"Tudo o que se segue serve para, primeiro, agradecer o enorme trabalho de toda a malta que se ocupou da Rotunda Cosme Damião e a transformou num monumento intemporal e sempre necessário à revitalização da História benfiquista.
Segundo, servirá como catarse para as minhas saudades do Benfica, porque as minhas saudades serão sempre mais dolorosas que a dos outros, já que as deles não poderei eu sentir.
Por último, as sugestões que aqui ficam expostas nunca deverão ser interpretadas como crítica ou achega ao orgásmico trabalho da malta do Mural da Glória, para os quais se mandam fortes e aconchegados cumprimentos, daqueles com tanto carinho que se mete em causa tanto amor extrovertido.
Na Rotunda Cosme Damião constam já os nomes de 39 intérpretes do legado encarnado, pessoas de carácter ímpar que à custa de todo o suor derramado pela águia ancestral, assente na faixa vermelha e verde, se fundiram com o próprio clube. Nomes que se associam imediatamente a tardes e noites de alegrias marcadas a ferro e fogo no imaginário benfiquista.
Aos pusilânimes que por lá passaram há duas semanas, rabiscando de verde os retratos de quem só sentia vermelho: a resposta veio com mais uma catrefada de representações das figuras do Olimpo, porque é assim que respondeu sempre o Benfica – com a genialidade que não deixa ninguém indiferente, sobrepondo-se às invejas com ainda mais virtudes e utilizando o amor incondicional como repelente para o ódio irracional.
Eusébio, Mário Coluna, Rogério Pipi, José Augusto, Chalana, Bento, José Águas, Toni, Shéu Han, Humberto Coelho, Ângelo, Carlos Lisboa, Jonas, Jaime Graça, Nené, Pietra, Diamantino, Guilherme Espírito Santo, Simões, Zé Gato, Francisco Ferreira, Carlos Manuel, Costa Pereira, Cruz, Ricardo Gomes, Vítor Paneira, Valdo, Veloso, Óscar Cardozo, Cavém, Michel Preud’homme, André Lima, António Bastos Lopes, José Torres, José Jardim, Valadas, José Maria Nicolau, Isaías, Mozer.
São estes os ilustres representados até ao momento. Em exercício de reflexão, identificarei cinco notáveis que merecem a homenagem e convido-vos a fazer o mesmo.
1.
Ribeiro dos Reis – Das qualidades pouco ortodoxas, mas eficazes como avançado centro, disseram certo dia que “metia golos com a canela, para ser mais saboroso”, aludindo ao estilo combativo enquanto futebolista: nunca foi um craque assumido, antes jogador sempre comprometido com os objectivos da equipa.
A fama eterna viria do seu carácter nobre, honesto e imparcial, construído na sua formação casapiana, e das distintas competências enquanto militar, jornalista, treinador, dirigente e … árbitro. Foi o primeiro português no Comité de Arbitragem da FIFA e membro da sua Comissão de Regras, de 1952 a ’61.
Um estudioso e entusiasta do jogo e da paixão de uma vida, o Benfica. Em tempos de crise, o clube recorria aos seus préstimos enquanto técnico principal, qual D. Sebastião, para se encarregar de missões quase impossíveis, para as quais tinha sempre o estofo e brios necessários.
Na primeiríssima das vezes, comandou os encarnados à vitória no Campeonato de Lisboa de 1931, interrompendo jejum de 13 anos; no último salvamento, em 1953, ganha a Taça de Portugal – aplica chapa cinco ao FC Porto comandado por Cândido de Oliveira, amigo inseparável (companheiros na fundação d’A Bola, mais Vicente de Melo) que se tornou rival, fruto das circunstâncias da vida.
Foi também pioneiro na Selecção Nacional.
Foi o primeiro seleccionador único e autor da primeira vitória de sempre – 1-0 à Itália, em 1924. Oito anos depois, voltaria a colaborar com a Federação para ajudar em tempos conturbados, na caminhada para o Mundial de 1934. Em jogo para esquecer, acarreta responsabilidades num triste 9-0 sofrido em Chamartín, frente à Espanha: dias depois, em tentativa de desforra, perde 2-1. Abdica imediatamente e, vítima de escárnio avassalador, nunca mais volta.
