quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Um título sobre rodas


"Na estreia do novo autocarro, o futebol encarnado rumou a terras alentejanas, trazendo na bagagem mais um título

O mítico autocarro Samua, imagem de marca do Clube durante largos anos, foi substituído em Maio de 1963 por um elegante Scania Vabis. Ao novo meio de transporte não faltou a tradicional cerimónia da bênção, na qual esteve presente a Direcção do Benfica, sendo a madrinha uma das filhas do dr. Fezes Vital, presidente da Direcção.
O Benfica vivia momentos de grande fulgor desportivo, quer nas provas europeias, quer no Campeonato Nacional, sendo líder isolado nesta competição.
A derradeira jornada do Nacional de 1962/63, contra o Lusitano de Évora, ditou que os encarnados tivessem de se deslocar ao Alentejo. Foi uma bela oportunidade para o Benfica colocar à prova o seu novo autocarro. A comitiva encarnada era composta, para além dos jogadores, treinador e sua equipa técnica, por Manuel Afonso, Alberto da Maia, jornalista do Clube, e José Catela, antigo homem-forte do futebol benfiquista. Ao longo da viagem, o autocarro do Benfica foi ampla e vibrantemente ovacionado por todos aqueles que se cruzaram com ele na estrada.
Em Montemor, a comitiva foi de imediato cercada por fervorosos fãs que queriam ver os jogadores de perto ou arrancar um autógrafo ao seu ídolo. Durante o almoço, na presença de Francisco Moreira, antiga glória dos relvados, um grupo de adeptos homenageou o Clube com uma bonita salva de prata. Se seguida, o autocarro voltou a rolar estrada fora rumo a Évora. A meio caminho, a comitiva necessitou de esticar as pernas e combinar pormenores para o desafio. Porém, a calma e a descontração foram de curta duração, pois os adeptos resolveram, também eles, parar os seus veículos para estar junto dos ases do futebol.
À chegada a Évora, a comitiva do Benfica foi grandemente ovacionada, por entre estridentes foguetes e uivos de cornetas. O Campo Estrela abarrotava de público, e, antes do desafio, a equipa do Benfica homenageou os juniores do Sport Lisboa e Benfica e Évora, com medalhas de campeões distritais. No tão aguardado desafio, apesar de ter sido evidente  controlo e posse de bola do Lusitano, o Benfica demonstrou eficácia e poder de finalização, saldando-se o resultado numa vitória dos encarnados por 1-3.
Conquistado mais um título nacional, foi tempo de os benfiquistas rumarem a Lisboa, não sem antes fazerem nova paragem, desta vez em Vendas Novas, na herdade do sr. Varela Cid, que ofereceu um jantar de honra aos cerca de 60 membros da comitiva do Clube.
Para saber mais sobre esta e outras histórias, visite a área 6 - Campeões Sempre, do Museu Benfica - Cosme Damião."

Ricardo Ferreira, in O Benfica

Troféu para vencer


"Fim de semana à vista é sinónimo de emoções fortes. Serão muitas as equipas do Benfica em ação nos próximos dias e onde quer que haja uma em competição lá estarão benfiquistas a apoiá-las. É assim o nosso Benfica!
O foco está direcionado para Guimarães. Sábado, às 18h00, terá início o sempre apaixonante e disputado Vitória SC–Benfica.
Os vitorianos, assim como o Benfica, chegam à sétima jornada como integrantes do quarteto de clubes com melhor registo defensivo na prova, tendo concedido somente três golos cada aos adversários. Por seu turno, o Benfica lidera a prova com a pontuação máxima possível, fruto de seis triunfos consecutivos desde o início da prova, um registo que já não acontecia, para as nossas cores, há 39 anos. O bom desempenho defensivo encontra paralelo na baliza oposta, sendo já 16 os golos benfiquistas, o mais produtivo na presente edição da prova.
Estes são dados que lançam a partida, mas em nada influem o decurso da mesma. Cada jogo encerra-se em si mesmo e independentemente do contexto é para ganhar que as equipas do Benfica se apresentam sempre em campo.
Curiosamente, no mesmo dia, mas às 11h30 em Coimbra, ambos os clubes disputarão um troféu, a Supertaça de basquetebol (feminino). Recordamos que, na temporada passada, festejámos as conquistas inéditas do Campeonato e da Taça de Portugal, sabendo que a nossa equipa está apostada, neste ano, em dar continuidade à senda triunfal.
Serão muitos mais os jogos em competições oficiais do Benfica nas diferentes modalidades.
Destacamos o futebol feminino, com o aliciante dérbi entre Sporting e Benfica em Alcochete (domingo, 17h00) e o andebol e o hóquei em patins, em que enfrentaremos, respetivamente, Madeira SAD (Pavilhão Acácio Rosa, 6.ª feira, 16h30) e Juventude de Viana (Luz, sábado, 16h00), com ambos os jogos a contarem para o Campeonato Nacional.
Consulte a agenda em slbenfica.pt para mais jogos e horários. Vem apoiar o Benfica!"

