segunda-feira, 4 de maio de 2020

Crime público...

"As tácticas de pressão, coação e intimidação do #PortoaoColo não são propriamente uma novidade nem surpreendem ninguém. São décadas de esquemas, corrupção, vigarice e promiscuidade que envergonha o futebol português.
No entanto, actualmente, assistimos a todo um novo estatuto de falta de vergonha e condicionamento absolutamente deplorável. A Torre das Antas sente-se no direito de dispor de tudo e todos, pressionando de forma clara e deliberada, no espaço mediático, aqueles que podem julgar processos ou ser nomeados para cargos públicos ou federativos.
Depois da rábula do Juiz Benfiquista, temos agora, a pressão para evitar a nomeação de Cláudia Cruz Santos para o Conselho de Disciplina, por pasme-se, cometer esse crime de alegadamente ser Benfiquista.
E é isto que se quer implementar em Portugal. Formação? Mérito profissional? Competência? Nada disso parece ser requisito principal, apenas que não seja adepto(a) do Sport Lisboa e Benfica.
Para fomentar este objectivo, todas as narrativas servem e novos soldados se multiplicam.
Desta feita, entrou em cena o antigo Presidente da Liga, Mário Figueiredo. O tal que estava ao serviço do SL Benfica, mas aparece a fazer a defesa acérrima do FC Porto, com uma dedicação que lhe devemos reconhecer, em nada fica atrás dos cartilhados e acéfalos do costume.
Existe alguma relação com o facto de ser ex associado de Adelino Caldeira - tendo tido inclusive um diferendo em tribunal – e tudo isto, não passar de uma bela encomenda como parte do acordo?
Toda a sua narrativa é de bradar aos céus.
Acusa Cláudia Santos de perseguir e ter uma inimizade contra as pessoas do FC Porto, ao ponto de “também é sabido que a mesma apresenta(va) nas suas aulas o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto que absolveu o FCP do crime de corrupção no “apito dourado” como um “exemplo de escola” de como não se deve julgar um caso de corrupção, pois a mesma entende, como ensina nas suas aulas, que o FCP SAD deveria ter sido condenado pelo crime de corrupção”
Portanto, não ser conivente nem concordante com um dos maiores escândalos do futebol mundial, é sinónimo de ter inimizade?
As pessoas sérias, competentes e isentas, são aquelas que defendem ou sustentam a corrupção?
Como se não bastasse, sobre a escolha de Cláudia Santos no seu mandato, afirma: “Foi me sugerida por um advogado do FC Porto”.
Ora, ficamos a saber, que as pessoas nomeadas durante a sua Presidência, eram escolhidas por pessoas do #PortoaoColo.
É apenas isto que está a acontecer e de uma forma ainda mais descarada do que a história obscura nos conta.
Eles mandam nisto tudo e já nem se dão ao trabalho de o esconder, é para quem quiser ver!"

Mensagem do treinador do futebol, Bruno Lage

"Estamos de regresso!
Há muito tempo que esperávamos o que hoje acontece: voltar ao Seixal, voltar à relva, voltar a preparar o que falta cumprir da temporada 2019/20.
Sabemos que, infelizmente, e pelas piores razões, a situação ainda está muito longe de ser a ideal.
O regresso à competição nunca deixou de estar no nosso horizonte e, por isso, tentámos encontrar as melhores soluções e as melhores práticas para nos mantermos "ligados", mesmo à distância, nunca deixando de continuar a trabalhar.
Essa fase terminou e vamos agora passar à seguinte, num contexto que continua a ser inédito para treinadores e futebolistas. Não será por isso que deixaremos de andar "a mil", nem será isso que nos fará esquecer – por um minuto que seja – os objectivos que mantemos para a parte final da época.
O momento é especial e exige, portanto, que todo o resto seja igualmente especial: o foco, o empenho e o compromisso. É isso que temos em mente, todos, no Benfica Campus.
Hoje de manhã, quando voltámos a "casa", sabemos que ficou a faltar menos um dia para o próximo jogo. Entrámos em contagem decrescente, sabendo, como sempre, que todos os treinos contam. Mesmo os que vamos ter de fazer, durante algum tempo, com os jogadores em trabalho individual. 
Como já tive oportunidade de dizer a todos os Jogadores e a todo o Staff do Sport Lisboa e Benfica, é uma enorme honra e um orgulho ser treinador deste grande Clube num momento tão particular das nossas vidas.
Os planos de trabalho estão prontos e chegou a hora de começar a executá-los. Estamos determinados em fazer uma ponta final ao nível da nossa competência, correspondendo da melhor forma ao que um Clube com esta dimensão merece.
Vamos correr muito! Vamos fazê-lo por todos os adeptos e por quem sempre tem tudo feito para que nada falte a este grupo de trabalho.
Não posso deixar de falar na posição social de grande destaque que, nas últimas semanas, o Futebol Profissional do Benfica teve a capacidade de exibir.
Exemplar. Bruno Lage"

Eu, benfiquista, celebrei o 5-0 do Porto em Bremen e o título do Sporting em 2000

"Vamos lá. No futebol ninguém fica feliz, exuberante e desmedidamente feliz, com a sorte e o sucesso dos adversários, dos “figadais inimigos”. É possível, no entanto, uma espécie particular, pouco estudada, de alegria. Dúbia, contrariada, até incómoda, mas, ainda assim, alegria. Sei que existe porque já a experimentei.
E não falo do patriotismo obrigatório de “puxar pelos nossos” quando jogam “lá fora”. Compreendo a situação extraordinária dos nossos emigrantes e a estirpe de patriotismo cuja génese é a distância de casa, as saudades do sol e o viver rodeado de bárbaros. Mas eu não sou emigrante. Quando me sento para assistir a um jogo europeu do Porto ou do Sporting não espero nada menos do que uma humilhação, um descalabro épico, um desastre atómico, uma paulada de tal forma contundente que a esperança é que, no fim do jogo, os adeptos queiram comer vivos os jogadores, defendam a decapitação dos directores.
O meu sonho é que no final de uma dessas tareias monumentais, o presidente do rival apareça aos jornalistas com a alma a escorrer sangue e, de lágrimas nos olhos, aos soluços, sem réstia de dignidade, faça como o divino Hirohito e comunique ao seu povo: “já chega. Amanhã fechamos.” Nunca aconteceu? Dificilmente acontecerá? Quero lá saber. Sonhar é grátis.
E consola-me a certeza de que o sentimento é recíproco, de que após a fenomenal derrocada em Vigo e as cenas deprimentes que se seguiram, com jogadores cabisbaixos como criminosos apanhados em flagrante delito a murmurarem pedidos de desculpa escritos por um qualquer vogal da mesa da assembleia geral, o coração de sportinguistas e portistas se encheu de uma felicidade indizível, recebeu uma injecção da mais pura e incontaminada bem-aventurança, um vislumbre das delícias celestiais que aguardam os fiéis de todos os credos.
Esse dia infame, de todos o mais negro do benfiquismo, foi para os nossos rivais, sei-o de ciência certa, um dia inicial, inteiro, limpo de nuvens e de tristeza. Senti algo semelhante nas derrotas mais dolorosas dos nossos adversários – como escapar ao júbilo de uma Taça Uefa perdida em casa contra uns russos de recorte brasileiro? Como esquecer a vitória do esquecível Artmedia numa distante noite no Dragão? Schadenfreude, chamam os alemães a esta alegria pela desgraça dos outros e pergunto-me se haverá palavra no léxico alemão, ou em qualquer outro, para a tímida alegria que certas vitórias dos maiores rivais nos trazem.
Viajo até uma noite europeia de 1994. O Porto deslocava-se a Bremen para enfrentar o campeão alemão na Liga dos Campeões. O conflito étnico Benfica-Porto estava no auge e os artistas e caceteiros das Antas, auxiliados em certas ocasiões por juízes de carne e espírito fracos, costumavam infligir-nos dolorosos danos. Kostadinov, Domingos, Paulinho Santos, André, Timofte e Fernando Couto, entre tantos outros, eram matéria de pesadelos para os benfiquistas.
Desejava eu uma vitória dos azuis-e-brancos em terras germânicas? Nem por sombras. Queria mais era que os alemães os atropelassem, lhes dessem uma coça histórica e que, no regresso a Portugal, a comitiva portista fosse recebida por uma turba de super-dragões a babarem de fúria. E o que é que aconteceu? O Porto ganhou por 5-0. Cinco a zero em casa do campeão alemão. Nunca tinha acontecido e acho que nunca mais aconteceu. Eu, que assisti ao jogo na companhia do meu primo Fernando Braz, o mais sofredor de todos os portistas que alguma vez conheci, tive de me render aí por volta dos 4-0, um golo magnífico de Domingos, que tinha saído do banco e festejou com braço direito a desenhar espirais de vitória e o seu nariz vermelho de uma eterna constipação.
O meu primo gritou, saltou para o sofá, correu para a cozinha, abriu uma garrafa de espumante, chorou de felicidade e eu acompanhei-o. Ele, adepto do seu clube, eu, adepto da alegria. Quando o Sporting conquistou o campeonato que lhe fugia há dezoito anos, no ano 2000, também saí para as ruas e festejei com amigos sportinguistas que nunca tinham experimentado o doce sabor da vitória. 
Quando o Porto derrotou o Celtic na final da Taça Uefa em 2003, fiquei feliz porque quer o treinador Martin O’Neill, quer a generalidade da imprensa britânica, passaram o tempo a criticar o futebol negativo e as “dark arts” do adversário, incapazes de reconhecer a qualidade de uma equipa que nas meias-finais tinha arrasado a Lazio de Roma, naquela que considero uma das melhores exibições de sempre de um clube português nas competições europeias.
Que os adeptos adversários dos outros clubes não vejam nisto nenhuma espécie de condescendência. Quando muito, haverá um irresistível parasitismo. A alegria pela desgraça alheia não tem substância, é só casca. Dura pouco e quebra-se com facilidade. A alegria pela alegria dos outros, dos rivais, é igualmente efémera, ainda mais complexa, mas não menos real. É uma alegria fantasmagórica, o antegosto de um prazer que nos foge. É o desejo da alegria que queríamos para nós."

Futuro do futebol não está garantido

"Vivemos o tempo do impensável. O presente desafia-nos e ao olharmos para o futuro já não alcançamos o que antes parecia certo. O futuro do futebol, lamento dizê-lo, não está garantido.

O que pode – e o que deve – fazer o presidente da organização que tutela um desporto com a força e a presença do futebol num momento como este? Tenho vivido muitas horas com esta pergunta, nas últimas semanas. Desconfio que não existirá uma resposta escrita algures, pronta a ser partilhada. Como todos no mundo, tateamos caminhos. Ainda assim, algumas respostas exigem de nós e algumas respostas saberemos ser capazes de dar. As águas turquesa do lago Urmia, no Irão, “foram substituídas por um deserto infinito”
Este artigo é a partilha pública das minhas respostas, que partem de uma evidência: o futuro do futebol não está garantido.
Estamos a começar um dos meses mais importantes do futebol português, em que tudo faremos para continuar a estar à altura da confiança que depositaram neste setor e em que nos prepararemos para voltar a competir. É uma oportunidade que não podemos desperdiçar, até porque um pouco por todo o lado estarão a olhar para o nosso comportamento.
De uma certa forma, é começar de novo. Temos de começar bem.

Ajudar
Num contexto de uma crise sanitária sem precedentes, a Federação Portuguesa de Futebol usou a sua capacidade de intervenção pública para ampliar mensagens dos organismos oficiais e colaborar no auxílio aos que mais precisam, no cumprimento daquela que é também uma das missões da FPF: ajudar.
O eclodir desta crise veio sublinhar, todos os dias, que nos devemos concentrar no essencial, que temos de dar primazia ao bem-estar comum, e só a seguir no nosso interesse individual.
Como economista de formação, acredito que os princípios que poderemos adoptar, doravante, nas nossas empresas, nos nossos clubes, têm, obrigatoriamente, de mudar.
O futebol, como a própria sociedade, tem vivido num modelo económico e comunitário estruturalmente baseado na velocidade das interacções. Temos pensado de menos no amanhã.
O desporto profissional parece, de facto, ser o local por excelência do curto prazo.

Pensar além da paixão
O mercado que fecha, o remate que sai ao lado, o golo no último minuto. A festa, a derrota. Tudo parece inadiável. Pouco parece dependente da racionalidade, da capacidade de estudar e prever. 
Apesar da sua natureza fugidia, própria de um desporto jogado com uma bola, o futebol tem de ser capaz de pensar mais além da paixão.
Confrontados com esta paragem, um paradigma inteiramente novo, teremos de partir para a construção de um novo caminho.
Nesta hora de abertura parcial da sociedade, acredito que uma das principais prioridades do futebol nacional será tornar a sua actividade mais sólida.
O bem maior do accionista, digo-o sem reservas, é a sua empresa, o seu clube, a missão que persegue e não o lucro conjuntural de um ano ou outro.
Apesar de entender que temos aspectos a melhorar, devo ser claro num aspecto: o futebol não enfrenta uma crise sistémica, os seus dirigentes merecem a confiança da banca. Merecem, afirmo, ser olhados de outra forma.
Se o tom parece professoral, de quem dita uma lição, a falha é minha. Não se trata disso, mas apenas da partilha de conhecimentos, de reflexões e de convicções que no meu caso não são de hoje. 
Teremos, nós os do futebol, de introduzir critérios mais exigentes na construção dos nossos projectos desportivos. Escolher bem directores desportivos, treinadores, jogadores. Ultrapassada esta conjuntura extraordinária, teremos de evitar as trocas constantes de recursos humanos ao primeiro sinal de que as coisas não correm conforme o planeado.
A persistência, a resiliência e o trabalho colectivo dão resultados. A FPF, recordo, desde o início de funções da actual direcção, há oito anos, só trocou de Seleccionador Nacional uma vez. O primeiro título internacional em todos os escalões e vertentes só surgiu depois de jogarmos cinco finais. O primeiro título europeu só foi conquistado após 102 anos de história federativa. Não é, mais uma vez, uma lição. É uma forma de olhar.