Torna-se Águia de Ouro em 1943, quando se assinalavam 30 anos ao serviço do Sport Lisboa e Benfica. Assim justificou a direcção merecida homenagem: “Vibrante, sincera, grandiosa, mas sem o falso esmalte protocolar, a alguém do desporto nacional, homem de espírito forte e forte acção, que tem lutado sempre com a mesma fé, indiferente à maledicência, alheio aos manejos da baixa política desportiva. Os murmúrios dos despeitados e dos maldosos nunca o fizeram vacilar no caminho correcto».
2.
Ted Smith – Além de ser o rosto mais vincado de uma heróica conquista da Taça Latina – ao fim de 143 minutos e dois prolongamentos – o que lhe valeu louvores do governo, John Edward Smith destacou-se também pelo papel fulcral na interrupção do poderio sportinguista e dos Cinco Violinos.
É o responsável pela vitória no Nacional de 1950-51, cercando o tetra adversário; vence três Taças de Portugal, descobre um menino chamado José Águas numa digressão em Angola e reformula todo o clube, preparando-o para as exigências do profissionalismo imposto por Otto Glória, anos depois.
Foi um intenso e competitivo defesa direito no Milwall FC, sendo obrigado a interromper a carreira para servir a sua pátria na Segunda Guerra, vindo parar à base das Lajes como muitos outros famosos jogadores seus conterrâneos. É lá que trava conhecimento com Tamagnini Barbosa, presidente encarnado, que discernindo conhecimento suficiente no jovem de 34 anos, desafia-o a suceder a Lipo Hertzcka no comando benfiquista.
A famosa derrota por 10-0 frente à Inglaterra, um ano antes no Jamor, justificou a nacionalidade pretendida pelo dirigente: queria influência britânica no futebol benfiquista, para elevá-lo a patamares de excelência nunca alcançados. Exactamente o que aconteceu. Foi consigo que o Benfica se tornou o mais forte opositor daquele Sporting CP dominador, vencedor de sete campeonatos em oito.
A sua história constrói-se também com episódio caricatos, como o do seu desaparecimento. Corria 1951-52 e um Benfica intoxicado pelos sucessos vai, aos tropeções, caminhando pelas provas nacionais. Numa visita a Guimarães, derrota por 2-1 e motivos suficientes surgiram para Ted Smith avisar a sua saída, alegando «problemas pessoais».
Sem espaço para mais explicações, desaparece do radar e ninguém mais sabe dele. Nos idos de Março, não houve traição, mas surpresa: aparece sem aviso na secretaria do Jardim do Regedor, disposto a reassumir os destinos da equipa principal. Ocasião oportuna, já que ainda ia a tempo de dirigir a equipa no jogo do título, frente ao rival lisboeta. Mas, no Jamor houve derrota (2-3) e as esperanças na vitória final acabaram aí. Um mês depois, saiu definitivamente.
3.
Otto Glória – O pai do profissionalismo no futebol português. Foi ele que inovou em todos os sectores da gestão do futebol benfiquista e preparou o clube para os sucessos da década seguinte. Sem ele, a glória europeia nunca teria sido realidade.
A forma como liderava as suas equipas a toque de chicote, impondo disciplina nunca antes vista, contrastava com a figura paternal que personificava nas alturas mais difíceis, coadjuvada com o aspecto bonacheirão que o seu bigode à escovinha alimentava.
Seu Otto adaptou-se ao nosso país como ninguém, notando-se a influência dos avós: emigrantes em Vera Cruz, impuseram no neto o gosto pelo Vasco e pelo… Benfica. Otto já era benfiquista antes de cá chegar, e a Glória que trazia no nome acompanhou-o à custa de muito trabalho e inovação.
A preparação física foi imediatamente filtro de compromisso, ainda antes do ultimato feito a todos os jogadores – o clube a tempo inteiro ou a porta da saída. Rogério Pipi e Arsénio foram vítimas dos métodos estranhos a início, mas que a todos convenceram com a dobradinha no final do ano de estreia.
É de sua autoria o projecto do Lar de Jogador ou Casa de Concentração – onde viviam solteiros e jogadores vindos das colónias – os quais não podiam estar na rua depois das… 23h, ou o ordenado era cortado em metade. Nas zonas de convívio eram proibidas «palavras de baixo calão, vozerios ou algazarras que perturbem o silêncio, a ordem ou os princípios da boa educação». Os casados, livres de restrições de morada, eram visitados frequentemente por ele ou pelo adjunto, autênticos polícias a assegurar que as regras de nutrição e sono eram cumpridas.