SL Benfica | Os 5 melhores laterais direitos da história encarnada


"Numa época de caricato planeamento quanto às laterais – de seis elementos disponíveis para as faixas, quatro jogam preferencialmente no lado direito, enquanto que um dos dois na canhota não é sequer de origem – o SL Benfica vê-se apetrechado em qualidade e abundância, ainda que o desequilíbrio seja notório. Quanto mais Gil Dias der provas de que ‘’não serve” para Jorge Jesus, mais problemática será uma eventual ausência de Grimaldo.
Mas à destra, opções bastantes e muito válidas. Se André Almeida recuperou da tormentosa lesão que o apoquentou no último ano, vê-se agora no fundo da hierarquia. Diogo Gonçalves teria em 2021-22 a temporada de afirmação, não fosse a subida de forma de Gilberto ou a contratação sonante de Valentino Lázaro.
Ardente luta se travará pela titularidade, exigindo de cada um rendimento máximo – é de saudar a concorrência, ainda que seja contranatura a aglomeração de tanta solução para um posto só. Dores de cabeça para Jesus.
Numa tentativa de enquadrar historicamente e contextualizar as passadas apostas encarnadas para aquela ala, decidimos eleger os cinco mais destacados laterais-direitos do percurso benfiquista – cronologicamente e tendo em conta a sua importância a curto, médio e longo prazo, dentro e fora dos relvados.
Muitos nomes merecedores de referência ficam injustamente de fora por impossibilidade matemática. José Rosa Rodrigues, por exemplo, o primeiro ala direito de águia ao peito: entrou como titular no primeiro jogo oficial de sempre, como right-back – como se chamava à altura quem preenchia aquele lado no 2-3-5 ou WM coevo.
Ou Ralph Baião, outro bom exemplo, ainda que este se destaque por razões mais inóspitas – a sua excentricidade foi um marco no campo mediático do futebol português dos anos 20, fosse pela sua fama enquanto bom vivant, ou ela utilização de uma boina basca sempre que entrava em campo. Foi com uma txapela à cabeça que ajudou a vencer três Campeonatos de Portugal e um Campeonato de Lisboa, em oito anos (1925-33) como soldado do exército rubro.
De Jacinto, nos anos 40, a Cavém – que apesar de ser o melhor polivalente de sempre do nosso futebol, cumprindo com mestria todas as tarefas dentro do retângulo, iniciou duas finais das Taças dos Clubes Campeões Europeus (vs AC e Inter de Milão, 1963 e ‘65 respetivamente) como titular da posição, consolidando-se aí no final de carreira.
Na passagem à década de 70, há a reter Malta da Silva – titular nos invencíveis de 1972-73 – ou Artur Correia, o Ruço, velocista que terminou carreira na Luz de costas voltadas com o clube, mas que marcou uma era enquanto fomentador de um novo estilo de lateral.
Foi o primeiro ala moderno do futebol português ou, pelo menos, o primeiro disposto a desbravar todo o corredor num vaivém constante. Stefan Kovacs, o reputado treinador do FC Ajax tricampeão europeu (substituto de Michels, aquando da saída deste para FC Barcelona) disse sobre ele, em 1972: “Provavelmente, o melhor da Europa”…
Mais tarde, Miguel deixou marca num SL Benfica em reconstrução. Essencial na Taça de 2004 e no campeonato de 2005, só a sua saída apressada para Espanha impediu maiores feitos pelo clube. E, por fim, André Almeida e Nélson Semedo, um pela longevidade e outro pela qualidade.

1. Maxi Pereira (2007-2015) – O silêncio tornou-se hábito em relação ao uruguaio. De amor profundo a traição inusitada fora de tempo, já demasiado tardia, divórcio pateta e tiro no pé de um atleta que tudo tinha para ficar ainda mais engradecido na história do SL Benfica.
Fosse pelas características dentro e fora de campo, onde mostrava ser leal, comprometido com a equipa, chegando a parecer a personificação fiel dos ideias encarnados, Maxi foi uma figura importante no rejuvenescimento a partir de 2009, contribuiu até à chegada às consecutivas finais europeias.
Sem se perceber muito bem como nem porquê, rumaria a Norte – tomando o mau exemplo do compatriota Cebola Rodríguez – para finalizar a carreira atascado em derrotas e casos de indisciplina, numa fase de menor fulgor do FC Porto.
Antes de continuar o silêncio indicado como resposta a tão inglória decisão, a constatação: foram oito anos na Luz, 333 jogos, três campeonatos, uma Taça, seis da Liga, duas supertaças, duas finais europeias. Tentador mas impossível ignorar.