Emprego
São dois mil os clubes que competem em Portugal. Número semelhante de jogadores profissionais. À luz dos critérios da FIFA, temos mais de 268 mil atletas federados. O futebol representa 0,25 por cento do PIB português de acordo com estudo recente. Estes são dados e números que obrigam a reflexão séria e ponderada.
Será que o futebol português, com a dimensão que o país tem, é capaz de garantir aos jogadores cerca de dois mil empregos de qualidade? Não podemos permitir que se vendam ilusões a jovens. Temos o dever de os proteger, criar mecanismos que lhes permitam tomar as melhores decisões e tornar óbvia a diferença entre profissional e amador.
A destruição de empregos não é um dano colateral desta pandemia. É um processo que corre paralelo e que obrigou a sociedade a montar simultaneamente duas linhas de apoio: uma para o serviço nacional de saúde e seus profissionais, outra para as empresas e seus trabalhadores.
O futebol não escapou – não podia escapar… - e todos os clubes, treinadores e jogadores sentiram e vão continuar a sentir o impacto. Numa altura destas, o regulador questiona-se: será que fizemos tudo o que era necessário para impedir que algumas dezenas de atletas vivessem situações delicadas? A resposta, infelizmente, é não.
Podíamos ter feito mais, teremos de fazer mais para evitar que se repita. E vamos fazer, não permitindo o profissionalismo encapotado e os projectos que se anunciam sustentados, mas que de responsáveis pouco têm.
Neste campo, é justo salientar o papel responsável das organizações de classe. Sindicato dos Jogadores, ANTF e APAF tiveram, em regra, posições equilibradas. Procuraram defender o seu sector, sem esquecer as dificuldades globais do futebol.

Competir
A competitividade é um valor essencial que teremos de assegurar, nomeadamente através da construção ou da afinação dos nossos quadros competitivos. Também aqui temos de fazer mais, construir provas desportivamente rentáveis, socialmente relevantes e economicamente viáveis.
Nestes tempos difíceis, assistimos também a incríveis exemplos de solidariedade. De resto, registo com enorme esperança os sinais que, ao longo desta crise e noutras ocasiões, os clubes deram aos portugueses através de várias acções solidárias a favor dos mais desprotegidos. O futebol do futuro terá sempre de passar por estas áreas de intervenção. O futebol vende o mais frágil dos produtos: relação.
Retive também o comportamento próximo e empenhado dos parceiros do futebol, as marcas que nos habituámos a associar ao jogo que amamos. Não deixaremos de nos lembrar dos que souberam estar ao nosso lado neste tempo difícil.
Todas estas pistas poderão ajudar, arrisco, o próprio futebol português a olhar-se ao espelho e a definir o papel que quer ter no mundo. Até pelas qualidades que os portugueses têm dado mostra ao longo do combate à covid-19, poderemos ser vistos como um país que faz melhor com menos recursos.
Acredito que poderemos viver de acordo com esse extraordinário objectivo de nos assumirmos como verdadeira fábrica de futebol. Uma fábrica inovadora, imaginativa e sábia.
Para lá chegarmos teremos, todavia, de assumir que a Liga NOS e as selecções portuguesas são o local para onde queremos que o mundo do futebol olhe. Constantemente, com interesse e curiosidade.
Isso acontecerá se formos capazes de apostar em plantéis mais curtos e na criação de equipas B e de sub-23, formadas por jovens talentos diariamente postos à prova em competições sólidas e exigentes. 
Viabilizar o acesso constante dos mais jovens aos patamares máximos.
A Liga Revelação, que lançámos em conjunto com os clubes, é um exemplo. Deu palco e espaço competitivo ao jovem futebolista português: mais de 100 jogadores alcançaram a Liga NOS em 2018/19 e mais de 70 o fizeram esta época. Tornou-se, enfim, uma fonte importante de recrutamento para as nossas Selecções.
Esta cultura de base permitiu a Portugal ver a sua Selecção principal marcar presença em todas as fases finais de Europeus e Mundiais disputadas este século. Espanha, Alemanha e França, curiosamente os três últimos campeões do mundo, fizeram igual.

Nós e a Europa
Esta época terminaremos em sexto no ranking UEFA, o que nos permitirá aumentar a presença portuguesa nas competições europeias. Como disse no início, acredito que nas próximas semanas saberemos merecer a confiança das autoridades e decidir em campo os nossos representantes.
Num círculo virtuoso, se formos competitivos e continuarmos a apostar na excelência nas áreas da formação dos mais jovens, o reconhecimento internacional acontecerá, as receitas económicas aumentarão e as apostas originais terão ainda mais hipóteses de se tornarem a norma.
Se sabemos que deveríamos ser mais igualitários e solidários na distribuição de receitas, temos principalmente de conseguir diversificar as fontes de financiamento do futebol nacional.
Os orçamentos dos grandes clubes portugueses não podem estar dependentes - cerca de um quarto de todas as suas receitas! - das participações nas competições europeias. Mas se essa é a realidade actual, a competitividade internacional dos clubes portugueses tem de ser um eixo fundamental. Esse será sempre trabalho de muitos, mesmo os que não se apuram com regularidade para as provas da UEFA.
A venda dos direitos televisivos de uma liga forte e competitiva para outros países, hoje financeiramente inexpressivos, poderá ajudar-nos a chegar mais perto de Inglaterra, Itália, Alemanha, França e Espanha, países que já dividem entre si 75% de todas as receitas do futebol europeu. Para termos uma ideia realista do nosso ponto de partida basta saber que quase noventa por cento das receitas dos clubes ingleses resultam da comercialização dos direitos internacionais da Premier League.
De repente, todos nos encontrámos com um pouco mais de tempo. Distantes de amigos e familiares, mas com mais tempo. O tempo tornou-se útil, uma expressão que usamos tantas vezes no futebol: tempo útil. Precisamos que aumente, para que o jogo se torne melhor. Da nossa parte as opções estão feitas: queremos, como temos preconizado nas nossas provas e selecções nacionais, um jogo com mais qualidade técnica, menos faltas, mais respeito pela arbitragem e mais respeito entre pares.
Os nossos clubes, urge concluir, têm de aceitar que as regras precisam de ser duras, apertadas e para cumprir. Só assim poderemos terminar este ciclo de violência física e verbal que nada tem a ver com o futebol. Só assim faremos as famílias regressar ao centro do nosso desporto.

Futuro do futebol incerto
Vivemos o tempo do impensável. O presente desafia-nos e ao olharmos para o futuro já não alcançamos o que antes parecia certo.
O futuro do futebol, lamento dizê-lo, não está garantido.
O futebol, durante muitos anos, parecia o centro da vida para muitas pessoas, mas, não aligeiremos as palavras, já todos percebemos que não é. As pessoas conseguem viver sem futebol. É verdade que viverão pior, que serão mais pobres, que lhes faltará o prazer estético, a emoção, a alegria, a comunhão, a paixão. Mas viverão.
Temos de construir, hoje, um novo futebol. Com a consciência de que a invenção do futuro é a nossa melhor tradição. Para este desafio, poderão sempre contar com a Federação Portuguesa de Futebol."

Possibilidade de retoma

"Chegam de alguns quadrantes indicações de que os jogadores não estarão ainda completamente disponíveis para voltarem à actividade com uma pandemia a decorrer e a ameaçar a segurança de todos nós

A expressão, “possibilidade de retoma”, é do Secretário de Estado do Desporto dada à estampa numa das últimas edições do diário "Record".
Ou seja, João Paulo Rebelo não dá como adquirida a certeza de que haverá futebol a sério no próximo mês de Junho, havendo para isso necessidade de dar alguns passos considerados fundamentais para que seja dada luz verde à competição. A ideia é ir avaliando as diversas circunstâncias que iremos ter pela frente e que, neste momento, não é possível prever.
Por exemplo, um eventual aumento do número de casos Covid-19 poderá determinar o cancelamento das decisões ora tomadas. Entretanto, a Comissão Médica designada para efectuar o estudo das condições exigidas para o regresso do futebol já foi adiantando algumas ideias.
Assim, já se sabe que vão ser necessários quatro balneários em cada estádio, bem como dois autocarros para cada uma das equipas. Não sendo uma coisa sobrenatural, trata-se de dois pressupostos que não vão ser fáceis de cumprir.
Para além de tudo isto há também uma questão que envolve aqueles que devem ser considerados como os elementos mais preponderantes do jogo, os jogadores. Contrariando expectativas, os jogadores ainda não foram ouvidos, e o seu representante sindical nem sequer foi chamado à reunião de São Bento, na qual participaram a Federação, a Liga e os três clubes principais, o que não teria sido desajustado.
É que, sem grande estrondo, chegam de alguns quadrantes indicações de que os jogadores não estarão ainda completamente disponíveis para voltarem à actividade com uma pandemia a decorrer e a ameaçar a segurança de todos nós.
Talvez esse facto justifique a indecisão que ainda se regista em países onde o futebol é preponderante, tais como a Inglaterra, a Espanha e a Itália, sabendo-se também que na Alemanha a Chanceler Merkel travou algum entusiasmo naqueles seus concidadãos que desejam o regresso para breve e sem condições da Bundesliga.
Sabemos todos da grande motivação que une os principais dirigentes do futebol português: a falência técnica a que chegaram os clubes que dirigem obriga a encontrar soluções para o desvario que agora quase os sufoca."

As 5 promessas por cumprir da formação encarnada

"O Caixa Futebol Campus tem sido um verdadeira mina de ouro para os encarnados, que têm conseguido extrair muita (e boa) matéria prima da sua formação. Jogadores como Bernardo Silva, João Cancelo e João Félix são exemplo disso mesmo.
Contudo, também há jogadores que são considerados como o futuro da sua geração e que, no entanto, não correspondem às expectativas que lhes foram atribuídas.
Esta artigo tem o intuito de lembrar alguns jogadores do passado recente do SL Benfica que tiveram sub-rendimento face àquilo que era esperado dos mesmos.
A lista não segue qualquer ordem específica e vai ao encontro daquilo que, pessoalmente, esperava dos jogadores em questão.

1. Renato Sanches O “bulo” da Musgueira cresceu a respirar Benfica, e saiu da Luz para o Bayern Munique como um possível futuro “Bola de Ouro”.
Actualmente com 22 anos e com toda uma carreira pela frente, Renato é uma promessa por cumprir. Em Portugal mostrou que é capaz de tudo e mais um par de botas, mas “lá fora” a experiência não tem corrido bem.
Na Alemanha, esteve sempre tapado por grandes jogadores do plantel da Baviera, e, em Inglaterra, no Swansea City AFC, o empréstimo não correu da melhor forma.
No entanto, esta temporada, transferiu-se para o Lille OSCM, e as coisas parecem estar a mudar. Foi um dos melhores médios da Ligue 1 e, finalmente, começa a dar cartas fora de Portugal.
Só espero que Renato se consiga afirmar definitivamente, e cumpra aquilo que se espera de um “Golden Boy”.
Vai, puto!

2. Nélson OliveiraEsta é, provavelmente, uma das maiores desilusões da formação de SL Benfica. 
Um ponta de lança que chegou a ser internacional A, foi o segundo melhor jogador do Mundial de sub-20, foi convocado para o Europeu de 2012 e, depois, desapareceu…
Nélson esteve tantas vezes emprestado na sua carreira que fica difícil enumerar todos os clubes, mas digamos que já jogou em seis (!) campeonatos diferentes.
Com 28 anos, Nélson Oliveira, que chegou a andar na rota do Chelsea FC e do FC Barcelona, joga nos gregos do AEK, e está a realizar uma temporada de alto nível, tendo apontado 11 golos em 23 jogos.
Mas esperava-se mais, muito mais. Nélson era um daqueles jogadores que vinha para colmatar a falta de “pontas” na selecção portuguesa e que iria jogar num dos grandes clubes europeus. Infelizmente, nada disso aconteceu.

3. Hélder CostaCuriosamente, os percursos de Hélder Costa e Ivan Cavaleiro estiveram sempre em sintonia até ao início desta temporada.
Ambos com 26 anos, foram formados no Seixal e seguiram o mesmo caminho no pós-Benfica. Um empréstimo ao RC Deportivo de Corunha, representaram os dois o Mónaco na mesma temporada e ainda rumaram os dois ao Wolverhampton Wanderers FC no mesmo ano.
Só nesta temporada de 2019/20 é que os seus caminhos seguiram rumos diferentes, ainda que actuem ambos na mesma liga, o Championship, segunda divisão do futebol inglês.
Actualmente a representar o Leeds United FC, Hélder Costa já disputou 40 jogos na presente época e marcou apenas quatro golos.
Hélder era, nos tempos de águia ao peito, uma das grandes expectativas da formação encarnada, mas não conseguiu corresponder ao potencial que lhe era atribuído.