Chegou em 1954 e desde logo causou consternação pelo salário que lhe deu Joaquim Bogalho. Eram 12 contos, o dobro de Szabo no Sporting e Riera no Belenenses, enquanto Fernando Vaz auferia sete nas Antas. Ganhou, em 244 jogos de águia na jaqueta, quatro campeonatos nacionais e três Taças de Portugal, além de chegar a uma final europeia.
Em 1962, quando liderava o Sporting, introduziu no léxico do futebol português famoso ditado – não posso fazer omeletes sem ovos -, quando confrontado com a ausência de resultados. Os sportinguistas, exasperados ficaram com o «desplante» de um treinador que consideravam ser uma… melancia – verde por fora e vermelho por dentro. Despediu-se dias depois, com a honra intacta.
Ao comando da Selecção, foi ele quem levou os Magriços ao bronze em ’66 e quem em ’82 foi resgatado para fazer o mesmo (ou melhor) no Europeu, mas sucumbiu antes de lá chegar com a derrota por 0-5 em Moscovo, frente à URSS.
4.
Simão Sabrosa – O ‘20’ surgiu por força das circunstâncias, já que o número predilecto ocupado estava: «não podendo optar pelo ‘10’, que já tinha dono, encontrou a solução recorrendo a uma simples operação matemática: dez mais dez igual a vinte». Mal imaginava ele que se tornaria a sua imagem de marca e número sagrado de uma geração de benfiquistas que às suas cavalitas saiu do “Vietname” do final dos anos 90.
Era um jogador do Barroco futebolístico. Sustentou a sua eficácia de composição nas trajectórias curvilíneas com que encarava o adversário e a baliza. Da esquerda para o meio, os ziguezagues interpretavam um pensamento sem a rigidez dos ângulos rectos. Criações flexíveis, criatividade efeverscente, os elementos decorativos em doses sempre certeiras.
O remate em arco concluía na perfeição um futebol sempre em prol do colectivo – sem nunca se afastar do génio que se sobrepunha aos talentos em seu redor. Era Simão Sabrosa, o menino que se inventou a si próprio nas longas tardes de peladinhas com o irmão Serafim, que «chegou a ser convidado para jogar no FC Porto», mas que não chegou a ir por imposição dos pais. Os mesmos pais que, anos depois, não tiveram coragem de rejeitar pela segunda vez um convite de um grande. E Simãozinho abalou sozinho rumo a Lisboa, tinha 13 anos. No Estádio de Alvalade viveu até à subida aos seniores, em 1997.
Foi um instante até ganhar preponderância e mudar-se para a Catalunha. Cresceu, marcou num El Clásico, mas não estava pronto ainda. Os 12,5 milhões que o Benfica ofereceu em 2001 convenceram os culés e o regresso a Portugal não incomodou Simão.
Recebido apoteóticamente pelos benfiquistas, teve direito a um abraço de Eusébio na apresentação – estava dado o mote para carreira ímpar, levando os encarnados das piores classificações de sempre ao reencontro das noites europeias do passado, sempre como capitão e figura da equipa.
O título de 2005, 11 anos depois, é a sua grande obra. Líder de uma equipa abnegada, mas sem o talento de outras, Simão foi a jóia que manteve vivo o brilho e a esperança encarnada. Trapattoni era uma velha raposa do futebol europeu, mas dele se socorreu inúmeras vezes, pedidos de ajuda vários que ficam bem representados na frase marcante dita em conferência de imprensa para todos ouvirem, ainda a época ia a meio: «Graças a Deus temos Simão!»
Quando o talento já era demasiado para a Liga Portuguesa, ausentou-se. A braçadeira bem entregue ficou a Rui Costa, Nuno Gomes e Luisão, igualmente símbolos superiores desse ressurgimento.
5.
Luisão – Seu Anderson é um marco na História do Benfica e a proximidade temporal só exigirá a força dos números na argumentação: 15 anos, 20 títulos, 538 jogos, do quais 414 com a braçadeira no braço esquerdo. 766 horas dentro do rectângulo de jogo com a águia ao peito. 46 internacionalizações na Canarinha e seria uma merecida presença na Cosme Damião.
Uma questão de tempo até ter o seu retrato eternizado."