terça-feira, 29 de junho de 2021

Unidos pelo casamento e pelo Benfica


"Ilda e José Dias Afonso foram um casal de cicloturistas e, juntos, envergaram a camisola encarnada ao longo do país.

Na secretaria da Rua Jardim do Regedor, por volta das 8 horas da manhã de 3 de Junho de 1936, o casal de cicloturistas Ilda e José Dias Afonso, 'irrepreensivelmente equipados, envergando as garridas camisolas do Benfica', subiram para as suas bicicletas e fizeram as suas despedidas, com bastante público a desejar-lhes uma boa viagem.
O projecto era ambicioso, um rali ao Norte de Portugal, numa jornada de propaganda do cicloturismo e do Benfica. Numa época em que havia poucas mulheres a praticar desporto em Portugal, Ilda Dias Afonso causou admiração, 'pois não é muito vulgar entre nós uma senhora abalançar-se a fazer 1250 quilómetros de bicicleta'. Esta interessante iniciativa do casal foi também 'digna de elogios pelo espírito de sacrifício dos dois velocipedistas, que efectuam o «rallye» sem encargos para a colectividade que representam».
Ao longo de 11 etapas, entre Lisboa e Porto visitaram várias filiais do Benfica, tendo sido recebidos com afectuosas recepções, nas quais entregaram placas de prata com o emblema do Clube. A iniciativa foi um 'êxito e decorreu com a máxima regularidade' e, ao fim de 12 dias de viagem, os cicloturistas percorreram os últimos quilómetros acompanhados por sócios do Benfica e ciclistas até ao Campo das Amoreiras, 'onde lhe foi feita uma carinhosa recepção', recebendo um lido ramo de flores da Direcção do Clube.
Durante vários anos, Ilda e José Dias Afonso participaram, individualmente ou juntos em raides, passeios e provas de regularidade, nas quais obtiveram vários títulos individuais, de pares e de equipa. Todavia, mais do que as suas conquistas desportivas, estes atletas destacaram-se como impulsionadores do cicloturismo, granjeado de grande popularidade. Até o cão do casal, o 'Pirilau', alcançou a fama: tornou-se a mascote da secção e acompanhava-os em passeios da modalidade, através da qual contribuíram para a propaganda do Benfica, de norte e sul de Portugal.
Saiba mais sobre o cicloturismo na área 4 - Momentos Únicos do Museu Benfica - Cosme Damião."

Lídia Jorge, in O Benfica

A laicidade e o facto religioso no campo desportivo


"O desporto agrada pelo fervor das competições e pelas garantias morais. Impôs-se para além dos muros da Escola. Nasce na segunda metade do século XIX, conquistou o planeta num tempo relativamente curto e impôs-se como uma prática de massas. Ele é associado às ideias de progresso e de equidade. Pierre de Coubertin, na sua Pédagogie sportive (1972), entende-o como “o culto voluntário e habitual do exercício muscular intensivo, incitado pelo desejo de progresso e sem medo de ir até ao risco” (p. 7).
O desporto representa o melhor meio de nos conhecermos e de medir os limites. É um “combate”, permitindo desenvolver uma rivalidade entre os Homens e as nações. Com o reconhecimento dos méritos de cada um, procura-se explicar as diferenças sociais entre os indivíduos. As regras fundam o desporto, assegurando o seu funcionamento e a diferenciação das práticas. A prática desportiva é multiforme e ela continua a ser um campo (espaço simbólico, no qual os atores sociais legitimam as suas representações) propício para a expressão e interação entre os indivíduos. É a sua grande força que permite a realidade do “vivermos em conjunto” (comunidade, sociedade). Não sendo uma religião, funciona como tal. Incorpora “na sua estrutura e funcionamento valores e práticas passíveis de uma leitura religiosa, naquilo que consideramos ser uma religião camuflada”, diz-nos Garcia e Cunha (2016, p. 81). A expressão do facto religioso e da laicidade não são incompatíveis no campo desportivo. O que se entende por laicidade? Para melhor compreender o que é a laicidade, três aproximações são complementares. Ela assenta em quatro princípios e valores:
1) A liberdade de consciência;
2) A liberdade de manifestar as suas convicções no limite do respeito da ordem pública;
3) A separação das instituições públicas e as organizações religiosas;
4) Igualdade de todos perante a lei, independentemente das suas crenças e convicções.
Neste sentido, a laicidade garante aos crentes e aos não crentes o mesmo direito à liberdade de expressão das suas convicções. Ela assegura o direito de ter ou de não ter uma religião ou de mudar. Ela garante o livre exercício dos cultos e da liberdade de religião, mas também a liberdade da religião: ninguém pode ser constrangido relativamente ao respeito dos dogmas ou das prescrições religiosas. A laicidade supõe a separação do Estado e das organizações religiosas. Portugal é um país laico e a separação entre a Igreja e o Estado foi decretada em 1911, na sequência da instauração da República, em 05 de outubro de 1910.
Se a laicidade parece relativamente simples de definir, a sua aplicação no terreno pode ser mais complexa. A boa aplicação do princípio da laicidade e da boa gestão dos factos religiosos supõe um importante trabalho de pedagogia, em todos os domínios, nomeadamente o do desporto. O desporto não está desconetado da sociedade e pode ser uma caixa de ressonância das crispações e desafios atuais da nossa sociedade. As regras aplicadas em matérias de laicidade e de gestão do facto religioso são transponíveis para o campo desportivo. O respeito do princípio da laicidade no quadro da atividade ou da prática desportiva deve conciliar em permanência três exigências:
1) A manifestação da liberdade de consciência do praticante sob reserva do respeito da ordem pública;
2) A exigência da neutralidade das coletividades territoriais (câmaras municipais, juntas de freguesia, etc.) na organização e no acesso às atividades desportivas;
3) A exigência da neutralidade dos dirigentes, dos árbitros e das pessoas que enquadram as federações desportivas e dos órgãos desconcentrados (comités, ligas), etc.
A neutralidade da prática desportiva não deriva exclusivamente do princípio da laicidade. Ela resulta do respeito pelos valores do desporto, das regras do jogo e dos regulamentos técnicos desportivos. Por outro lado, o respeito pelo princípio de neutralidade não proíbe o financiamento de atividades desportivas e de interesse geral das associações desportivas com um carácter confessional, nas condições em que elas não imponham as suas práticas culturais e não exerçam uma discriminação de entrada pelo facto de não pertença comunitária. A laicidade deve ser uma ferramenta de emancipação e de união na República."