4. Ivan Cavaleiro Ivan Cavaleiro é um dos jogadores que saíram da Luz por 15 milhões de euros. Joga, actualmente, no Fulham FC, da segunda divisão inglesa.
O jogador português era uma das grandes expectativas do Caixa Futebol Campus e a sua saída para o AS Monaco fazia prever uma carreira sempre em ascensão. Mas não.
O jogador teve dificuldades em adaptar-se ao campeonato francês. Ao serviço do clube do principado, realizou 22 jogos e fez balançar as redes por três ocasiões.
Seguiu-se a aventura por “terras de Sua Majestade”, por onde ainda continua. Em Inglaterra, ao serviço do clube mais português fora de Portugal, os “Wolves”, Ivan mostrou um bom desempenho, apontado 19 tentos em 106 jogos. No entanto, acabou por ser transferido para o Fulham, onde a temporada tem sido mediana – leva seis golos em 38 partidas.
Ivan Cavaleiro é um jogador em quem, pessoalmente, depositava grandes esperanças, e que assumi que estivesse na alta roda do futebol europeu. Contudo, não foi o que aconteceu até agora.

5. José Gomes Calma, calma. José Gomes não é nenhum flop, nem nenhuma promessa falhada. Digamos que é uma promessa que não está a cumprir.
Actualmente, o jogador tem 21 anos, o que significa que tem uma margem de progressão bastante elevada. No entanto, o rumo que a sua carreira levou não é, definitivamente, aquele que era o esperado.
“Zé Golo” fez toda a sua formação no Sport Lisboa e Benfica, e marcava golos que se fartava! 
Acabou por sair do clube encarnado rumo a Portimão, para representar o Portimonense SC, mas essa etapa não lhe correu de feição, tendo disputado apenas duas partidas e não tendo apontado nenhum golo. Seguiu-se a experiência na Polónia, ao serviço do Lechia Gdansk, e, nesta temporada, disputou até agora três jogos, tendo marcado um golo.
Acredito que este jogador consiga reverter o rumo que a sua carreira está a levar e que volte a encarrilhar naquilo que era esperado de si."

“Os homens dizem-me I love you, fazem corações, dão flores, mandam beijinhos como mandamos às senhoras, beijam mãos e espalham”

"Acabado de chegar da Arábia Saudita onde comemorou os 50 anos, em plena pandemia, Rui Vitória diz ainda não saber se vai renovar com o Al Nassr. Numa entrevista realizada por telefone, enquanto estava na Arábia, o treinador que levou o Benfica ao tetra, foi descrevendo o filme da sua vida profissional e pessoal, que começou em Alverca, passou por Vila Franca de Xira, Paços de Ferreira, Fátima, Guimarães antes de chegar ao Benfica, onde ganhou seis títulos em três anos e meio. Com dois casamentos e quatro filhos, chegou a ter uma pastelaria, aprendeu a tocar bateria, e foi chamado de pé de chumbo quando jogava. A morte repentina dos pais, quando tinha 32 anos, moldou-lhe o carácter que, garante, sempre foi calmo

Nasceu em Alverca do Ribatejo. Apresente-nos a família.
Sou filho de um casal perfeitamente estruturado. O meu pai era soldador, a minha mãe escriturária. Tenho um irmão mais velho seis anos que hoje é uma jóia de pessoa, mas que em pequeno era mais traquina do que eu. Sempre nos demos bem, mas quando éramos miúdos eu chateava-o muito porque queria andar com ele e com os amigos dele e naquelas idades o meu irmão não gostava disso.

O Rui era uma criança sossegada?
Sim, sempre fui aquele dócil e afável, era muito tranquilo, na escola um bom aluno. Não me lembro de dar grandes problemas aos meus pais, que tinham comigo uma supervisão à distância. Eles sempre me acompanharam, mas sem uma grande pressão, no fundo davam liberdade mas com um bom controle.

Como e quando nasce a paixão pelo futebol?
Muito cedo. Desde criança que a minha principal brincadeira era estar na rua com os amigos a jogar à bola. Depois comecei a acompanhar o meu pai para ver os jogos do Alverca. Foi com ele de mão dada que comecei a viver o futebol de uma outra forma. Lembro-me de ir logo às nove da manhã de domingo ver o primeiro jogo. Muitas vezes era ir de manhã, vir almoçar a casa e depois ir ver os seniores, à tarde. Portanto foi uma ligação muito forte, que começou muito cedo.

Havia alguém na família a jogar futebol?
O meu pai foi jogador, era guarda-redes e ainda chegou a ser treinador de escalões jovens. O meu irmão também jogou mas acabou muito cedo, praticamente só esteve nos escalões de formação. 

Torcia por que clube quando era pequeno?
Em nossa casa o clube mais representativo, daqueles que qualquer miúdo e qualquer família tem, era o Benfica. Mas eu adorava o Alverca. A minha realidade do dia-a-dia era o Alverca. Havia uma grande ligação ao Alverca que nós vivemos intensamente.

Quem eram os seus ídolos?
Nunca fui de ter ídolos, nunca tive um poster no meu quarto, nunca fiz grandes colecções… Mas em criança quando me iniciei a jogar como médio comecei a olhar para o Platini e para o João Alves, porque eram daquela posição. Tentava ver como jogavam, de que forma é que jogavam. Posteriormente tive oportunidade de ver o Maradona jogar e era impossível haver alguém que não admirasse o Maradona, por isso talvez sejam estas referências, mas nunca no sentido exagerado.

Quando era pequeno o que dizia que queria ser quando fosse grande?
Desde muito cedo defini muito bem aquilo que queria para mim. Em criança era o sonho de ser jogador de futebol, na juventude comecei a pensar em ser professor de Educação Física e no início da idade adulta comecei a pensar que gostava de ser treinador. Felizmente acabei por conseguir alcançar aquilo que idealizava.

Gostava da escola?
Como eu costumo dizer, quando somos crianças gostamos da escola só não gostamos muito de ter aulas [risos]. Mas sempre fui bom aluno, nunca tive qualquer negativa. Somente quando cheguei ao 12.º ano, aí sim, tive uma pancada quis armar-me só em jogador de futebol e desleixei-me um bocado, pensei para mim: “se chumbar o ano também não faz mal”. E acabei por chumbar mesmo. No ano seguinte fiz o 12.º ano e entrei para a faculdade.

Quando e como começa a jogar num clube?
Comecei com nove anos no Futebol Clube Alverca. Fui aos treinos de captação nos infantis e fiz toda a minha formação no Alverca. Foi lá que aprendi muitos dos valores que transportamos para a vida. Em seniores saí do clube e fui para a III divisão jogar no Fanhões, depois fui andando pelas segundas divisões cheguei à II liga e só não joguei mesmo na I liga.

A passagem para sénior acontece quando?
Na segunda fase da minha primeira época como júnior comecei a trabalhar com os seniores. Fiz a minha estreia ainda com idade júnior no último jogo da época, no pelado do Estrela de Vendas Novas. Foi aí que começou o futebol sénior. Aquilo que me lembro foi de ter um nervosismo maior, mas sinceramente nada de muito especial.

Como vai parar ao Fanhões?
Vou para o Fanhões porque no final dessa época o Alverca convida-me a mim e a mais alguns jogadores juniores para fazermos parte do plantel sénior, mas eu não gostei muito da forma como abordaram a situação. Eles fizeram o que era normal, dar uma oportunidade aos jovens, mas tiraram-me a esperança de poder vir a jogar no ano seguinte. Eu na altura já tinha sido abordado pelo Fanhões e o Vilafranquense. O Alverca tinha acabado de subir à II divisão, mas decidi ir para Fanhões porque ia trabalhar com um treinador, o António Baguinho, que me conhecia e que também queria muito que eu fosse para lá. Foi um ano que correu muito bem, comecei a jogar logo no primeiro encontro e, se a memória não me falha, só faltei os últimos 20 minutos do último jogo do campeonato. Fui quase totalista no primeiro ano de sénior.

Em que posição jogava? Quando e como se define essa posição?
Quando comecei, com nove anos, jogava a defesa central. Depois pelos 14 anos, talvez em iniciados, passei para médio centro e foi aí que fiz a minha carreira enquanto jogador.

Qual o valor do primeiro ordenado, recorda-se?
O primeiro ordenado como jogador foram 15 contos (75€). E tenho uma história. Quando fui contratado, as pessoas do Fanhões disseram-me que se começasse a fazer parte dos 16 convocados, aumentavam logo esse valor. Recordo-me de lhes ter dito para se preparem para começar a rever o meu ordenado no primeiro ou segundo mês [risos]. Foi exactamente isso que aconteceu. Começo logo em Agosto a jogar os jogos de preparação e salvo erro no primeiro ou segundo mês passaram-me o salário para 25 contos (125€).

O que fez com esse primeiro dinheiro?
Eu tinha 18 anos e fiquei com o dinheiro. Os meus pais não eram de grandes posses, mas não havia necessidade de lhes dar o dinheiro. Nesse ano acabei por comprar o meu primeiro carro, um Citroën Dyane. Contei com algum dinheiro emprestado dos meus pais e fui-lhes pagando.

Namoros e saídas à noite quando começam?
Sempre fui um jovem equilibrado, tinha naturalmente os namoros normais da juventude mas nunca tive grandes problemas com noitadas ou com qualquer coisa do género. O futebol ensinou-me desde muito cedo a responsabilidade que era necessário ter. Também fui capitão em alguns anos de formação e portanto sentia ainda mais essa responsabilidade. Comecei com o namoro mais a sério por volta dos 16 anos e que acabou por dar em casamento.

Quando e por que razão troca o Fanhões pelo Vilafranquense?
Na minha segunda época no Fanhões, joguei mas não fui totalista. Entretanto o Vilafranquense convida-me e como tenho lá amigos, estava mais perto de casa, acabei por mudar.

Esteve seis épocas no Vilafranquense. Quais as mais marcantes e porquê?
O Vilafranquense foi o clube que eu mais representei no futebol sénior. Acabou por ser marcante porque foi enquanto lá joguei que me formei, que me casei, que fui pai pela primeira vez. Aliado a isto tudo foram épocas boas em que ganhei também importância dentro do clube - fui capitão da equipa sénior. No fundo foi ali que me fiz homem porque entrei com 20 anos, estive seis anos seguidos e mais dois posteriormente. Foi também lá que tive a minha primeira experiência como treinador de futebol porque, no final da minha licenciatura, num acordo que havia com a faculdade, comecei a treinar uma equipa de escolas e infantis. Fazia-o antes de começar o meu treino. Dava treino aos infantis e logo de seguida começava o meu treino nos seniores.

Lembra-se do dia em que foi pai?
Claro. Tive a minha primeira filha, a Mariana em 1999, tinha eu 28 anos, jogava o Vilafranquense na II divisão. Fui pai de manhã com muito nervosismo e à noite liguei para o meu diretor a dizer que tinha sido pai, para ver se não ia ao treino. Ele ficou um bocado assustado e disse-me para eu falar com o treinador. Assim foi. Disse-lhe: “Mister, fui pai, era para ver se hoje não ia ao treino”. Ao que ele responde: “Eh pá, mas tu não és parteiro portanto se não és parteiro vem para aqui treinar” [risos]. Era capitão de equipa, senti essa responsabilidade e não queria ser acusado de nada. Quando lá cheguei já os meus colegas estavam a acabar o treino, fiz o meu treino e regressei novamente ao hospital.

Custou-lhe treinar nesse dia.
Esse foi um dia marcante porque o parto não tinha sido muito fácil e a minha mulher sentiu muito aquela minha ausência. Ao longo de vários meses, anos, falava naquilo. Por isso hoje quando um jogador vem falar comigo, às vezes com muitas cautelas, sobre se pode ir ao hospital porque vai ser pai, sou o primeiro a dizer para ir de imediato, porque sei a importância que isso tem nas mulheres e nas suas vidas.

Assistiu ao parto?
Não assisti ao parto, porque a minha filha nasceu antes das nove da manhã, no momento em que eu tinha ido com a minha mãe tomar o pequeno-almoço a um café perto do hospital. Quando estou a vir para cima cruzo-me com a anestesista já no elevador e ela diz: “já está”. No fundo estive sempre presente excepto mesmo na altura do parto.

Volta ao Alverca. Porquê?
Eu estava no Vilafranquense e nessa época o Alverca faz um protocolo com o Benfica e vai buscar um grande número de jogadores jovens para fazer parte da sua equipa sénior. Eu acabei por ser o único jogador contratado propriamente pelo Alverca. No fundo, era jogar na II liga e também representar o clube onde nasci, portanto não tinha como dizer não. Foi uma época muito importante, porque tive a oportunidade de vivenciar experiências diferentes. Era de facto uma equipa muito sui generis porque tinha alguns jogadores bem experientes, que já estavam no Alverca, e muitos jovens o que acabou por trazer situações interessantes ao longo desse ano.

Como por exemplo?
Essa época vale muito mais pelos ensinamentos que retirei daquilo que é a dinâmica de um grupo, e do que é a perspectiva de um jovem jogador com as ambições naturais da idade. Eu já era licenciado em Educação Física, tinha uma ideia do que era o treino, do que era o jogo, por isso foi interessante desse ponto vista de aprendizagem para mim próprio.

