domingo, 24 de maio de 2020
Há 30 anos, o Benfica esteve pela última vez na final da Taça dos Campeões Europeus. E caiu frente ao melhor Milan que muitos se lembram
"Foi no Estádio do Prater, em Viena, que o Benfica jogou a sua última final da precursora da Liga dos Campeões. Do outro lado estava o AC Milan de Sacchi, com Maldini, Baresi, Costacurta, Gullit, Ancelotti, Van Basten e Rijkaard, que haveria de marcar o único golo de um jogo muito equilibrado, táctico, praticamente sem oportunidades.
As maldições são coisas das nossas cabeças, mas no futebol que las hay, las hay. Por isso, nunca fiando. Terá sido esse o pensamento de Eusébio, quando em 1990, antes do Benfica defrontar o AC Milan no Estádio do Prater, na final da Taça dos Campeões Europeus daquele ano, visitou a sepultura de Bela Guttmann, falecido nove anos antes precisamente em Viena. Em 1962, depois de levar o Benfica a dois títulos europeus seguidos, o técnico húngaro, despeitado por não se sentir reconhecido na Luz, terá ditado que nem em 100 anos os encarnados voltariam a sagrar-se campeões europeus. Antes daquela final em Viena, o Benfica já trazia quatro derrotas em finais da Taça dos Campeões Europeus às costas, todas depois da dita maldição. Eusébio, homem de superstições, acreditou que aquela visita à campa do homem que o havia treinado nos anos 60, poderia reverter a praga.
Mas não. No final do jogo entre o Benfica de Eriksson e aquele super-AC Milan, a maldição de Guttmann sobreviveria - e sobrevive até hoje. Foi há exactamente 30 anos.
A 23 de maio de 1990, o Benfica voltava à final da precursora da Liga dos Campeões dois anos depois de perder nas grandes penalidades em Estugarda frente ao PSV. Veloso falhou então o penálti decisivo e falharia a final de 1990, castigado depois de levar um amarelo na mítica meia-final frente ao Marselha, que a mão de Vata resolveu. Antes disso, o Benfica tinha ultrapassado sem dificuldades o Derry City da Irlanda, o Honved da Hungria e o Dnipro da então URSS. E se o Marselha era uma das mais talentosas equipas da Europa naquele início dos anos 90, o AC Milan era, talvez, a melhor das melhores, mesmo que dentro de portas o scudetto tivesse fugido para o Nápoles de Maradona.
Na defesa, Tassotti, Baresi, Costacurta e Paolo Maldini; Rijkaard, Ancelotti no meio-campo e Ruud Gullit no apoio a Marco van Basten na frente - na sua biografia, “A minha história”, Sven-Goran Eriksson, escreve o que estava no pensamento de todos: “À partida, pareciam invencíveis”.
Mas Eriksson e o então adjunto Toni acreditavam na vitória. A Serie A havia terminado mais cedo, por causa do Mundial de 90, que a Itália organizaria no verão. Eriksson conta na sua biografia que acreditava que isso podia ser uma vantagem para o Benfica.
Ligamos a Toni, que dois anos antes era o técnico principal quando o Benfica caiu nas grandes penalidades na final europeia contra o PSV.
“Não me vai falar da maldição do Bela Guttmann, pois não?”, diz-nos, antes de soltar uma gargalhada. Três décadas depois, Toni não tem dúvidas que tanto frente aos holandeses como na final de 90, o Benfica estava longe de ser favorito.
“Aquele Milan é o melhor Milan que eu me lembro. Ainda tenho uma cassete antiga, em VHS, de um jogo Bayern Munique-Milan do Arrigo Sacchi e aquilo é uma aula de trabalho de zona. É fantástico”, comenta, antes de passar para o jogo propriamente dito.
“Trabalhámos muito a organização defensiva para esse jogo porque tínhamos perdido o Veloso na meia-final com o Marselha. E então fizemos uma adaptação, com o Samuel. O próprio jogo veio a traduzir isso mesmo. Foi um jogo em que as oportunidades, quer de um lado quer do outro, não abundaram. Da nossa parte nem sei se aconteceram”, relembra Toni. “O Milan também não teve muitas. Foi um jogo marcadamente táctico porque eles também não conseguiram impor a superioridade individual e colectiva que tinham, não a traduziram no jogo”.
Tacticamente, o Benfica conseguiu quase sempre anular aquele poderoso Milan. Gullit e Van Basten raramente tiveram margem de manobra. Mas na hora de atacar, o Benfica pouco ou nada conseguiu frente àquela defesa de Arrigo Sacchi.