2. António Veloso (1980-1995) – Ficará para sempre marcado ao penalty de Estugarda, muito injustamente. Competentíssimo na arte de defender e abnegado como quase ninguém, bastará atentar-se de forma superficial à sua carreira para ver números, muitos números, tantos que nos metem a cabeça em água – como tantas vezes tentaram os extremos adversários fazer, ainda que em vão.
Aqui vamos, agarrem-se: 658 jogos de 1980/81 a 1994/95 (média de 43 por temporada), 322 deles ostentando a braçadeira (ficou a seis do recorde de Mário Coluna). Desses 658, 546 a titular, 309 do lado direito – tal como os senhores antes referidos, um polivalente astuto e desenrascado, estreando todas as posições à excepção da baliza e frente de ataque.
Foi até bem recentemente recordista de jogos europeus (77), sendo superado apenas por Luisão (127). Percebe-se, então, a eterna gratidão que lhe devem os adeptos do SL Benfica. Pena que o instante determinante do confronto com Van Breukelen, guarda-redes holandês, tenha ficado como dívida perpétua de um homem que tudo deu em prol da instituição.

3. Minervino Pietra (1976-86) – Lateral-esquerdo de origem, foi mais um polivalente de prestígio que se afirmou na Luz como um dos melhores laterais portugueses. Irreverente na chegada à frente, tinha técnica suficiente para se evidenciar no último terço.
Como ficou demonstrado na eliminatória frente ao Copenhaga, na Taça dos Campeões de 77-78: 1-0 cá, 0-1 lá, dois tentos de sua autoria e a consagração internacional, que viria a completar-se na importância que teve no conjunto de 1982-83 que surpreendeu o continente ao chegar à final da Taça UEFA.
Era Pietra o dono da direita, formando com Carlos Manuel grande dupla naquele corredor. O percurso na Seleção (28 jogos) fica marcado pelo afastamento da fase final do Euro84, quando tinha cumprido praticamente toda a qualificação a titular, “numa altura em que estava com as faculdades intactas”.
Jogou João Pinto (FC Porto) no seu lugar. Na Luz aguentaria mais dois anos, completando 314 jogos – seria expulso no último, contra o Belenenses, o seu antigo clube. Ironias de um destino que fez questão de nunca o afastar totalmente da causa encarnada.
Seria quase eterno colaborador do clube. Assumir-se-ia como adjunto de Rui Vitória. Com ele foi até ao fim, ajudando depois na introdução de Bruno Lage e continuando, até hoje, como ponto de ligação entre os valores benfiquistas e a equipa principal.

4. Mário João (1957-63) – Chegado ao SL Benfica vindo da CUF, em sentido inverso do veterano Arsénio, Mário João tinha-se evidenciado na margem Sul como interessante avançado.
Foi assim que se encaixou na equipa principal do SL Benfica até chegar Bela Gutmann, em 59, e discernir nele um preponderante e polivalente elemento da retaguarda: no meio ou á direita, como na segunda final da Taça dos Clubes Campeões Europeus, onde secou Gento e ajudou a acalmar Puskas após o intervalo.
Campeoníssimo e feito Comendador por Américo Tomás, teve que optar no final da época entre a Luz e o regresso à CUF: no Barreiro tinha emprego garantido, ficando a ganhar mais na fábrica do que no clube campeão da Europa! Além, claro, da importante questão da reforma. Tempos que já lá vão.
Feitas as contas, cinco anos, dois campeonatos, duas Taças dos Campeões, duas Taças de Portugal.