De novo no Vilafranquense. Como e porquê?
Volto ao Vilafranquense porque o Alverca continuou com essa ligação ao Benfica, vinham novos jogadores, e porque o Vilafranquense acabou por convidar-me novamente. Já tinha sido um clube com muita importância para mim, por isso decidi voltar a uma casa que sempre me tratou bem e onde eu sabia que ia ganhar novamente o prazer de jogar.

Segue-se o Seixal. O que aconteceu de mais relevante nessas duas épocas?
No Vilafranquense estava numa situação muito confortável. Aliás eu tinha um presidente, o José Mário Cerejo, que já faleceu, que me dizia que os jogadores têm de perceber quando é que estão numa zona de conforto ou não. Ele explicava que uma coisa é dizer “o Rui não esteve nos seus dias” ou “hoje não correu bem a determinado jogador”, outra coisa é ser analisado de uma forma mais fria. No primeiro caso, o jogador nunca sente muito desagrado vindo de fora quando as coisas correm mal, sente um grande conforto. Nessa época sou convidado pelo João Santos, que já tinha sido meu treinador no Alverca, que era meu colega enquanto professor na escola Secundária Gago Coutinho, e que foi treinar o Seixal. A ideia era formar uma equipa muito forte para subir de divisão. Era também a possibilidade de ser novamente profissional porque iríamos treinar à tarde; e havia a questão financeira, era um contrato melhor do que aquele que eu tinha em Vila Franca de Xira. E assim foi, fiz lá duas épocas subimos logo de divisão e a segunda época também foi boa.

Acabou por ser mais criticado?
Sim, enquanto no Vilafranquense sentia que estava numa zona de conforto, no Seixal isso não acontece. Foi importante para ter esse sentimento e perceber o que se passa com o jogador futebol nos diferente contextos. Eu dava aulas de manhã em Alverca e à tarde era jogador.

Entretanto sai para o Casa Pia.
Curiosamente o Casa Pia foi o clube onde acabei por ter alguns problemas, porque formamos uma equipa boa, mas a meio do ano as coisas não estavam a correr muito bem e o clube quis prescindir de alguns jogadores, nomeadamente daqueles que ganhavam mais e pela primeira vez eu estava nesse lote. Um jogador que tinha tido uma carreira muito regular, de grande responsabilidade, a fazer tudo com rigor, de um momento para o outro vejo-me numa situação em que sou excluído de um clube. 

Volta ao Alcochetense.
Isto aconteceu em Dezembro e eu estava obviamente zangado, revoltado, e já tinha pensado para mim que não iria jogar mais essa época e ia para tribunal ou coisa do género. Mas salvo erro no dia 30 dezembro, recebi um convite para ir jogar para o Alcochetense. A minha primeira reacção foi dizer que não, mas amadureci um pouco a ideia, veio a parte racional e no dia 31 dezembro aceitei representar o Alcochetense. Termino essa época e começo ainda como jogador na seguinte. Foram meses muito giros, fiz amigos, gostei das pessoas que estavam na direção, tivemos uma relação até próxima e como na época seguinte começa ainda o Pedro Xavier como treinador, faço mais dois meses como jogador.

Estamos em 2002 ano em que os seus pais morrem num acidente de viação o que, naturalmente, lhe muda a vida.
Sem dúvida. O meu último jogo como jogador pelo Alcochetense foi em Loures. Entretanto dá-se a morte dos meus pais e eu fico uma semana sem treinar. Mas nesse momento o presidente do Alcochetense quis dispensar o treinador e abordou-me sobre a possibilidade de eu vir a ser treinador do clube. Só que, curiosamente, nesse mesmo domingo o presidente do Vilafranquense, que estava na II divisão, faz-me o convite para ser treinador da equipa sénior. É curioso um jogador da III divisão ser convidado para ser treinador da II divisão. Nesse dia decidi que a minha carreira de jogador acabava ali porque não achei normal no mesmo dia ter dois convites para ser treinador. Lembro de ter dito para mim mesmo que possivelmente nunca mais teria dois clubes no mesmo dia a convidarem-me para treinar. Perante este facto decidi que terminava a carreira. A questão que se colocava agora era qual o clube para onde ia. Por um lado o Alcochetense, onde eu estava a jogar, por outro, o Vilafranquense onde eu tinha jogado oito anos e que estava numa divisão acima.

Quais foram os critérios decisivos?
Não foi fácil a decisão, mas houve dois critérios que estiveram na base da minha escolha, primeiro o facto do presidente do Vilafranquense ter-me convidado 20 minutos antes do presidente do Alcochetense. O segundo aspecto foi o facto do Vilafranquense estar na II divisão. Não foi uma situação fácil porque o Alcochetense dificultou-me a saída, lembro-me do presidente dizer: “Então, mas agora nem tenho jogador nem tenho treinador? De uma assentada perco um jogador e um potencial treinador?”. Mas lá nos acertámos. Eu faço ainda na segunda-feira o último treino como jogador e na terça-feira estou em Vila Franca para começar a minha carreira de treinador. Foi assim que comecei, de um dia para o outro, sem parar, sem reflectir muito, mas decidido a abraçar uma nova função, na qual já pensava.

Onde estava quando recebeu a notícia da morte dos seus pais e de que forma é que isso lhe moldou a vida?
Aconteceu num sábado, eu estava a beber café com um casal amigo num centro comercial na Póvoa de Santa Iria e, por volta das três da tarde, recebo um telefonema a dizer que tinha havido uma tragédia e para eu ir rapidamente para Alverca. Na altura não tive noção do que se estava a passar concretamente mas já tinha ideia de que algo de grave se tinha passado. Quando chego Alverca vejo as pessoas completamente consternadas, fui informado que os meus pais tinham ido para hospital em estado muito grave e que eventualmente até já podiam ter morrido. Passado meia hora chega a notícia de que tinham efectivamente morrido. É uma tragédia que ninguém imagina ou que só quem passa por ela é que pode imaginar. Para mim foi uma lição de vida no sentido em que acabou por dar-me uma grande força para o futuro e fez-me ganhar defesas. A partir daí sempre que passo por situações desagradáveis, o meu tico e teco falam um com outro e os problemas são imediatamente relativizados. Tinha 32 anos, é natural que tenha mudado a minha forma de pensar, de encarar a vida. E há um dado curioso, acabei como jogador antes dos meus pais falecerem e comecei como treinador logo a seguir. Tenho a noção clara de que os meus pais gostariam muito de ver esta minha carreira, a minha mãe, fundamentalmente, porque ela tinha uma grande preocupação de como seria a minha vida depois de deixar de jogar.

Desde quando percebeu que não ia vingar como futebolista?
A determinada altura nós percebemos que a nossa hora de subir na carreira vai passando. Inicialmente tinha essas ambições mas ao mesmo tempo o facto de estar a tirar um curso superior… A mim, tal como a outros jovens da minha geração, e não só, foi-nos incutido que tirar um curso era importante e que é o curso que nos vai dar a estabilidade para a vida. Hoje olho para trás e vejo que tenho esta carreira de treinador porque se calhar misturei essas duas vertentes. Por um lado a formação académica, mais teórica, por outro uma formação muito prática, de viver permanentemente em equipas, de analisar, de entender os treinadores. Podia ter jogado num nível mais acima, mas nunca fui muito convicto disso, talvez porque tinha essa segurança, transmitida pelos meus pais de que era importante tirar um curso. E desde muito cedo comecei a pensar que possivelmente gostaria de experimentar ser treinador. Como jogava futebol à noite e durante o dia estudava desporto é muito natural que começasse a juntar uma coisa à outra. Lembro-me que tinha treinadores que às vezes me perguntavam uma ou outra coisa porque eu já era professor de educação física. A vontade de treinar era uma consequência daquilo que estava a aprender e ao mesmo tempo a praticar.

Mas não foi uma estreia fácil pois não?
Não foi porque nessas duas épocas apanhei alguns dos meus ex-colegas, jogadores com quem estava a jogar e no dia a seguir já era treinador. Conhecia-os todos. Ao mesmo tempo o Vilafranquense ficou com salários em atraso e no final dessa época tivemos de reformular grandemente o plantel, para salários mais baixos. Mesmo assim no ano seguinte também ficámos com salários em atraso. Portanto foram duas épocas em que o Vilafranquense que eu conhecia já não era o mesmo, porque até à data nunca tinha havido problemas financeiros.

Os jogadores falavam muito consigo, faziam-lhe exigências?
Sim. Foi um estágio muito grande porque os problemas surgiam diariamente e eu e a minha equipa técnica, que éramos poucos na altura, tínhamos que resolver. Por um lado moderar um bocadinho a situação em relação à direcção e por outro estar sempre também com os jogadores do nosso lado. Lembro-me que houve uma altura em que os jogadores quiseram entrar em campo com uma tarja a dizer "Respeitem-nos" ou qualquer coisa assim. Esses momentos nunca são agradáveis.

E entraram com a tarja em campo ou não?
Sim. Mas são momentos que também são interessantes para um treinador porque temos ali muita matéria para pegar do ponto de vista psicológico. Temos dois caminhos, ou somos passivos e deixamos que as coisas aconteçam e a situação tendencialmente vai mais para o fundo, ou aproveitamos aquilo como uma alavanca para o futuro. E foi isso que me lembro de termos feito. Nós trabalhamos a equipa para que ninguém nos acusasse de falta de profissionalismo, para ajudar também o clube a resolver os problemas, porque se o clube terminasse seria muito mais grave. Fomos arranjando este tipo de estratégias para que os jogadores estivessem ligados e comprometidos connosco. Era curioso, quando íamos a alguns campos, e era público que nós não tínhamos os salários em dia, ouvia-se as pessoas a dizer "ah não ganham salário e correm muito mais, como é que é possível? Temos é que tirar o dinheiro aos nossos também". Não gostávamos de ouvir mas ao mesmo tempo era uma motivação. Foram dois anos muito complicados ao nível da gestão porque os jogadores nessas divisões não ganham nada de especial e tinha jogadores que diziam "mister, amanhã não posso vir porque não tenho dinheiro para o gasóleo". De vez em quando tínhamos de arranjar umas artimanhas para poder manter aquilo tudo focado. Não foi fácil, mas foram dois anos de grande estágio.

Chegou a ajudar financeiramente alguns dos seus jogadores?
Sim, não de uma forma directa mas a contribuir para gasóleo. Sim, isso aconteceu.

Ainda acumulava as funções de professor?
Exactamente, só deixo de ser professor quando vou para o Paços de Ferreira, ainda estive muitos anos a acumular as duas coisas. Estava efectivo em Alverca do Ribatejo na escola secundária Gago Coutinho, e treinava ao final da tarde o Vilafranquense.

Continuava casado e com uma filha apenas?
Sim. Mas essa altura do Vilafranquense coincidiu com a separação da minha mulher.

E surge o convite do Benfica. Porque aceitou ir treinar os juniores? Não tinha outros clubes e outras equipas seniores interessados no seu trabalho?
Tinha feito dois anos de Vilafranquense e tinha possibilidade de treinar dois, três clubes na região de Lisboa, da II divisão, mas surgiu o convite do Benfica e decido ir para o Benfica por duas, três questões. Uma delas era conhecer um clube grande por dentro e estar mais próximo dessa realidade, a outra era formar, trabalhar com jogadores naquelas idades da subida para os seniores, saber como é que pensam. E também era uma possibilidade de contactos com uma outra realidade, alguns torneios internacionais, novas experiências. É com esse objectivo que vou, quase também como um aspecto formativo. Mas decidi logo para mim mesmo que tinha de ser uma estadia curta.

Porquê?
Hoje os treinadores da formação já são vistos como apetecíveis para o futebol sénior, mas na altura não. Quem era da formação levava quase um rótulo de treinador de miúdos. E eu não queria esse rótulo. Queria viver essa experiência, porque era o Benfica, era um clube grande e era a possibilidade de saber como é que isso tudo funcionava, mas depois queria sair. E saí na altura certa.

O que guarda dessas duas épocas à frente dos juniores do Benfica?
Aprendi variadíssimas coisas, mas apanhei uma fase do Benfica em que não havia o Seixal e portanto andávamos com a casa às costas. Treinava em Odivelas e nos Olivais, tínhamos treinos às 9 da manhã para que os jogadores depois do treino ainda fossem a tempo de ir às aulas da parte da tarde. Eu treinava em Odivelas, mas aquilo era muito complicado porque tinha jogadores que moravam na margem sul e estar às 9 horas, prontos, equipados, alguns apanhavam quatro meios de transporte para chegar ali. Entender como é que as mentes destes jogadores funcionam num contexto de adversidade foi muito interessante de trabalhar.

Houve algum miúdo que para si tivesse sido uma grande surpresa, que se tivesse destacado?
Talvez o Sílvio, que agora está no V. Setúbal. Esteve no Atlético de Madrid, no Benfica, no SC Braga. Depois há o Tiago Gomes, o João Coimbra, o Manuel Curto, mas não houve assim ninguém que tivesse feito uma carreira de grande relevo. Não se apostava muito e também não havia ali nenhum craque.

Quais as maiores diferenças entre treinar juniores e seniores?
Com 17, 18 anos os miúdos não têm bem a noção da realidade do que é o futebol. Nem do ponto de vista positivo, ou seja, até onde podem chegar, mas sobretudo não têm a noção da realidade de que só uma franja muito pequena de jogadores consegue chegar a níveis de auto subsistência e que o mundo do futebol não são os Ronaldos, não são esses jogadores que nós olhamos e que parece que representam um todo. Não, representam uma pequena parte. Às vezes existe uma falta de auto-avaliação daquilo que na realidade valem. Dizia-lhes muitas vezes: "O mundo real é o mundo de ir para as segundas e terceiras divisões, é aí que a maioria dos jogadores vai vivendo". Naquela altura era muito difícil aceder à equipa principal do Benfica.

