"Se bem me lembro, desde que me conheço sempre convivi com jogadores de futebol: em criança e rapaz, no Estádio das Salésias, com a veemência de quem neles via a elite dos meus sonhos e dos meus mais calorosos sentimentos; já adulto e como dirigente do Belenenses e estudioso do “fenómeno desportivo”, consciencializando que um clube não se refaz com os discursos e as arengas de alguns oportunistas, mas acima do mais com os desempenhos gloriosos dos seus atletas, fruto de uma indispensável gestão sapiente e criteriosa; hoje, tendo a certeza que o calor (o sentimento) penetra mais fundo do que a luz (a razão), no entanto só há histórias de sucesso, com trabalho, competência e liderança, onde sentimento e razão se encontram integrais e em colaboração permanente. O atual presidente do S.L.Benfica e antigo futebolista, Rui Costa, foi, entre os profissionais portugueses desta modalidade (e eu vejo futebol, com assiduidade, desde 1939) um dos mais dotados intérpretes (refiro-me a portugueses tão-só) de um futebol pensado, racionalizado, com presunção magistral. Antes dele, conheci outros: o Mariano Amaro, do Belenenses; o Pinga e o Hernâni, do F.C.Porto, o José Travassos, do Sporting, o Coluna e o Toni do S.L.Benfica e o Rocha (o Rochinha, como lhe chamavam) da Associação Académica de Coimbra. Depois, com as características deste friso de intelectuais que venho de apresentar, é que surgiu o Rui Costa. Intelectuais? É evidente: para mim, só alguém que sabe pensar interpreta o futebol como eles (incluindo o Rui Costa) o interpretavam. Nenhum deles tinha a rapidez, a espontaneidade, a velocidade do Albano, do Bentes, do António Simões; nem a elegância do José Augusto, do José Águas, do Artur Jorge, do dr. António Oliveira (F.C.Porto e Sporting); nem a força e a certeza no remate do Fernando Peyroteo, do Araújo, do Eusébio, do Matateu e do Fernando Gomes (F.C.Porto) – mas ensinavam, com a bola nos pés, que no futebol também há o sentimento da medida e das proporções, em poucas palavras: que o futebol é ciência também. A propósito do Fernando Peyroteo: por que se esquece, demasiadas vezes, que este possante rematador marcou 694 golos, nos 432 encontros em que participou?... Há sempre aquela resposta muito apressada: “O futebol era outro”. Se assim é, daqui a 100 anos, o futebol é outro necessariamente e portanto o que o Cristiano Ronaldo genialmente conseguiu… não vale nada!
Estou certo que no outro mundo o Sr. José Maria Pedroto (que tanto gostava de ouvir-me porque, dizia-me ele: “é que o meu amigo diz diferente”), com a sua probidade meticulosa, aprova esta minha afirmação: já era tempo de um antigo (e famoso) jogador de futebol ser, de facto e de direito, o presidente de um Clube, como o Sport Lisboa e Benfica. O meu querido Amigo, Jorge Jesus, já disse o mesmo. Ele sabe que a teoria não é prática, quero eu dizer: que, sem a prática, a teoria não transforma. Ou seja, numa ação, há uma relação mediata da teoria com a prática. Um exemplo: só quando os agentes sociais encarnam uma determinada teoria, uma revolução é possível. Portanto, para mim, a prática é mais importante do que a teoria e a teoria só é válida, quando é a teoria de uma determinada prática. Mas, tudo isto, sem esquecer o papel orientador da teoria. Jogadores, como o Rui Costa foi, inundavam de inteligência os campos de futebol e não só da labareda vivaz do sentimento clubista. Sim, é verdade que o ser humano é mais emoção do que razão, mas não é menos certo que se notava, no seu futebol, uma original inteligência. Ainda hoje, se pudesse voltar aos 20 ou aos 30 anos de idade, ele teria lugar, sem muitas dúvidas, na seleção nacional.
E uma pergunta levanto, imediatamente: E por ter sido um grande jogador de futebol tem as características necessárias a um grande dirigente desportivo? Pode ter, ou pode não ter. De facto, a primeira qualidade de um líder é esta: ser pessoa! Ou seja, ser um exemplo de humanidade. Quero eu dizer então que o líder não tem defeitos? Todos temos defeitos. Lembram-se das palavras de Jesus Cristo, quando meia dúzia de hipócritas pretendiam lapidar a mulher adúltera? “De todos vós quem não pecou nunca seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”. Repito-me: todos temos defeitos. A diferença entre uma pessoa honesta e quem o não é, não está na ausência de erros, defeitos ou pecados, mas no arrependimento do mal que praticou e na subsequente transformação. Também muitos dos santos de maior culto foram pecadores que sucumbiram às tentações de funestos pecados (Santo Agostinho, por exemplo). Mas arrependeram-se e transformaram-se e são santos, hoje.