5. Francisco Moreira, o Pai Natal (1944-54) – 270 jogos distribuídos por dez épocas. Nada mau, certo? Melhor fica se atentarmos que nasceu em 1915 – chega ao SL Benfica, então, já com uns maduros 29 anos, cumprindo carreira até aos 39, numa longevidade admirável e que mete em causa o compromisso de tantos outros.
Se Francisco tem chegado ao SL Benfica mais cedo, certamente figuraria ainda hoje no top dez dos mais assíduos da sua história. Ao peso da sua contribuição ímpar, a assinatura em momentos capitais do período pré-conquista europeias.
Ora bem, vejamos: foi titular nos 8-2 da inauguração do Estádio das Antas, na melhor vitória de sempre frente ao FC Porto; estava presente nos 13-1 à Sanjoanense, a maior goleada do SL Benfica no Campeonato Nacional.
Participou, ao ritmo de poucos, na maratona em pleno Jamor que resultou na Taça Latina. No périplo do tetra de Taças de Portugal (49-53), era já um dos líderes do conjunto que cumpriu com o Sporting CP uma das melhores finais de sempre (a de 1952, no 5-4 que Rogério Pipi decidiu em cima dos noventa) e do que, no ano seguinte, voltou a esmagar o FC Porto, desta vez por 5-0.
Tão incansável era, à lateral ou ao meio, na intermediária de onde regia toda a construção encarnada, que os colegas de seleção, sportinguistas, se metiam com ele alcunhando-o de “Pai Natal”. Colou na massa adepta. “Diziam que eu era velho, mas ninguém passava por mim”, explicou Francisco, algum tempo depois."