Mas quem chega a júnior do Benfica tem o sonho de vingar.
Sim, mas muitos sem terem noção do seu real valor e quando assim é torna-se complicado. Ao longo do tempo é evidente que vem essa maturidade, vem experiência, vêm também mudanças na vida que são importantes, coisas tão simples como ter um carro, deslocar-se de forma autónoma. Namorar ou casar, ter um filho, mudar de cidade, tudo isto são factores que contribuem para que mais tarde o jogador tenha uma visão completamente diferente. Gosto muito de trabalhar com as idades mais baixas, porque se verifica uma evolução muito grande e muito rápida nos jogadores dessas idades e isso é muito gratificante. Lançamos jogadores que de repente começam a subir, a subir, a subir e nem eles pensam que têm essa capacidade. Isso é muito gratificante para um treinador. Muitas vezes o que influencia muito a cabeça dos jogadores é aquilo que é a visão externa sobre eles. Uma coisa é eu saber que estou a ser avaliado por 10 pessoas, outra coisa é um país inteiro comentar isto e aquilo sobre um jogador ou sobre um treinador, o impacto social tem muita importância.

Como é que surge o CD Fátima e porque decide deixar o Benfica?
Decido ir para Fátima porque não havia intenção nem minha nem do Benfica de continuar a ligação. Disse para mim, vou deixar o Benfica porque a minha "guerra" - e esta era uma palavra que utilizava - , a minha guerra é o futebol sénior. Fosse treinar para a distrital, para a III divisão, a minha guerra é o futebol sénior. E surgiu o convite do Fátima por intermédio do Luís Albuquerque, que hoje é o presidente da câmara municipal de Ourém e que na altura era director desportivo ou vice presidente do Fátima. Nos anos em que estive no Vilafranquense tínhamos jogado três vezes com o Fátima e ganhámos, salvo erro. Tínhamos feito boas exibições e bons jogos com uma equipa de recursos mais limitados e eles ficaram com isso na cabeça. Segundo me contaram foi esse o motivo. Foi de facto um risco para mim, porque quem lá tinha estado no ano anterior foi o Paulo Torres que tinha feito um 2.º lugar e portanto eu ir para o Fátima... As pessoas não me exigiram o 1.º lugar, mas eu ia com aquela sensação de que tinha de fazer melhor.

Foi viver para Fátima?
Não, vivia em Alverca e dava aulas em Alverca, fazia a viagem todos os dias. Eram 100 quilómetros exactos. 100 para lá e 100 para cá. Foram quatro épocas, subimos duas vezes e descemos uma. Na primeira época fazíamos este trajecto com um jogador, o Marinho, que depois foi capitão da Académica. Dividimos entre nós o transporte, nos outros anos a seguir já foi com uma carrinha Ford Transit em que levávamos mais jogadores. Uma nova experiência muito interessante de se viver. 

Estava a contar que na primeira época subiu da II divisão B para a II liga. Quais as diferenças de um divisão para a outra?
O envolvimento muito mais profissional que existe II liga. Sentimos que há uma Liga a supervisionar, os jogos são televisionados, há um director, há muito mais rigor em tudo e qualidade também. Quando fomos para a II liga era o ano da primeira ou segunda edição da Taça da Liga e eliminámos o FC Porto através de penaltis. Na fase seguinte dessa competição fomos ganhar ao Sporting 2-1, mas depois perdemos 3-2 em casa: o Liedson marcou o terceiro golo, passou o Sporting. Isso coincide com a saída do Marinho, um jogador importante na nossa equipa, para a Naval, coincide a ida do Marco Rosa para a CAN, e com uma lesão mais complicada de dois jogadores, o Saleiro e o Ricardo Jorge. Havia um entusiasmo porque nós fomos notícia nacional por causa desses dois jogos, mas depois veio a realidade. Uma coisa é esta mobilização para este tipo de jogos, outra coisa era o nosso campeonato e começamos a andar para trás e aí sentimos um bocadinho de dificuldades porque também não nos reforçámos bem em Janeiro.

E descem.
Sim, é também um momento importante na minha carreira, porque normalmente há sempre aquela tentação de nestas alturas de colocar o lugar à disposição ou do clube mandar embora, e isso não aconteceu. Descemos e fizemos uma coisa raríssima no futebol português que é, em três anos, subimos, descemos e subimos logo a seguir. Normalmente quando um clube sobe e depois desce, há uma grande frustração em toda a gente. As direcções, os adeptos, todo o envolvimento é muito negativo e conseguir voltar a subir outra vez, não é fácil.

Como explica então que o tenha conseguido?
Reformulámos a equipa com muita juventude, muita ambição. Nós também tínhamos mais experiência acumulada, ganhamos estatuto porque no fundo era o Fátima que tinha estado na II liga e fizemos uma ligação ao Sporting, trouxemos jogadores que acrescentaram qualidade e nos ajudaram. Aí já somos campeões nacionais da II divisão, portanto começaram aí os títulos de campeão nacional, num jogo que fizemos contra o Chaves, que na altura era treinado pelo Leonardo Jardim. Isto na minha na terceira época em Fátima. Na quarta já estamos na II Liga e fomos buscar jogadores com outra maturidade e outro conhecimento da II liga, ficamos no 8.º lugar, que me leva no ano seguinte a ir para Paços de Ferreira.

Recebe o convite ainda estava a treinar o Fátima ou só no final da época?
No final da época. Eu estava para ficar em Fátima, vou para o México de férias e mal lá chego recebo um convite. Um contacto das pessoas do Paços de Ferreira que estão interessados nos meus serviços e tal. Fiquei ali um bocado amarrado porque queria resolver a situação, mas ia começar as férias. Portanto não passei umas férias nada tranquilas, antes pelo contrário. Tinha que ser uma coisa guardada em segredo, eu não sabia se durante aquela semana o interesse se mantinha. Havia outros treinadores de qualidade. A verdade é que, na véspera de chegar a Portugal, ainda estou no México e vejo a notícia nas páginas centrais de o jornal O Jogo, a dizer que o Rui Vitória era o treinador escolhido. Não havia nada de concreto, só quando eu cá chegasse é que íamos conversar. Assim que cheguei, no dia a seguir reunimos e chegámos facilmente a um entendimento. Não foi fácil sair de Fátima porque a ligação estava muito forte, mas tudo se resolveu e fui para Paços.

Não foi fácil porquê, ainda tinha contrato?
Não, porque havia já conversas para o ano seguinte, as pessoas queriam que eu continuasse. Fiz um bocado de finca-pé porque era a oportunidade de começar na I Liga... Não foi uma situação muito fácil porque gosto de fazer as coisas de forma tranquila. Mas felizmente tudo correu bem depois. 

Quando vai para o México de férias já vai com a sua actual mulher?
Sim, conheci a minha mulher quando dava aulas de Educação Física, ela era professora também. E já tinham nascido as nossas duas filhas, a Joana que tem 13 anos, e a Matilde que já fez 12.

Foi com a família para Paços de Ferreira?
Não, meti licença sem vencimento na escola e fui sozinho. Estávamos a viver na Póvoa de Santa Iria, a minha mulher também dava aulas e ficou cá em baixo, porque queríamos primeiro ver se corria bem. Lembro-me do primeiro dia em que fiquei em Paços, no apartamento. Eles tinham-me dado umas roupas para a cama e recordo-me de estar deitado sozinho, as roupas com muito pó, eu a olhar para o tecto e a pensar: “A partir daqui é que a tua vida vai mudar. Ou vai ou racha”. Lembro-me perfeitamente de pensar isso essa noite.

A estreia foi contra quem?
O meu primeiro jogo no Paços é com o Sporting, ganhámos 1-0, era Paulo Sérgio o treinador. O estádio estava completamente cheio, na Mata Real, era pequeno mas estava cheio. Mas antes disso há a entrada no Paços, que não é uma entrada fácil, porque eu tinha a ideia de que iríamos ter condições para fazer uma boa equipa, porque o Paços tinha sempre alguma estrutura financeira boa e estável, e quando lá chego começo-me a aperceber que não dava para ir buscar os jogadores que queria. E eu pensei: “Queres ver que eu venho para cima e vou já para baixo que é um instante”. Mas depois disse às pessoas, e elas hoje ainda se recordam disso: “Se não for com estes, a gente arranja outros”. Acabámos muito bem essa época, ao ponto de termos chegado ao final da Taça da Liga, que jogámos contra o Benfica, e perdemos.

Não fica na época toda seguinte. Porquê?
Eu assino por um ano com o Paços e a seguir renovo, salvo erro por mais três anos. Tinha assinado a renovação e em Agosto da segunda época começamos a trabalhar. Muito próximo do dia 30, já não sei exactamente quando, sou convidado para ir treinar o Vitória de Guimarães. Num fim-de-semana tivemos de resolver tudo, acertar a rescisão e a indemnização ao Paços.

Sentiu que já era outro patamar?
Senti. Deixe-me contar só isto. Eu tive sempre objectivos claros quando mudei de clube. Quando fui para Fátima, era a história de querer um desafio com o futebol sénior. Depois para o Paços de Ferreira, já era, eu preciso de ter uma massa adepta e um clube que esteja ali atrás de mim, em que eu esteja a sentir a respiração, o envolvimento, um ambiente de I Liga. Porque o campo do Fátima era um campo afastado da bancada, ia muito pouca gente à bola, era uma coisa muito despida, e eu precisava desse envolvimento também para crescer. Quando vou para Guimarães foi também por querer uma massa adepta mais exigente, uma direcção se calhar mais presente, e ter tudo aquilo que é a antecâmara de um clube grande. O Vitória é um clube grande, que tem tudo, só tem é uma dimensão ligeiramente mais pequena em número. Mas as conferências de imprensa, as exigências dos jogadores, o pré e o pós jogo, é muito aquilo que depois viria a viver no Benfica. Mas a ideia era essa, era ter uma exigência maior. E não há melhor clube para se treinar, antes de treinar um grande, do que o Vitória. Quem treina ali fica quase preparado para treinar em qualquer lado.

A família vai de armas e bagagens para Guimarães?
Não, a família continua cá em baixo. Até porque o Vitória esse ano começa com problemas de salários em atraso. Outra vez uma chatice grande.

Numa outra dimensão.
Sim, eram jogadores muito mais velhos, com um estatuto muito grande, alguns já tinham sido campeões nacionais, havia jogadores de muita qualidade e de repente aquilo começou tudo a falhar, os pagamentos, as promessas e foram problemas atrás de problemas para se resolver. Tivemos que ir mudando a equipa e baixar tudo o que era salários, porque senão o clube ia à falência. Acabámos essa época em 6º. lugar mesmo assim. Os jogadores foram saindo, algumas rescisões de contrato, porque o clube estava de facto numa fase muito má, é quando se dá também a entrada do novo presidente do Vitória, o engenheiro Júlio Mendes. Mudámos praticamente o paradigma do clube e vai de apostar em jogadores que estavam na formação e de fazer uma equipa muito mais barata. É na segunda época, quando fazemos essa remodelação do clube, que vamos à final da Taça com o Benfica, em 2012/2013.

Estava mais nervoso do que nas vezes anteriores? Preparou-se de forma diferente, a palestra foi diferente?
Por norma não sou nervoso em nenhuma circunstância, pelo menos penso que tenho um bom controle sobre essas situações, mas esse jogo teve um cariz muito especial, porque era a primeira Taça que o Vitória poderia ganhar. E que acabou por ganhar. Nós fomos para esse jogo com os jogadores com cinco meses de salários em atraso, a jogar contra um super Benfica. A nossa equipa eram miúdos ou jovens jogadores, contra uma equipa muito boa. Mas nós preparámos esse jogo bem, no jogo anterior já tínhamos os objectivos praticamente alcançados e a ida à Europa passava por esta Taça de Portugal, não pelo campeonato. Por isso, nos dois últimos jogos praticamente abdicamos um bocadinho desses jogos, no sentido de preparar a equipa o melhor possível, evitando lesões, ou castigos para que os jogadores estivessem muito bem na final da Taça. E acabámos por vencer. Foi um dia memorável em Guimarães e para mim também teve um significado especial porque foi o meu primeiro grande troféu. E ganho por um clube como o Vitória é um sabor diferente. A alegria que tive, que se seguiu àquele jogo foi uma coisa que as pessoas não esquecem mais, portanto foi de facto diferente e especial. Tão especial que acabei por escrever sobre isso no livro "A Arte da Guerra para Treinadores", há um capítulo onde explico isso.

Esse livro surge quando, como e porquê?
Surge quando estou em Guimarães. Na altura já era convidado para dar umas palestras junto de empresas, porque na realidade há essa ligação no que respeita a objectivos e team building. Conheci entretanto uma pessoa que me falou nisso. Esse livro surge numa colecção de 13 livros sobre a Arte da Guerra em diferentes áreas. E o editor convida-me para eu escrever a Arte da Guerra relacionada com o desporto, para treinadores. Questionou-me como é que podíamos fazer o transfere de algumas coisas que eram ditas há muitos anos para agora, que ligações é que havia? Foi um desafio. Não pensei nunca em escrever um livro com objectivo de vender muito ou pouco, foi um desafio. Surgiu quase por brincadeira. Depois senti que teve um bocadinho mais de impacto.

