, servindo estes como orientações individuais e institucionais”. Hoje em dia é o próprio Presidente do COP, José Manuel Constantino («Público», 05.03.2022), a dizer-nos que política e desporto “nunca deixaram de estar misturados. Toda a história do desporto está contaminada por aquilo que é o seu enquadramento político.”
Há demasiadas campanhas de sensibilização contra a violência no desporto, a favor do fair-play no mesmo, sobra a ética no desporto, sobre a prevenção e o combate ao ‘bullying’ no desporto… mas atente-se que a pedagogia é sempre ignorada. E por que motivos? Porque essas campanhas, elas próprias, encontram-se dentro do politicamente correcto, fazem parte do próprio sistema. Actualmente o desporto tem mais a ver com política e com economia do que com educação. Criou-se o mito da formação moral pelo desporto ou da construção do carácter através do mesmo... Pois vivamos com ele e vamos cantando e rindo!
E terminamos com as palavras de Antonino Pereira e de Rui Proença Garcia (4): “Qualquer desvio axiológico é percebido e combatido mais rapidamente no desporto do que em qualquer outra área da vida humana. Tal ocorre porque o desporto é observado como um oásis no deserto axiológico da sociedade. Nesta atividade não há lugar para a neutralidade axiológica. É a lei do tudo-ou-nada. Não há lugar neste agir para o mais ou menos. A ética é um absoluto ou, por outras palavras, um imperativo categórico.” Saibamos interpretá-las!"