João Almeida é um prazer cheio de dor irracional


"Se há inevitabilidade que me incomoda é a poeira da memória e a sua indiferença, não a entendo, haverá neurocientistas com mente dedicada a estudar as manigâncias de outras mentes que o saibam explicar. Nunca serão os porquês extraídos de neurónios e massas cinzentas a soprarem todas as partículas de frustração que sinto por me lembrar das tardes de verão em que me sentava no chão da sala, mais perto da televisão, pernas cruzadas pelo espanto, sem me recordar do que o meu avô ia dizendo para seduzir os meus ouvidos, tanto quanto os olhos eram surripiados pela admiração do que estávamos a ver.
Quando a televisão ainda era uma caixa, a pessoa que genuinamente gostava de desporto e não apenas de me ver praticar desporto chegava lá a casa, sentava-se no cadeirão que lhe amparava os joelhos carcomidos por cirurgias e plantava-me a semente do ciclismo. Eram os verões da Volta a França, de Marco Pantani, Jan Ullrich, Alexander Vinokourov, Carlos Sastre e de Lance Armstrong, antes de o mundo cair com a fraqueza nos braços do americano que se encharcou em doping durante tantos anos, mas não aqueles, os das tardes a ver ciclismo com o meu avô.
Não lhe sei precisar as palavras, sei apenas que me explicava, com a voz grave e cheia de paciência, estarmos a presenciar homens em plena suportação do extraordinário. O meu avô vendia-o como das coisas mais admiráveis ao alcance de um humano — fazer mexer uma gerigonça de duas rodas apenas com a força das pernas e, com ela, escalar montanhas a pique. Há lugares onde a natureza não quis ter pessoas e esses sítios ficam nos picos do mundo, de outra forma não seriam assim, gargantuescos na ascensão e dilapidadores de corpos.
Há muitos anos que se foi a voz que era o meu desporto, felizmente ainda tivemos tempo para me dar, sobretudo para me ensinar, um gosto que é impossível de perder. Mas, sumido ele e aparecido o escândalo que foi saber que Armstrong era o imperador dos batoteiros, confesso ter virado um derrotado do ciclismo. Acabaram as tardes de Volta a França, a Itália ou a Espanha, o acompanhamento de genuíno interesse passou a interesseirice obrigatória devido à profissão, duas coisas que só voltaram a estar juntas quando um certo português apareceu.
Desconhecia João Almeida quando se adornou de rosa durante 15 dias, o ano passado. Foram duas semanas do Giro a ser liderado por um rapaz a pedalar no ano de estreia enquanto profissional e o inglês, idioma engenhoso, tem uma palavra para o que isto poderia ser: um fluke. Um acaso, as estrelas combinadas entre si para se alinharem. Mas não, o ciclista de A-dos-Francos voltou a Itália para acabar no 6.º lugar depois do 4.º de 2020, depois foi aos Jogos Olímpicos para uma 16.ª posição no contrarrelógio e no que restava deste verão ganhou duas voltas, primeiro à Polónia e, este sábado, ao Luxemburgo.
Portugal teve muitos ciclistas, o meu avô enchia-me o depósito do ideário da vida sobre dois pedais com histórias do que vira Joaquim Agostinho, o maior deles todos, fazer em França. O país continuará a ter ciclistas depois de João Almeida, mais almas cairão nesse caldeirão de dor suportada e sofrimento acumulado entre homem e máquina em que ele é o motor, o ano passado ouvi o ciclista que é dos arrabaldes das Caldas da Rainha dizer que "a dor física é tolerável, mas a mental é complicada", que quando termina a dos músculos e começa a do cérebro é que o corpo se ressente — "aí é que temos de ir além dos limites".
Agora que conquistou o Luxemburgo, o português disse não ser um super-herói, lamentando-se por não ser "possível responder a toda a gente" no alcatrão quando as pernas viram brasas de carvão e berram estridentemente para que lhes seja concedido algum descanso. João Almeida só tem 23 anos, na escala da vida é uma ninharia, mas estará opulento de saber o quão sofre um ciclista para pedalar até onde ele já foi, ainda por cima tendo os dotes de trepador já evidenciados e a queda pelas subidas íngremes que até fazem carros ficarem com os bofes de fora.
Não tive forma de perguntar a este já super-ciclista — que, no próximo domingo, voltará à estrada nos Mundiais de ciclismo — sobre o que leva alguém a abraçar tal sofrimento, a querer sofrê-lo e a prosperar com a dor, tão pouco tenho o meu avô por cá para me explicar as nuances de algo tão humano como só ele era capaz de me fazer entender, por isso questionei a única alma que conheço e sei que experimentou a sério o equilíbrio da vida em duas finas rodas. Sorte a minha e, arrisco, também a vossa, por ele ser também uma pessoa que tem um ralenti de clareza na escrita para que possamos, mesmo só com ligeiros arranhões, tentar perceber o que é pedalar sabendo que a estrada nos condena a uma provação dolorosa:
Há um prazer muito específico que é certamente irracional e disfuncional mas viciante e alucinante e que por isso mesmo é um prazer contraditório, porque é um prazer cheio de dor, dor que sabe bem quando a dor devia saber só a dor, achar que a dor tem sabor a mau ou sabor a bom é complexificá-la e romantizá-la em vão porque a dor é uma perda de tempo perante a possibilidade do prazer, o prazer esse sim deve ser aclamado nos seus sabores e escalas diferentes, por exemplo: podemos ter o prazer-medíocre e o prazer-satisfaz e o prazer-bom e o prazer-excelente e porque não o superprazer, eis uma escala possível de prazer, cada um de nós terá a sua escala e nunca é perda de tempo viver e sentir esses escalões do prazer.
Peço perdão por usar "escalões" que é linguagem de IRS mas isto do ciclismo, que é disto que aqui falo embora não o pareça, isto do ciclismo tem a sua contabilidade também, é feito de dois pedais e uma forqueta e ainda um guiador e também uma corrente, é feito ainda de manípulos de velocidades e de múltiplas combinações de andamentos, 52x11 ou 42x23, esta é matemática do ciclista, os ciclistas falam com estes números entre eles e não tente perceber isto porque ninguém entende mesmo os ciclistas, a boca deles sabe-lhes a sangue no final de um contra-relógio de 50 quilómetros sob temperaturas de 40.ºC ou enquanto sobem uma montanha com inclinações de 20% ou por centos maiores, ninguém os entende no sacrifício apocalíptico deles, nem eles porventura se entendem a eles mesmos quando se tentam superar continuamente nesse ato extravagante mas definitivamente poético que é serem os motores de si próprios, as pernas a fazer de gasolina e o coração a bombear óleo da melhor qualidade.
A BMW ou a Tesla têm excelentes veículos mas nenhum é tão corajoso nem sexy como os veículos de calção de licra e camisola justa que atingem 190 ou 195 pulsações por minuto — não porque querem, mas porque precisam, afinal é um prazer irracional e disfuncional mas viciante e alucinante: por mais absurda que seja a dor, e é porque dói tanto, o ciclismo é um exercício contínuo de autossuperação e por isso um exercício contínuo de amor à vida, é rejeitar que há limites ao que podemos fazer e conquistar, no fundo o ciclismo é a prática dessa belíssima ilusão humana que é a crença de que não há limites para o que podemos conquistar, portanto o ciclismo é uma metáfora do progresso e isso é superprazer."

O homem do almanaque


"John Wisden era tão pequenino que quem o via num campo de críquete desconfiava que andava a estudar para ser anão