Vamos terminar a passagem no Vitória de Guimarães. Fale-nos das duas últimas épocas.
Entretanto começam a sair jogadores porque a equipa era muito jovem, barata e portanto eram jogadores apetecíveis. Alguns deles foram logo para equipas mais fortes, o Ricardo, o Hernâni e o Tiago Rodrigues foram para o FCP, o Paulo Oliveira foi para o Sporting e a equipa foi-se desmembrando. Mas continuamos com a mesma filosofia porque o clube precisava de se recuperar e foram dois, três anos de fases difíceis no Vitória, com orçamentos muito baixos e a tentarmos reequilibrar. Saí de lá na 4.ª época com o apuramento para a Liga Europa. Acabou por ser um trabalho muito positivo e muito gratificante tendo em conta aquelas limitações.

Nesses quatro anos recebeu convites de outros clubes?
Sim, havia sempre possibilidades para o estrangeiro porque vem sempre mais um empresário ou alguém que fala no assunto, mas concreta e objectivamente de algum dos clubes em Portugal, não. Havia essas abordagens, de conversas, mas ninguém me colocou até essa altura uma proposta na mesa. Eu também não tinha nenhuma intenção de sair do Vitória para qualquer outro clube. Para sair do Vitória só sairia para um dos clubes chamados grandes ou para o estrangeiro. Até porque eu continuava numa fase de envolvimento muito grande com a direcção para fazer o clube crescer e tinha renovado com o Vitória mais dois anos... foi quando apareceu o convite do Benfica.

Esse convite surge através do próprio Luís Filipe Vieira?
Sim, de um telefonema do presidente Luís Filipe Vieira. Nós já nos conhecíamos. Fez um convite que, ao segundo contacto, passou a ser formal. Conversámos e acertámos as condições para ir para baixo.

O presidente do Benfica colocou-lhe objectivos e condições concretos? E vice versa?
Sim. Quando reunimos a primeira vez, entendemo-nos logo porque estávamos os dois muito virados para os mesmo objectivos. Vou para o Benfica com esses dois objectivos: continuar a ganhar e alterar o paradigma do futebol da equipa sénior do Benfica com a introdução de jogadores da formação. Aposta mais naquilo que era o Seixal. E também numa equipa se possível mais portuguesa, até como consequência disso. E nisto houve uma ligação muito clara e muito óbvia desde o início entre os dois. Eu estava disposto a isso. Foi de facto um risco porque o Benfica vinha de uma série positiva, mas eu também gostava de trabalhar nessas condições. Quando se chega a este patamar de um clube como o Benfica, não vamos facilmente dizer que não. Sabemos todos que é uma oportunidade e vamos tentar aproveitá-la. Foi isso que fiz. Foi com esta filosofia que entrámos no Benfica.

Houve alguma condição que o Rui ou o presidente tivessem colocado?
Posso revelar que logo nessa altura ficou estipulado que iriam para a equipa principal cinco, seis jogadores da formação.

Escolhidos por quem?
Pelas duas partes. Eu conhecia perfeitamente a equipa B do Benfica e portanto tinha muito claro quais eram os jogadores que queria e foram esses que foram para a primeira equipa. Mas claro que já havia jogadores que tinham contratos profissionais e no fundo quase que encaixou uma coisa na outra. Não houve nenhum jogador que fosse uma divergência. Até porque a partir dali o Benfica também passou a ser um clube mais ligado. Qualquer jogador que estivesse na equipa B, estaria próximo da equipa principal, assim ele trabalhasse.

Qual foi a primeira coisa que fez quando chegou ao Benfica?
Defini uma forma de trabalhar. A partir do momento em que entrassem na equipa de juniores, entravam no meu radar mais apurado. Porque os juniores já podiam jogar na equipa B e se assim era então a qualquer momento podiam jogar na equipa A. Tinha estas três equipas, a principal, a B e a de juniores, sob minha observação mais direta. Ia ver jogos, sabia os nomes todos dos jogadores, projectamos equipas a mais do que um ano ou dois. Fizemos projectos para jogadores individualmente para daí um, dois, três anos, poderem estar ainda mais completos. Eu tinha a supervisão de todo o futebol, as reuniões eram feitas com os treinadores desde os sub-13 até lá acima. E falávamos de tudo aquilo que era a realidade do Benfica.

Quando chega ao balneário a primeira vez sentiu que os jogadores estavam receptivos a um novo treinador ou que estavam desconfiados? Como foi a primeira reacção à sua chegada da parte dos jogadores?
Não tenho uma opinião muito fiel sobre isso. A minha sensação foi agradável, de conforto, de empatia muito grande, de boa receptividade.

Não sentiu nenhum jogador de pé atrás?
Não. Obviamente que há aquela coisa de "vamos lá a ver como o homem funciona". Mas nada de especial ao ponto de sentir algo diferente. Isso nunca senti, antes pelo contrário. Só que essa pré-época já estava alinhavada e foi muito atribulada. Fomos logo para os EUA, depois fomos para o México e andamos praticamente com a casa às costas. Com um início de época complicado que era uma Supertaça com o Sporting. Não foi uma pré-época tranquila por tudo isso, porque eu estava a chegar e já estavam as coisas todas organizadas para ir para fora, tive de adaptar-me ao que estava praticamente definido. Mas funcionou em termos de relacionamento muito bem. É evidente que isto é tudo muito bonito quando se ganha, quando surgem as derrotas há sempre aqui ou ali uma ou outra coisa que não é tão agradável, mas é perfeitamente normal. Trabalhamos bem e paulatinamente, estamos atrás do Sporting, as coisas foram andando e nós muito focados no nosso trabalho. Conseguimos ser campeões e a ganhar a Taça.

Depois de uma época no Benfica, que balanço fez? Era aquilo que estava à espera, ficou aquém ou superou as suas expectativas?
Era mais ou menos aquilo que estava a espera, se bem que vivendo por dentro há aspectos do dia a dia que nos surpreendem. O Benfica tinha coisas muito bem organizadas já. Claro que depois começamos a pôr o nosso cunho pessoal e aqui ou ali a alterar aquilo que entendemos que tínhamos de alterar.

Pode dar exemplos?
Logo à minha chegada fiz a troca do meu gabinete. Fiz um gabinete mais global para a equipa técnica, que não havia na altura como eu entendia que devia ser feito. Com mesas de trabalho, em que estávamos todos juntos e a trabalhar na mesma sala. Logo aí mudamos inteiramente duas salas. Avisei logo: "Eh pá, não quero trabalhar assim. Preciso de trabalhar com a minha equipa técnica, todos em conjunto". Depois ao longo deste percurso no Benfica coincide com as obras no centro de estágio em que aí também estive muito envolvido na estruturação dos novos edifícios da formação, no que respeita a quartos, a gabinetes, a posicionamentos de salas. Qual era a filosofia que estava por trás daquilo. Era trabalhar numa perspectiva muito global, desde os miúdos até à equipa principal. Nunca numa visão de só trabalhar para a equipa sénior, mas para um Benfica muito global.

Sente que essa foi a sua grande mudança no Benfica?
Penso que sim. Era a forma como gosto de trabalhar e tivemos essa possibilidade. Obviamente não o fiz sozinho. Fiz parte de um conjunto de pessoas que pensou e realizou isto. Mas que lá estive, estive. E que tive sempre voz activa em dar as ideias que tinha para o futebol do Benfica, isso é uma verdade.

Sentiu uma maior pressão tanto por parte da comunicação social, como de empresários?
De empresários nada de especial. Agora há duas coisas curiosas. No Vitória e na cidade de Guimarães a pressão é mais corporal. Porque vivemos praticamente no meio da cidade ou perto da cidade, as pessoas do V. Guimarães estão em Guimarães logo aquilo é muito corporal, nós vamos na rua ou vamos a subir no elevador do nosso prédio e temos de repente um miúdo de cinco anos que adora o Vitória a abordar-nos, como temos uma senhora de 80 que se cruza connosco todos os dias no café. É uma abordagem muito mais directa. Nós somos quase adeptos do Vitória. Aliás, há uma altura em que disse para mim: tenho de me isolar porque um treinador tem de ter a frieza de se destacar destas questões, senão daqui a pouco estou a pensar como um adepto e eu não posso ser um adepto. Tive a necessidade de ver a floresta de cima e não estar no meio das árvores.

E no Benfica?
No Benfica é diferente, não temos esta ligação corpo a corpo. O Benfica é mundial e portanto, saímos do Seixal e não temos ninguém perto das nossas casas que seja benfiquista como eu tinha em Guimarães. Mas temos a outra parte que é muito mais exposição em termos nacionais, da opinião pública e da comunicação social. São pressões diferentes. Em Guimarães eu reservava-me muito, ficava em casa, porque se saísse à rua, como eram todos Vitória, estaria sempre sujeito a encontrar adeptos. No Benfica a dimensão é maior e há um maior envolvimento da comunicação social. Os clubes grandes têm uma dimensão diferente de qualquer outro do nosso futebol.

É no Vitória que volta a dar largas a uma paixão antiga. A bateria. Explique lá isso.
[risos] Quando eu era miúdo tinha a mania de bater nas portas, nas mesas, gostava do barulho que faziam. Sempre tive ritmo e ainda hoje bato com os dedos na mesa com frequência. Aos 11 anos fui aprender bateria com o baterista dos Ferro & Fogo, o Seixas. Estive com ele uns meses, mas desisti. So que até hoje, sempre que vejo uma bateria em qualquer lado...Não resisto. Mas na altura em Guimarães, para ajudar a matar o tempo comprei uma bateria, uns auscultadores e voltei a tocar.

Deu algum concerto para os seus jogadores?
Não [risos]. Só tocava às vezes nas festas do Vitória. Quem me desafiava era o Neno, que gosta de cantar e é um óptimo animador. Ensaiávamos duas ou três coisinhas só para animar.

Voltemos ao Benfica. A segunda época foi melhor ainda, conquista a Supertaça, o tetra, e a Taça de Portugal. Sente que o tetra teve uma dimensão e um peso grande no clube?
Teve e tem porque vai ficar para a história. Foi aquela equipa que acabou por vencer o tetra. Por outro lado, o Benfica estava numa senda vitoriosa e, quando às vezes entramos nessas rotinas, as vitórias perdem um bocadinho de impacto e isso é uma coisa que nas empresas, nos clubes, temos de pensar muito bem. Onde e como nos posicionamos nos momentos das vitórias. A vitória é para comemorar ou não? Às tantas entramos nestas rotinas e perde-se o valor da própria vitória, porque é quase um hábito. É um tetra, mas era consequência do trabalho que tínhamos feito e estávamos a fazer. Do ponto de vista objectivo fica na história aquela equipa.

Na época seguinte tudo se altera.
O Benfica acabou por transferir um conjunto de jogadores. Mas continuamos com a mesma filosofia. Acreditávamos que era possível continuar. Quando na altura começamos a lançar os lemas no início da época. Eu, juntamente com a minha equipa de trabalho, o director geral e o presidente. Uma das ideias era a reconquista, no sentido de continuarmos a vencer, numa renovação e não nos acomodarmos, mas é evidente que esta rotina de vencer...Temos de meter ali qualquer coisa de diferente. E no terceiro ano não começámos bem, a época começou a embrulhar-se, ainda fizemos uma boa recuperação, mas depois o FCP ganhou aquele jogo perto do final da época e acabou por ficar na frente.

À distância e olhando para trás, o que correu mal?
Eu desligo-me das coisas com muita facilidade, mesmo. E portanto não tenho bem presente aquilo que é o desenrolar de uma época ou de outra. Mas falando já com esta distância, eventualmente o facto de estarmos a trabalhar juntos e a ganhar instalou-se a ideia de "o trabalho está feito". Vamos ganhar. Da minha parte não foi de certeza excesso de confiança, mas de uma forma genérica, incluindo-me então também, um bocado de excesso de confiança de que "Isto agora mais coisa menos coisa e podemos ganhar". E no futebol ninguém pode pensar assim. Se calhar houve alguma distracção. Eventualmente. E depois no futebol em cada época há sempre dois ou três momentos-chave em que às vezes por isto ou por aquilo as coisas funcionam bem ou funcionam mal, mas não há uma razão que nós digamos assim: foi isto.

Para si quais foram os momento chave?
Eu não tenho bem presente. Eventualmente em Janeiro não termos a percepção do que na realidade não estaria ali funcionar bem e do que a gente precisaria. Mas nós acreditávamos muito na filosofia que tínhamos e no trabalho que estávamos a fazer. Só que, para já não se ganha sempre, vínhamos de duas épocas tremendamente vitoriosas, com seis títulos já conquistados, pensamos que as coisas funcionam bem, mas nem sempre acontece. O que é que foi em concreto? Há quem diga que a equipa não se reforçou. Não se reforçou como nos anos anteriores não se tinha reforçado e tinha descoberto jogadores na equipa B, porque no fundo os reforços do Benfica nestes últimos anos foram sendo praticamente da equipa secundária. Seguimos mais ou menos a mesma linha de raciocínio. Agora, também é bom que fique claro: nenhuma dessas não-vitórias ofusca o trabalho que foi feito no Benfica. Isto na minha visão, quem quiser que faça as leituras que quiser. Foram muitas vitórias difíceis, e uma mudança de filosofia, o que às vezes é complicado nos clubes.