“O Benfica, face ao poderio do adversário, organizou-se bem. Não se demitiu de poder ganhar, mas perante uma equipa daquelas sabíamos que, ao expomo-nos mais, com certeza que as coisas poderiam ser diferentes. Da forma como o Benfica se organizou, o Milan não pode marcar uma superioridade tão grande como à priori se poderia pensar”, sublinha ainda o treinador português
E num jogo quase sempre equilibrado, o golo apareceu numa das únicas desatenções do Benfica: aos 67’ Rijkaard teve espaço, avançou até à baliza de Silvino e não falhou.
“Tínhamos consciência que íamos jogar contra aquela que era seguramente a melhor equipa da Europa. E que o Milan partia com um grau de favoritismo. Tínhamos de ser inteligentes, ia ser um jogo muito táctico e todos sabiam que a equipa que cometesse menos erros era a que teria mais possibilidades de vencer”, relembra Vítor Paneira. “Nós cometemos um erro e foi fatal, um erro colectivo em que nós perdemos o controlo do corredor central e o Rijkaard foi por ali fora e fez o único golo”.
O Benfica tinha então a experiência de Eriksson, que conhecia bem o futebol italiano. “Batemo-nos de igual para igual, foi um jogo de equilíbrios e bastou um golo”, recorda ainda Paneira, que diz que num jogo tão fechado, aquele golo de Rijkaard foi uma espécie de sentença. “Percebemos ali que dificilmente conseguiríamos ganhar. Eu penso que era daqueles jogos para se resolver nas grandes penalidades, porque nenhuma equipa se sobrepôs à outra. Foi o jogo naquela edição da Taça dos Campeões Europeus em que o Milan menos dominou o adversário”, frisa ainda o antigo extremo direito, que jogou no Benfica entre 1988 e 1995.
Um Super-Milan
Apesar dos títulos europeus em 1988/89 e 1989/90, o AC MIlan falharia no campeonato em Itália, onde só voltou a ser campeão em 1991/92. Mesmo não sendo totalmente dominante, aquela equipa ainda é hoje recordada como uma das melhores da história do futebol.
“Aquele trio holandês, quer física quer tacticamente eram jogadores fabulosos”, diz Toni. “O Baresi, que era líbero, o Donadoni, que jogava muito… mas não eram só os jogadores, era a forma como a equipa era treinada. Os princípios da zona estavam todos ali, era uma equipa curtíssima, compacta, que atacava e defendia sempre muito junta entre os sectores e isso era fruto da ideia e da concepção que o Sacchi tinha”, explica ainda o então treinador-adjunto do Benfica.
Vítor Paneira, que nesse 23 de maio de 1990 teve como polícia um tal de Paolo Maldini (“Para mim, um dos melhores laterais de sempre”), lembra que aquele Milan era “a base da selecção italiana e também da selecção holandesa” da altura. “Era uma equipa poderosa pelas individualidades, pelo colectivo, pelo jogo táctico e pela inteligência e frieza que tinha”, recorda. Mas o agora treinador lembra também que aquele Benfica vinha de duas finais europeias em três anos: “Estávamos a voltar a colocar o Benfica no topo do panorama internacional”. E a frustração de perder duas finais europeias por quase nada.
E depois há aqueles pormenores que se jogam fora de campo e para os quais o futebol italiano estava então bem mais preparado do que o português.
“Acho que cometemos alguns erros na preparação”, revela Paneira. “A final foi em Viena e o Milan fechou um hotel para a equipa. Ninguém podia entrar nesse hotel. E nós fomos para um hotel em que tínhamos 100 jornalistas à porta, milhares de adeptos a entrarem pelo hall de entrada, a tirar fotografias”. Isto porque, diz o antigo jogador dos encarnados, “o Benfica é o clube do povo”, que está sempre próximo dos adeptos. “Mas isso hoje em dia é impensável, há uma maior protecção das equipas. Não foi um erro propositado, mas estávamos expostos ao contacto, ao adepto, à fotografia, ao autógrafo, enquanto o Milan fretou um avião e ficou num hotel isolado, fora da cidade. Também é isso que faz uma equipa ganhar e há 30 anos já havia equipas a prepararem-se de uma forma mais rigorosa. Não vou dizer profissional, porque nós também éramos profissionais”.
O Benfica, que começou a época de forma demolidora, acabaria aquele 1989/90 sem títulos. “Uma época em que o Benfica não ganhe troféus é uma época de insucessos, embora uma presença na final da Liga dos Campeões seja muito importante. Ajuda a apaziguar a dor, mas não é suficiente”, diz-nos Vítor Paneira.
Foi a última vez que o Benfica esteve numa final da Taça dos Campeões Europeus/Liga dos Campeões. Chegaria à final da Liga Europa em 2013 e 2014, mas a maldição de Guttmann continua a pairar."