Com apenas 1,62m, John Wisden, filho de um construtor civil que parecia, ele próprio, um edifício de betão armado, dava a sensação de que fazia os possíveis para aprender a ser anão. O pai tinha-lhe estima mas não o levava a sério. No meio de uma família abrutalhada, Wisden não parecia ter grande utilidade. Por isso, quando morreu, William, o pai, claro, não John, não houve tempo para lágrimas. Os tios viram-se livres do pequenote num abrir a fechar de olhos. De Brighton foi de cambulhada para Londres sob os auspiciosos generosos de um gentleman de posses, Thomax Box, que por acaso era, igualmente, além de um cavalheiro bondoso, um jogador excecional de críquete, considerado por muitos como o melhor wicketkeeper do seu tempo, que jogava o Marylebone Cricket Club, fazendo uma perninha, aqui e ali, nas seleções dos Condados de Surrey e Hampshire, e atuando com regularidade na seleção de Sussex, a sua terra natal.
Nesse jogo tão aborrecidamente britânico que é o críquete, de tal forma extenso que chega a meter uns intervalos para se escorropicharem uns chazinhos e um ou dois golos de brandy, old boy, um wicketkeeper tem a extrema responsabilidade de guardar, com risco da sua própria vida, if you know what I mean, aqueles três pauzinhos paralelos, reunidos por um travessão superior e qual podíamos chamar de balizas, se não soasse tão grotesco.
Pois bem, Box afeiçoou-se ao miúdo, apesar deste ter uns termos um bocado pacóvios. Tratou de fazer com ele o que Harry Higgins fez com Eliza Doolittle em Pigmalião, de George Bernard Shaw: tirou-lhe os tiques brejeiros de campónio e pô-lo a jogar críquete mal descobriu que o garoto possuía uma série de características físicas que o aconselhavam para o jogo. Era rápido como um laparoto e tinha uma mão esquerda de rara potência. Com somente dezasseis anos, estreou-se pelo condado de Sussex, um daqueles lugares onde estava destinado a ser feliz. O quase anão John Wisden pesava exatamente 44 quilos, quem o visse sentado ao lado de Tom Box, diria que não passava de um boneco de ventríloquo. O críquete tinha-se tornado de tal forma a sua vida que chegou a namorar a irmã de George Parr, conhecido como O Leão do Norte, um jogador de classe finíssima de Nottinghamshire, embora a boda não se tenha realizado por ausência da noiva que, de forma bastante incomodativa, resolveu, com uma total respeito pela própria saúde, morrer na véspera do acontecimento. Pode ter sido sem intenção, mas tornou-se particularmente rude, até porque Wisdon parece que estava sinceramente embeiçado por ela.
The Little Wonder, como lhe chamavam, ainda se manteve mais uns anos no topo do críquete, realizou com o amigo Parr umas incursões à América do Norte, a locais como Montreal, Hoboken, Philadelphia, Hamilton e Rochester, incluídos na equipa do Condado de Middlsex e obtendo vitórias memoráveis. Entretanto, o críquete mudava a sua face e começou a exigir outro tipo de atributos físicos que o pequeno Wisden decididamente não possuía.
John podia ser praticamente anão, mas era um fulano esperto, fino como um alho. Não esperou quieto que o críquete o pusesse fora dos campos. Antecipou-se. A meias com o seu amigo e empresário Fred Lillywhite, abriu, revolucionariamente, uma loja de material de críquete, em Leamington Spa, em 1850. três anos mais tarde, a loja ganhou o nome de Cricket and Cigar, um local muito ao gosto dos cavalheiros londrinos e abriu um pub de nome Cricketeers.
Em 1863, apenas com 37 anos, atacado por brutais espasmos de reumatismo, deixou definitivamente os tacos e lançou-se numa atividade que lhe garantiria fama para lá da morte ao publicar o Wisden Cricketers’ Almanack, uma publicação anual na qual todos podiam ficar a saber tudo sobre que jogador quisessem. Imagina-se facilmente o impacto desta revista pelos grandes adeptos do jogo. Tão grande, aliás, que a revista ainda existe e é um sucesso de vendas. O Wisden, como é conhecido, é tão pormenorizado que se estende por cerca de 1500 páginas (preço de 60 Libras), sempre com a capa amarela que John escolheu. E é a publicação mais antiga do mundo a ser a sair continuadamente.
A cabeça do pequenino John fervilhava de ideias até que um maldito cancro lhe invadiu o cérebro aos 57 anos. Muitos que nunca deixam de comprar o seu almanaque todos os anos, continuam sem saber quem ele foi. O tempo atraiçoa a memória dos homens. O que vale é que temos sempre à mão um almanaque qualquer que nos põe na pista dos desconhecidos. É só folheá-lo e estaremos na posse dos dados que nos faltam. Graças, por exemplo, a alguns homens pequeninos em centímetros mas que não perdem muito tempo a desafiar as leis da física. Como foi o caso de John Wisden. Fico curioso em saber que altura deu a si próprio no lugar onde está arrumada a sua ficha."

Karate-Do: Novos ventos federativos... novas velas?