O que quer dizer com essa mudança de filosofia?
A tal aposta mais objectiva em jogadores da equipa B e em jogadores portugueses também. O Benfica passou a jogar com mais jogadores que estavam na formação, por consequência fez dinheiro em receitas. Esses jogadores tiveram uma valorização enorme e ao mesmo tempo deram uma maior rentabilidade para o Benfica porque são miúdos que começaram na formação do clube, eram 100% Benfica. Nesse sentido era uma mudança clara de paradigma. E é preciso dizer que essa nossa terceira época também coincide com tudo o que envolve o Benfica na comunicação social, a questão dos e-mails e desses processo todos.

Isso entra e abala um balneário?
Isso entra. É evidente que jogadores e treinadores temos a capacidade de ir para dentro do campo e não pensarmos nisso. O que acontece é que numa equipa que ganha, que tem uma grande percentagem de vitórias, tem que fazer tudo o que está ao seu alcance e o foco tem de ser todo para que em cada jogo esteja preparada para ganhar. Quando começamos a distrair-nos ou a haver alguns motivos que faça com que a energia não seja toda focalizada para esse fim de semana, para esse jogo, então aí estamos a perder energias que podem ser úteis para ganharmos o jogo, nem que seja por 1-0. Quando começamos a ter muitas coisas com que lidar, é transportado para o funcionário, para o jogador e para quem nos envolve, como as empresas. Se perco uma hora que seja a tratar deste assunto, já estou a perder uma hora em que podia estar a tratar de um assunto da minha equipa.

Está a dizer que o caso dos e-mails e o processo e-toupeira abalaram toda uma estrutura que se reflectiu também dentro de campo.
O clube viveu uma situação que não estava preparado para viver, nem ninguém está. E depois todos a lidar com aquilo, se calhar nem todos soubemos lidar da mesma maneira. Porque de facto eram coisas que iam até às coisas pessoas, tocavam em aspectos muito particulares e quando sentimentos esses aspectos mais centrados em nós, esquecemos a equipa principal ou esquecemos o Benfica porque estava em causa já a vida de cada um. Portanto mexe com uma estrutura que estava perfeitamente afinada. Quando temos de preocupar-nos em demasiado com coisas que não são propriamente da nossa função, então aí estamos no caminho errado. Isto funciona muito bem para quem tem de ganhar cinco, seis, sete oito nove vezes num ano, agora para quem tem de ganhar muita vez e perder pouquíssimas como o Benfica, é estar sempre a um alto nível e o alto nível requer concentração no limite e requer os recursos todos focados no mesmo objectivo. Quando isso não acontece, é evidente que ficamos em desvantagem.

Na última época não teve o acompanhamento que estava habituado a ter por parte da direcção?
Pois, às vezes saem aqueles títulos "Rui Vitória não sentiu o apoio da direcção", não gosto muito disso e não é essa a questão. Naturalmente, há uma dispersão de atenções e não se faz por querer. Pode acontecer em qualquer organização e quando isso acontece em organizações de elevado nível em que a margem de erro é muito pequena, então ainda tem mais impacto. É evidente que podíamos ter preparado tudo de uma forma diferente ou podíamos antecipar cenários. Só que ninguém ali teve a capacidade e a percepção da dimensão da coisa. É como o que estamos a viver. Todos nós agora sabemos o que é esta pandemia, mas há dois ou três meses alguém tinha a noção da dimensão que tomou? E que de repente pode tocar-nos a nós? Ali foi um bocado a mesma coisa, de repente é o meu nome que está, é o da minha família, é uma relação qualquer profissional que existiu e que vem num email. Tudo estava mais sensível e isso torna as coisas mais difíceis.

Desde que ingressou no Benfica houve uma tendência quase inevitável de fazer comparações com Jorge Jesus. Como foi lidando com isso ao longo daqueles três anos?
A mudança de clubes, treinadores com filosofias diferentes, em clubes rivais, gerou uma comunhão de acontecimentos que de facto despoletaram uma série de coisas. Houve também depois um aproveitamento. Nestas alturas em determinados contextos há sempre uma preocupação de se saber como é que podemos entrar, onde é que há alguma fragilidade. E então é por aí que é a porta de entrada. Numa primeira fase há um treinador que vem de Guimarães que as pessoas não sabem se tem capacidade ou não, e eu percebo as dúvidas que possam haver. Acontece comigo como pode acontecer com outro qualquer. E até haver uma prova, um título, há sempre essas questões. Portanto houve ali uma crispação que foi acontecendo. Mas eu fui com um objectivo muito claro para o Benfica em termos individuais: ser igual a mim próprio. Não era por ir para o Benfica que ia mudar a minha personalidade. Tenho uma forma de estar que é assim desde miúdo e não quis entrar noutra tipo de actuação. Fui-me mantendo no meu caminho, fui fazendo o meu trajecto, fui trabalhando, resistindo em determinados momentos em que me apetecia responder, mas entendi que não queria entrar nesse jogo, e só entrei quando na realidade quis. Há quem diga que tem que se defender com unhas e dentes e tem que se ser, entre aspas, um arruaceiro se for preciso, para defender o Benfica. Eu sou assim, a minha forma de estar é muito tranquila, de bem com a vida. Depois acabámos por vencer. E quando vencemos tudo também faz sentido. Porque depois daquela confusão toda, quando chegámos ao último dia do campeonato e somos nós que ganhamos, é evidente que posso dizer que aquilo que fui vivendo foram decisões bem tomadas. E foi um campeonato, o primeiro, muito difícil, com um Sporting fortíssimo. O segundo já não tanto porque começaram a distanciar-se mais, mas o primeiro foi um adversário muito difícil, com uma equipa forte e tivemos mesmo de estar nos limites para ganhar.

A relação com Jorge Jesus nunca foi uma relação próxima, pois não?
Mas eu não tenho nenhuma relação particular com nenhum outro treinador. Tenho relações de respeito e cordialidade com todos, quando existe de parte mútua. Mas até à data não tinha havido nada que justificasse quer da minha parte quer da parte do Jorge Jesus qualquer... Não houve nada que se tivesse passado anteriormente que fosse um motivo. Acho que foi todo um processo que se desenrolou naquelas alturas. Mas já está passado.

Surpreendeu-o, não estava à espera daquelas indirectas e "ataques"?
Sim. Não via grandes motivos para que isso acontecesse. Uma coisa é termos tido uma chatice com alguém na vida e ficar ali algum rancor, agora, não houve nada que eu saiba que fosse motivo para o que quer que seja. Mas estas coisas do futebol são mesmo assim, passamos à frente, a vida continua, cada um é livre de ter a sua forma de estar, cada um pode justificar tudo o que entender e bem, porque como digo sempre há duas verdades, depende dos olhos de quem vê. São coisas que não têm muitas discussão. Cada um vai defender os seus argumentos. Siga, vida para a frente.

Pode dar-nos a sua visão e justificação para o aparente volte face de Luís Filipe Vieira em relação à sua continuidade no Benfica quando veio dizer, de um dia para o outro, que viu a luz?
Eu e o presidente Luís Filipe Vieira sempre tivemos uma relação de um respeito muito grande e consideração um pelo outro. Nunca na minha carreira pensei “vou ter de sair daqui, vou ter de safar-me e abandonar isto mesmo que deixe alguém na mão”. Não funciono assim. Há pessoas que têm essa capacidade de dizer "eu vou ter de sair, quem vier que feche a porta". Não vejo as coisas assim. Esgotámos até ao final, sempre com boas intenções, todas as possibilidades. Nem eu, nem o Benfica a querer tirar partido para si próprio. Era ver se havia ali comunhão e acreditamos e trabalhamos muito.

Mas alguma coisa aconteceu para de um momento para o outro haver aquele volte face. Uma conversa...
... Quantas vezes há um problema na vida das pessoas e as pessoas podem conversar, e vamos tentar, e vamos resolver e vamos mexer aqui, acreditamos que isto pode ter futuro... No fundo é isto. Acreditamos que é possível e vamos ver se dá para a coisa funcionar. Eu transfiro para uma relação entre marido e mulher, como para uma relação profissional ou de amizade. Quisemos esgotar todas as possibilidade porque gostávamos uns dos outros, as pessoas estavam envolvidas umas com as outras, vamos tentar, e foi isso. Também da mesma forma que quando analisamos e vimos que não valia pena e que se calhar a melhor solução é afastarmo-nos, eu desligar-me e o Benfica ter a possibilidade de ter outras opções, tudo bem na mesma e tudo se resolveu e terminou ali o ciclo.

Quando é que percebeu que não tinha hipótese de continuar?
Quando rescindo é quando temos a noção. Nós tínhamos perdido em Portimão e essa derrota foi quase dizer assim: "Eh pá, estamos aqui a tentar mas as coisas não funcionaram". E foi isso. Mas anteriormente sempre acreditámos, pensámos não virar cara a luta, não atirar a toalha ao chão, não desistir, porque isso não faz parte da minha essência. Por isso até àquele momento eu acreditei sempre que podíamos prosseguir.

Mas quem deu o primeiro passo para essa decisão?
As coisas nem são colocadas dessa maneira. Conversámos. "O que é tu achas disto?"; "Presidente, olhe que também se calhar acho que sim". Acho que foi claramente um mútuo acordo. Eu entendi também que aquilo já estava difícil para continuarmos, amigos como dantes. Mais vale sermos bons amigos do que estarmos a deteriorar ainda mais as relações.

Já tinha convites de outros lados?
Tenho um princípio muito claro, quando estou ligado a um clube, não falo com nenhum presidente, nem com ninguém de outro clube. Sabia de uma ou outra coisa, de abordagens, mas concretamente comigo isso não aconteceu. Já se tinha ouvido essa questão daqui do Al-Nassr tempos antes. Quando rescindo com o Benfica, rescindo a uma sexta-feira, as pessoas automaticamente vêm cá. Eu já pensava que não iria acontecer esta ligação, mas as pessoas pessoas vieram cá no domingo e na segunda assinei contrato, portanto foram 48h.

Com que sentimento saiu do Benfica?
Saio com a noção de dever cumprido. Ganhei todos os títulos que havia para ganhar pelo Benfica, só faltou uma Taça da Liga para fazer a volta completa dos títulos nacionais. Sinto-me realizado.

Mas a nível europeu as coisas não correram muito bem... Acha?
No primeiro ano fomos aos quartos de final da Liga dos Campeões. No segundo ano fomos aos oitavos de final e no terceiro ano não fomos apurados e aí é que foi o ano negativo. E no quarto ano apuramos a equipa para a Liga Europa. Na realidade, aquele terceiro ano, por variadíssimos aspetos, não foi um ano positivo, mas o Benfica não tinha passado a fase de grupos da Liga dos Campeões há muitos anos. Nos últimos dez anos salvo erro tinha passado uma vez. Portanto em três épocas e meia, dois apuramentos, uns quartos de final, uns oitavos de final e uma liga Europa... Temos um dado negativo que é o terceiro ano, mas não ofusca o resto.

O que o leva a aceitar ir para o Al-Nassr da Arábia Saudita?
Foi uma decisão muito difícil, com a ajuda dos meus adjuntos. Mas eu tive um feeling muito positivo em relação à Arábia com a pessoa com quem falei e depois fiz uma leitura muito rápida que foi: eu tinha ganho títulos no Benfica e teria ali também a possibilidade de continuar a ganhar títulos. Ao mesmo tempo, havia a questão financeira, não vamos esconder que são verbas importantes, e ao mesmo tempo havia a possibilidade de, se as coisas não corressem muito bem, fazemos os três ou quatro meses que faltavam e depois fazíamos esta época já com o nosso cunho pessoal. A equipa estava em 2º lugar e havia a possibilidade de ganhar a Taça do Rei, ganhar o campeonato e ir à Liga dos Campeões. Foram estes os objetivos: a parte financeira e o ganhar títulos. E felizmente que tomei essa decisão naquela altura. Agora o choque é grande porque são realidades completamente diferentes.

O que mais o chocou?
Quando falo em choque não é um choque negativo, é a diferença. Gosto de deixar claro isto porque muitas vezes temos uma imagem negativa deste lado do mundo, temos um preconceito. O choque é de mudança. Basta haver cinco momentos de reza que muda tudo em função desses períodos da reza. É algo que está presente no dia a dia do Médio Oriente. Temos de adaptar tudo, os horários dos treinos, dos jogos, as alimentações, etc. Enquanto em Portugal nós dizemos as regras e não há mais nada a condicionar, aqui só isso é uma variante muito grande. Por outro lado, na Europa somos muito mais rigorosos, aqui há jogadores de enorme qualidade, mas ainda falta um carácter mais competitivo, mais rigoroso. Embora, às vezes dou comigo aqui a jogar com 40 graus, e é a mesma coisa que jogar no Alentejo às três da tarde em Agosto, é sufocante. Portanto, quem tem estes climas muito quentes há necessidade de os ritmos serem ligeiramente mais baixos.

Essa falta de ambição pode ter a ver também com o facto de todos eles terem uma vida muito confortável e terem dinheiro com facilidade, não tendo por que lutar?
Pode ser uma das razões. Não há nenhum jogadores destes da Arábia que vá para a a Europa e que tenha o mesmo estatuto e a mesma vida. Isso retira de certa forma essa ambição. Não há aqui nenhum jogador a ser vendido por preços exorbitantes para lado nenhum. Porque há de facto uma estabilidade para o jogador árabe aqui. Agora o jogador árabe tem qualidade. E tem um reconhecimento pelas hierarquias que é de enaltecer. Quando gostam e reconhecem qualidade, são muito afáveis e mais chegados do que os europeus.

