""Um dia descobri que o Vasco Barreto escrevia no mundo da net. E nos transformava a todos em personagens a sua prosa"
O lote 484 da Avenida Cidade de Luanda pertencia ao Ministério da Justiça. Era habitado por juízes e representantes do Ministério Público. Magistrados a sério, quase todos eles, nada desta palhaçada de garotos (e sobretudo fedelhas) que vomitam sentenças à revelia dos códigos, numa prepotência insuportável e antidemocrática, fazendo fazer o seu poder infelizmente incontrolado, o desses prostitutos dos jornais e televisões que vendem a dignidade num negócio escabroso que troca o segredo de justiça por uma simpática biografia publicada nas páginas às quais se vendem.
Aos domingos de manhã, os juízes do prédio para onde fui morar a partir de 1975, ignoravam os processos, vestiam calções e desciam para o estádio de relva que crescia na parte sul do lote 484 e jogavam connosco, adolescentes, um futebol de rua que há muitos anos deixou de existir. De certa forma, abdicavam, durante uma ou duas horas, das sua poses de beca para serem garotos outra vez, correndo atrás de uma bola, essa mágica senhora das paixões. Tivemos um Ministro da Justiça guarda-redes, o dr. Laborinho Lúcio, imponente na forma como aproveitava a sua altura para controlar as bolas altas; um ponta-direita de pés de belbutina, que ainda por cima jogara a sério, no Beira-Mar e tudo, o dr. Arlindo; um defesa-central arranca-pinheiros, ainda que com um joelho meio desfeito, o dr. Samagaio; um médio centro de visão periférica e passes concretos, o dr. Pipa; um matemático fininho de jogo comedido, o dr. Atanásio; um amante do futebol recortado, adorador de dribles, aos quais ele chamava de ‘crochet’, o dr. Álvaro, pai do meu querido e desaparecido Justino Pamplona com o qual fiz a promessa de escrevermos um livro a duas mãos, promessa que ele não cumpriu ao deixar-se morrer à revelia do amor que tinha pelas noites.
Entre mais novos e mais velhos, pais e filhos às vezes, as pelejas eram rijas e as derrotas eram tidas como frustrantes. Eu vivia na ambição de marcar golos o mais originais possíveis, de bicicleta, de moinho, de longe num pontapé de três dedos à maneira do Éder, Patada Atómica, e desprezava tudo o que não fossem movimentos de ataque, ao primeiro toque, à ‘ingalesa’, como gostava de dizer. Pedia que chovesse, queria a relva escorregadia, fazia questão de regressar a casa cheio de lama como se estivesse estado a pisar a ‘glorious mud’ dos campos de futebol para lá da Mancha.
Um dia, nesse mundo infinito da internet, descobri que o Vasco Barreto escrevia. Pensei: «Saiu-se das cascas, o Vasquinho!». Era bem mais novo do que eu. E do que a geração que praticava futebol britânico, ora em desafios contra o prédio dos militares, logo em frente, ora contra a Vila de Catió – recheada de craques como o Facadas, na baliza, o Lizé, da patada mais atómica do que o Éder, do Brasil de 82, o Janjan, o Paulo Conde, o Berkmaeier, o Paleta e por aí fora. O irmão do Vasco, o David, era dos nossos: tinha uns pés enormes e umas fintas curtas, baralhadas. Já não era futebol do domingo. Era futebol sem doutores, às vezes no relvado aos solavancos do Vale do Silêncio, onde nasceu o clube Os Cordeiros do Vale, às vezes no cimento do Maracangalha, sobre a Drivimpe, campo que só servia os propósitos dos que jogavam futebol de merda, tão desprezível como futebol de cinco. Comecei a ler: «Há duas décadas, os oito ou nove anos que o A. leva de avanço valiam muito mais do que agora. Era um tempo marcado pelas canções de Paul Simon, Camarate e uma febre incipiente de escrita, que deixou muitos de nós em delírio. O A de que falava o Vasco não me era estranho, pelo contrário. Encontrei-me nele. «Do grupo, o meu preferido era A. Comecei a gostar dele dentro das quatro linhas. Temperamental e com aqueles olhos claros e melenas à revolucionário, parecia mais um jogador italiano e tinha até uma camisola da Juventus, o que era uma afronta ao estilo de futebol que grupo idolatrava. Detalhes. A. era, sobretudo, justo e correto. Em jogos que juntavam miúdos de 10 anos e adolescentes de 17 e 18, o abuso da força era uma constante, da carga de ombro ao pontapé vingativo, passando pela simples ameaça. A., que era dos mais fortes entre os mais velhos, nunca tratou mal a canalha e estas coisas ficam gravadas, agigantando-se com o passar do tempo. Como se não bastasse, de noite, quando ainda só ficávamos pelas imediações do prédio, A., regressando da cidade, trajando a preto e branco, já com toda a competência do boémio e com aquele andar naturalmente cambaleante ainda mais marcado, juntava-se a nós e demorava-se em relatos. Os bares ainda nos eram desconhecidos e ele tomava ares de mensageiro de outros mundos. Muitos anos depois, é reconfortante saber que ele ainda anda por aí a respirar futebol, quando já ninguém joga à ‘ingalesa’, a começar pelos próprios ingleses». Os joelhos falharam-nos, a nós, os ‘ingaleses’ da praceta, André e Vasco Pipa, Luís Cantante, Nuno e Rui Veloso, Rebordão, José Manel Mesquita. Tornou-se mais fácil jogar contra os magistrados. Mesmo sabendo que, se aparecesse a polícia, eles eram os primeiros a fugir para dentro do prédio que era o seu castelo."