"Eleições federativas aproximam-se. Nuno Dias é candidato a Presidente da Federação Nacional de Karate – Portugal. Licenciado em Ciências da Comunicação, Vice-Presidente da A. G. da Sport Evolution Alliance, Vice-Presidente da Associação Portuguesa de Karate Shukokai, treinador e possuidor de um currículo com mais de uma dezena e meia de títulos de campeão nacional e quase uma dezena de títulos de campeão mundial do seu estilo, não há quem o não conheça dentro da modalidade. Um encontro casual deu-nos a oportunidade de conhecer melhor as suas ideias assim como da equipa que lidera.
Assim, começou por nos dizer que o Karate só se pode afirmar no panorama nacional com “transparência e progresso”, o que passa pela criação de uma plataforma ‘online’ onde todas as associações, clubes, praticantes e pais de praticantes menores possam aceder a toda a informação, quer seja sobre actas de assembleias gerais, quotizações federativas, seguros, inscrição em provas ou em formações, calendários de eventos, convocatórias para a selecção nacional, formação de treinadores e árbitros e tudo o mais que diga respeito ao Karate. “Transparência e progresso” que passam no aspecto administrativo pela profissionalização de uma secretaria funcionando oito horas por dia e onde um e-mail tenha uma resposta em 24 horas… por uma justificação da quota que o praticante paga – um cartão de federado que possibilite a existência de benefícios para o mesmo baseados no estabelecimento de protocolos e parcerias com empresas, assim como a possibilidade de se organizarem eventos não só para competidores mas também para todos aqueles que não fazem competição quer seja por opção quer seja por terem já terminado a sua carreira desportiva (podendo por exemplo o seguro do não-competidor ter um custo diferente do custo do seguro do competidor). “Transparência e progresso” no campo desportivo com uma Federação que ofereça um Karate de todos para todos, onde a representação nacional tem um peso mas onde também haja oferta para quem não faz competição, quer seja no campo do aperfeiçoamento técnico com diferentes técnicos e actividades variadas quer seja no campo da formação com conteúdos diversificados, quer ainda no campo da realização de outros eventos adaptados à especificidade do público-alvo.
Numa lista em que estão presentes nomes com Paulo Vilela de Azevedo, Rui Inácio e Nuno Moreira, a mesma aposta no resgate do Karate-do tradicional tendo já mecanismos próprios que definirão uma estratégia que criará um dinamismo para quem não se dedica à competição, estando projectada a existência de um departamento que poderá vir a ser designado como Departamento de “Karate-do marcial” ou de “Karate-do tradicional” que, em conjunto com o Departamento de Formação, reunirá com os Directores Técnicos das diferentes associações a fim de se ter um ‘feedback’ a nível nacional das necessidades prementes de todos os praticantes. Este será o ponto de partida para a formação de uma equipa multidisciplinar reunindo treinadores e técnicos com competências dentro de cada domínio. Nuno Dias afirma que é necessário trazer para a Federação muitos daqueles que não se encontram federados, mas “a Federação tem de oferecer algo – no campo técnico, no campo social, no campo formativo. Para conseguirmos coisas, temos de oferecer coisas. Ao oferecermos coisas e ao conseguirmos coisas criamos uma interacção que validará o progresso da modalidade.”
O Departamento de Formação não se limitará só à organização de cursos de formação de treinadores e acções de formação (estão já montados cursos de treinadores de grau I, grau II e grau III, assim como acções de formação em todas as regiões do país). É necessário incluir o Karate no Desporto Escolar, é necessário estabelecer protocolos com as escolas e com a comunidade, é necessário transformar o Karate numa actividade formativa. A oferta de realizações para crianças, jovens, adultos e idosos é uma realidade no horizonte deste candidato à Presidência da FNK-P. Pode-se e deve-se aumentar o número de formadores, dando oportunidade a mais formadores e existindo uma maior diversidade de especialistas. O aumento da oferta de formação determinará o aumento da procura da mesma. A implementação de um programa estratégico subordinado a um novo modelo levará a um progresso na prática desportiva…