Quais são as mais valias do jogador árabe.
Eles têm um futebol muito tecnicista. Só que tem de ser com dinâmicas e ritmos mais baixos. É um bocadinho o nosso futebol e o nosso jogo, mas sem a intensidade e aquela dinâmica que temos. Mas fiquei surpreendido pela positiva. É evidente que tudo isto não chega para jogarmos a um nível europeu. Mas tem outros aspectos muito bons.

Como são os adeptos? Sentiu alguma dificuldade?
Diferentes porque têm manifestações estranhíssimas mas muito engraçadas. Dizem I love you, fazem corações e mandam beijinhos como nós mandamos às senhoras, dão beijinho na mão e espalham [risos]. E nós de repente ficamos assim com uma sensação estranha. Têm também um hábito curioso, principalmente em algumas relações de hierarquia a um nível mais elevado. Quando querem falar com alguém em particular agarram-nos pela mão e vamos conversar. E estamos dois homens de mão dada a passear no campo, por exemplo. Isso é normalíssimo entre eles. São coisa estranhas para nós e, quando chegámos, sentimos essa diferenças. Mas o povo é muito afável, tem o hábito de dar flores. Chegamos a qualquer hotel e dão-nos flores. Essas coisas dos corações e do I love you é que me "mata" [risos].

Calculo que já comeu no chão com eles. Adaptou-se bem à gastronomia árabe?
Claro que já me sentei com eles no chão, fazemos essas coisas de uma forma frequente. A comida tem muitas especiarias, mas nada de extraordinário. Agora, quando estamos a comer com a mão, eles têm uma técnica apuradíssima para apanhar o arroz e o borrego assado. Mas eu como sempre de colher [risos].

A sua mulher e filhos foram consigo?
Só vieram esta época, na passada estive aqui sozinho. Estão a gostar e têm a possibilidade de conhecer o mundo. As minhas duas filhas mais novas estão num colégio internacional. O Santiago, o meu filho que tem três anos, está na creche dentro do compound onde vivemos. Na sala dele há um de cada nacionalidade, portanto já está a aprender o inglês também. Estamos 23 portugueses no mesmo compound porque além da minha equipa técnica também trouxe treinadores para a formação, equipa médica, estamos todos com as famílias.

Entretanto já regressou a Portugal devido à pandemia. Tem o seu futuro profissional definido? Vai voltar para a Arábia?
Faltavam oito jogos para o campeonato terminar quando paramos, foi na véspera da meia final da Taça do Rei. Já estava equipado para começar a treinar quando chega a notícia do governo a dizer que a partir daquele momento não havia mais competições. Já nem treinámos. Só consegui regressar a Portugal esta semana. O campeonato não recomeça antes de agosto. Tenho contrato até final desta época, há possibilidade de renovar mas a decisão não está tomada. Vamos ver.

Gostava de voltar a treinar em Portugal?
Gostava, porque quando saí de Guimarães disse que não queria sair do Vitória para o estrangeiro, porque achava que faltava mais qualquer coisa em Portugal. Gostava de não sair de Portugal sem tentar um dos grandes para ver se conseguia ser campeão. Consegui. Mas quando saí do Benfica arranjei dois objectivos mínimos, que não vou revelar quais são, para voltar a Portugal. Não sou muito de fazer as coisas a longa distância, mas se tiver possibilidade, quero voltar a Portugal para cumprir mais dois objectivos que tenho.

Quais são os jogadores que lançou e que desde início sabia que iam voar mais alto?
Quando um jogador chega à equipa principal há um trabalho de muita gente e portanto quando eles são valorizados e vão para fora muita gente tem de ser reconhecida. Mas há uma coisa que é indesmentível, por mais voltas que se dê, por mais e melhor formação que haja se a porta da equipa principal não estiver aberta a probabilidade dos jogadores se valorizarem a ponto de irem para o estrangeiro é muito menor. Portanto, o treinador da equipa principal tem uma importância decisiva nesse abrir de portas. Eu tinha a convicção que dando oportunidade a alguns na primeira equipa, o crescimento deles ia ser brutal. Agora nenhum deles era visto à partida como uma estrela. Não havia aquela coisa: "Ah o Benfica tem aqui um novo Cristiano Ronaldo".

O João Félix não era visto já um bocadinho assim?
Antes, não. Na equipa de juniores e dos juvenis não. E o Ronaldo foi um estrela desde infantil até lá acima. O João fez um percurso, esteve no FCP veio para o Benfica e é um jogador que tem uma capacidade imensa e evoluiu muito nos últimos anos da sua formação. Mas mesmo em relação aos outros e estou a falar de um Nelson Semedo, do Victor Lindelöf, do Gonçalo Guedes, Renato Sanchez, do Ederson, foram jogadores que colocámos na equipa principal, como suporte para a nossa equipa para os fazer crescer. É evidente que isto não dá para todos, mas estes jogadores quando têm qualidade e pré-requisitos e quando entram para primeira equipa o crescimento é muito rápido. Eu não previa uma coisa do género: “Eh pá este jogador vai ser uma estrela”. Mas previa que alguns deles tinham condições para jogar a níveis ainda superiores. O mais difícil, e isto é claro para o Benfica como para qualquer equipa, é projetarmos o jogador que ainda não tem as características todas que queremos, mas sabermos que naquele contexto, com aqueles colegas, naquela cidade, com aquele treinador vai melhorar e se calhar agora vale xis mas daqui a uns anos vale xis, mais uns milhões. Como é que eu o vejo daqui as uns anos com trabalho acumulado? Isto é que é projectar e não é fácil. É fácil olhar para um jogo e dizer que aquele jogador é bom, agora fazer este tipo de projecção não. E o que tentámos fazer foi isso. Sinto muito orgulho quando os vejo jogar. Agora muita gente pode dizer que está a apostar, que apostou, mas a verdade é que foi o Benfica que abriu um bocadinho essas portas. Como o Sporting fez há uns anos. E a minha carreira tem estado relacionada com isso, já quando estava no Vilafranquense ou no Vitória, transformar plantéis, ter de mudar de paradigma e tentar ter rendimento. Não foi chegar ali e escolher os melhores.

Tem algum campeonato de sonho que gostava de experimentar enquanto treinador?
O inglês e o espanhol. Mas não é uma obsessão. É só porque os exemplos que tenho foram sempre muito positivos quando lá fui jogar. Sempre ouvi dizer que é um ambiente saudável e gostava de experimentar para saber. Mas não tenho isto como uma obsessão, não vou jogar para Inglaterra ou para Espanha só por ir.

Qual foi a situação mais complicada que viveu no balneário?
Tive situações desagradáveis no Vitória no primeiro ano, porque havia salários em atraso e havia confusões, mas nada assim... Uma vez, num clube, estive quase em vias de facto com um jogador, quase entramos à pancada um com o outro e eu travei à última hora, mas esse jogador também saiu automaticamente. O jogador acabou por pedir desculpa, os colegas também. Tive um outro caso curioso e caricato.

Conte.
Um jogo em que estou expulso, portanto estou na bancada, estamos a acabar o jogo e tenho de fazer uma substituição. O estádio completamente a abarrotar e eu tenho de fazer uma substituição e alterar o sistema táctico da minha equipa a 10 minutos do fim. Falo com o meu adjunto que está no banco para lhe explicar e ao mesmo tempo escrevo num papel em cima da mão, sem nada a apoiar, faço umas setas para cá e para lá e passo-lhe o papel, ele tem de passar a informação e o papel a um jogador que não falava nem português nem inglês; esse jogador tem de falar a outro estrangeiro, que falta português, mas que não falta inglês, que por sua vez tem de falar a um estrangeiro que não falta nem uma coisa nem outra. Eu tinha de alterar o sistema para três defesas e no papel pus os nomes dos jogadores e umas setas para cima e para baixo. Quando dou por mim, o que é que aconteceu? A meio do caminho é trocada a orientação do papel, ou seja, quando chega ao último o papel já não estava na posição correta, as setas ganham outro sentido e quando dou por ela, estão dois a jogar do mesmo lado [risos]. Isto a 10 minutos do fim, num jogo internacional, a precisar do resultado, num estádio com 70 mil pessoas. Sendo que a pior combinação de jogadores que podia haver, em termos de comunicação, para aquela mensagem eram aqueles três. Foi fartar de rir.

Onde é que ganhou mais dinheiro?
Na Arábia Saudita.

Onde investiu? Em Imobiliário ou meteu-se em algum negócio?
Ainda muito novo, com 20 ou 21 anos tive em sociedade com os amigos e primos meus, uma pequena pastelaria, mas que durou dois anos. Depois, com o futebol, o único investimento que acabei por fazer foi na compra da casa. Sou muito conservador.

Qual a maior extravagância que fez?
Do ponto vista financeiro não me lembro de ter gasto algum dinheiro mal gasto só por impulso. Eu diria que se calhar a compra de uma bateria eléctrica foi aquilo um pouco menos normal, eventualmente num ou outro carro que foram sendo melhores à medida que o tempo foi passando mas nada de muito extravagante.

Tem algum hóbi?
Não tenho assim nenhum óbvio que me ocupe o tempo livre, nem a bateria. Gosto de estar em casa sem grandes preocupações. Em casa é para descontrair e para descomprimir daquilo que é o desgaste natural da minha profissão.

Pratica ou segue outro desporto além do futebol?
Gosto de ver diversas modalidades, mais as colectivas e aí se calhar destacaria hóquei em patins, o basquetebol e voleibol. Depois, gosto de ver os grandes momentos desportivos que existem no mundo.

É crente?
Sou católico não praticante, acredito que há algo superior que nos guia, mas não sou demasiado crente nem tenho aquilo que normalmente as pessoas chamam de superstições tenho sim aquilo que eu chamo de rituais de conforto. Não é nada de especial mas são coisas que faço com regularidade porque por isto ou por aquilo correu bem e gosto de repetir.

Pode dar um exemplo?
Por exemplo quando algo corre bem e usamos o mesmo fato, a mesma camisa ou pisamos o mesmo percurso. Gosto de repetir, embora isso também acabe por ir mudando, por isso não fico demasiado agarrado a nada. Se correu bem na semana passada, repito e sigo em frente, mas não é nada que seja demasiado vinculativo.

Tem ou teve alguma alcunha?
Tive uma alcunha quando era miúdo. Chamavam-me o pé de chumbo. Mas era só os meus colegas de equipa e as pessoas de Alverca que me conheciam dessa maneira. Talvez porque sempre fui um pouco mais alto e mais forte do ponto vista físico e não era demasiado rápido. Chutava bem a bola e houve um treinador que me pôs esse nome que se foi mantendo ao longo da minha juventude.

Qual a maior amizade que fez no futebol?
No futebol não fazemos muitas amizades, porque vamos trocando de clube, as pessoas começam a ter outras vidas. Os meus amigos, que se mantém ao longo dos anos, são amigos com quem convivi a partir da minha juventude. Foram meus colegas também e até estabelecemos relações familiares ao tornarmo-nos padrinhos uns dos outros, padrinhos dos filhos uns dos outros. Esse é um grupo muito restrito de amigos. Temos muitos conhecidos, mas amigos temos poucos e os meus são maioritariamente esse grupo que vem da minha juventude.

Qual o treinador que mais o marcou?
Não tenho uma referência particular. É evidente que analiso o trabalho dos meus colegas e estamos sempre a aprender. Mas dou por mim a pensar que, enquanto treinador, tenho muito daquilo que vivi enquanto jogador, por isso as minhas influências foram praticamente todos os treinadores que tive.

E o jogador que mais o surpreendeu pela positiva, do qual não estava à espera de tanto?
Para responder essa pergunta se calhar teria que estar aqui muito tempo a pensar e isso é sinal de que não houve ninguém em particular. Eu diria que talvez a evolução dos jovens jogadores que comecei a treinar tenha sido aquilo que mais gostava de destacar e não propriamente um jogador.

Treinadores que sejam uma referência para si enquanto treinador, também não tem?
Não tenho treinadores que sejam de facto uma referência. Obviamente que, quando pensamos no José Mourinho, aí sim olho como uma referência do futebol português, do futebol mundial, que nos abriu portas. Mas, digamos, posso dizer que, além de Mourinho, aprecio Guardiola e Klopp.

Não tem mais nenhuma história que possa partilhar?
Quando cheguei à Arábia percebi que as pessoas da administração e alguns funcionários tinham muito o hábito de assistir ao treino a beber o seu chazinho. Eu não gosto de ter muita gente a assistir porque gosto que os jogadores estejam focados no treino sem haver muita gente a dispersar. Entretanto comecei a perceber que acabavam por sair mais informações e no dia seguinte avisei que não queria ter ninguém dentro do campo que não fosse necessário, só quem for essencial é que está dentro do campo, se era para estar só assistir tinha que sair. Eles levaram aquilo tanto à risca que, estando eu a dar o treino, entretanto há um jogador que se lesiona e comecei a chamar pelo médico. O médico estava sempre lá estacionado com o fisioterapeuta, olho e não vejo o doutor lá no sitio dele. Então, como o treino era à porta fechada e queriam tanto agradar-me que levaram o médico e o fisioterapeuta para dentro [risos]."