Para mim, o facto de o líder ser uma pessoa de “virtude” (a palavra pode não ter aqui qualquer conotação religiosa) significa um enraizamento, em tudo o que procura fazer, no Bem, no Belo e no Justo. E permite-lhe, assim, que os seus colaboradores o admirem e nele confiem – admiração e confiança, que me parecem a “conditio sine qua non” de uma liderança. Não sou um especialista na “liderança no desporto”. Conheço dois, em língua portuguesa: os Doutores Jorge Araújo e Luís Lourenço. Em sua homenagem os cito, como estudiosos desta área do conhecimento. Começo pelo Jorge Araújo: “A oposição é um factor de progresso. Quanto maior é a oposição que se nos depara, melhores condições temos para o desenvolvimento das nossas capacidades e optimizar o rendimento. Importa, por isso, apelar constantemente aos que vencem num determinado momento, para que não esqueçam que hoje eles, amanhã outros, precisam da presença competitiva daqueles que os confrontam” (A Busca da Excelência (Guerra & Paz, Lisboa, 2011). Abro agora o livro de Luís Lourenço, Liderator – A excelência no desporto, Prime Books, Lisboa, 2011): “A ausência de pretenciosismo, em Guardiola é acompanhada por uma feroz, quiçá até férrea, determinação, em relação à vitória, mas, na hora de ganhar, o técnico é um líder que manifesta uma modéstia e uma humildade invulgares. Após alcançar títulos, para o Barcelona, a imprensa atribuía o mérito a Pep, mas a resposta do catalão é representativa da sua forma de ser e de estar: os títulos são do Barcelona, não são meus. Guardiola minimizava assim a sua importância e olhava claramente mais para a janela do que para o espelho, na medida em que, apesar dos grandes feitos alcançados para o seu clube, atribuía as memoráveis conquistas aos seus colaboradores”(p. 133). De facto, o pensamento do especialista, na nossa pós-modernidade, é um “pensamento débil”, porque em qualquer processo investigativo, não se procura só a “coisa-em-si”, mas todo o jogo de relações que a constituem também. Daí, a interdisciplinaridade, nos grandes centros de investigação…
O italiano Gianni Vattimo, em livro que tenho em minha casa, em tradução castelhana, Las aventuras de la diferencia (Ediciones Península, Barcelona, 1986) escreve, com o aceno concordante de muito “aristocrata intelectual”(usei, aqui, o termo “aristocrata”, no mais puro significado etimológico do “aristos” grego): “Construir el superhombre, en el Zarathustra, significa, ante todo, construir un mundo. El superhombre no es posible como simple indivíduo excepcional (…): el existe solo en cuanto que tiene un mundo” (p. 87). Hoje, a cabeça de um presidente, n um clube de futebol, afoga-se em indecisões, se não tem por si a colaboração de um grupo, de certas áreas do saber e com o “quantum satis” de saber do futebol. É o líder que decide, mas com a humildade de reconhecer que não sabe tudo, mesmo no futebol. Já li muitos livros sobre treino desportivo, já procurei aprender com muitos treinadores e jogadores e, no fim de dez ou vinte anos de leituras e conversas, perceciono que de largas manchas daquele discurso se evola o ranço do já muito lido e ouvido. Na alta competição, designadamente no futebol, há “génios” em demasia… por isso o erro é tão frequente! Não, eu também não sei de futebol e o pouquíssimo que sei o devo, tanto a alguns “agentes do futebol” como ao grupo reduzido de pessoas, que nunca me converteram em discípulo, mas que são de facto meus Mestres. A uma revolução científica precede-a sempre uma revolução das mentalidades e o esfarelar da ditadura de algumas certezas. Ora, no futebol, há certezas que estão por criticar e desmantelar. Mas não só no futebol. O Agostinho da Silva assim o pensava: “uma das desgraças de Portugal é que foi sempre governado pelo vedor da Fazenda, quando este deveria ser o simples caixa de uma empresa a dirigir pelo Ministério da Cultura” (Dispersos, p. 563). Quero eu dizer, afinal, que não basta ser ex-jogador de futebol. para ser o presidente do Benfica, nem um adepto intransigente do Benfica. Mas que ser ex-jogador de futebol ajuda, desde que o presidente saiba valorizar o humano, em si e nos outros."