Em relação ao Departamento de Provas e Eventos, Nuno Dias afirmou-nos que se torna crucial realizar mais provas, mas mais curtas no tempo e mais espalhadas pelo território nacional. “Defendemos reduzir a dimensão de cada prova e aumentar a sua qualidade ao mesmo tempo que as fazemos alastrar geograficamente. É premente a criação de um circuito a nível nacional tal como a criação de um ‘ranking’ de atletas. O ‘ranking’ é um indicador e não um limitador. Só assim será possível que a tarefa deste departamento entronque na tarefa do Departamento de Selecções.” As selecções nacionais terão condições para de facto serem selecções nacionais (já existem parcerias programadas), sendo criadas condições para um planeamento antecipado de treinos e de convocatórias baseadas num ‘ranking’. “Este será um processo que implicará a chamada dos treinadores dos selecionados à equipa, dado serem estes que melhor que ninguém conhecem os competidores” declarou-nos Nuno Dias. “A existência de um seleccionador nacional e de seleccionadores regionais implica um diálogo constante e aberto com os treinadores a fim de se realizar um trabalho em conjunto. É primordial uma linha aberta que inclua os treinadores dos clubes e das associações. A individualidade biológica, psicológica e técnica de cada competidor são únicas, devendo-se aumentar os pontos fortes de cada um e diminuir os seus pontos fracos.” A presença e a colaboração dos árbitros nos treinos das selecções também é uma questão essencial para a lista liderada por Nuno Dias, tendo um ponto de apoio no Conselho de Arbitragem.
Nuno Dias revelou-nos ainda que atletas de elite só poderão evoluir treinando e rodando com atletas de elite e para isso já possui pré-acordos com países como a França, a Espanha e o Luxemburgo, ao mesmo tempo que se propõe contribuir para um maior desenvolvimento do Karate em países como Cabo Verde e Angola.
Um Departamento dedicado à comunicação e ao ‘marketing’ terá como missão transformar a imagem da modalidade perante a comunidade. Projectos de apresentação do Karate como uma actividade promotora de saúde e bem-estar, projectos de inclusão social e de desenvolvimento do Para-Karate também já se encontram identificados no seu programa, tal como a programação de iniciativas envolvendo a colaboração de Universidades e pólos de investigação. A relação com a comunicação social terá de ser mais estreita – inclusivamente aposta no convite a jornalistas para acompanharem os diversos eventos – e mais incisiva para se passar ao público em geral uma outra imagem da modalidade. Está já elaborado um plano de ‘marketing’ e de comunicação em que o principal objectivo é “criar uma imagem que englobe o Karate em geral” nas suas diferentes facetas.
E Nuno Dias deixou-nos algumas questões – para as quais a sua lista possui resposta – que considera fundamentais. Por que não conciliar, com sucesso, a actividade escolar com a prática desportiva de alunos/atletas rentabilizando as Unidades de Apoio ao Alto Rendimento? A carreira dual treino/ensino não pode e não deve ser optimizada? Se há Câmaras Municipais que pagam as inscrições nas federações a atletas de outras modalidades, por que não no Karate? Por que motivos é tão baixa a frequência de jovens praticantes femininas no Karate? (repare-se que nos J. O. de Tóquio 2020 a média de idade das competidoras em Kata era de 30 anos e a vencedora da medalha de ouro tinha 39 anos). Por que motivos não se realizam outros eventos para além dos competitivos direccionados às crianças?
Por último, Nuno Dias referiu a faceta política de uma federação: um estreito relacionamento com a tutela, principalmente o IPDJ, e com as Câmaras Municipais. Eventos com visibilidade a nível social e educativo – que sejam inclusivos, que sejam ecológicos – serão relevantes para beneficiarem a comunidade. Isto só se consegue com o estabelecimento de protocolos e parcerias com as entidades oficiais e com actores económicos do meio envolvente. Defendendo uma Federação auto-sustentável, Nuno Dias realçou que “não se pode contar só com o dinheiro proveniente do Estado, das associações ou dos praticantes, pois há inúmeras outras possibilidades de rentabilização económica e que até nem passam por receber dinheiro de ‘sponsors’, tais como a oferta de serviços, o apoio em equipamentos físicos ou em transportes e até em recursos humanos. Isso implica elaborar planos estratégicos, estabelecer acordos… Certo é que terá de ser um processo transparente…”
Para terminar, colocámos uma questão directa a Nuno Dias: “ – as quotizações das associações, que de provisórias inicialmente passaram a definitivas ao longo dos anos e que representam um valor avultado, irão manter-se?” A resposta também foi directa: “– A nossa intenção aponta para um «não». Iremos reunir com clubes e associações a fim de estudarmos o melhor modelo mas já temos uma proposta para uma redução de valores de modo a que o mesmo seja proporcional ao número de praticantes de cada associação. Temos clubes e associações com 20 ou 30 praticantes, como podem pagar o mesmo dos que possuem 500 ou 600 praticantes?”
O que nos ficou desta troca de impressões? A existência de um plano, de uma equipa, a constatação de muito trabalho já realizado e programado com objectivos traçados bem claros e específicos, a noção de transparência e de progresso, mas também a noção de liderança, de gestão e de comunicação.
Eleições federativas aproximam-se. Tal como diz o povo, “conforme sopra o vento assim se iça a vela”…"