sábado, 25 de abril de 2020

Um lindo tributo à imparcialidade activa

"Se o juiz Proença fosse da laia ética e moral do juiz benfiquista dos nossos tribunais civis, ter-se-ia recusado a dirigir os jogos do Benfica e, consequentemente, o Benfica estaria agora a lutar, pelo menos, pelo seu 40.º título de Campeão Nacional de Futebol.

O juiz adepto do Benfica que ia julgar o caso de Rui Pinto pediu escusa do processo, por motivos de o seu benfiquismo público e notório poder vir a inquinar a decisão. Fez lindamente. É assim mesmo. O meu avô, um sujeito bastante pessimista, sempre me disse que os piores juízes para o Benfica eram os juízes do Benfica. Referia-se, obviamente, aos juízes de campo, aos árbitros dos jogos de futebol confessadamente benfiquistas que decidiam maquinalmente contra o Benfica todos os lances capitais para provarem a martelo a sua isenção. O julgamento de Rui Pinto que está na origem da renúncia do juiz benfiquista não tem nada a ver com o Benfica - tem a ver com o assalto informático aos servidores do Sporting e da Doyen por parte do 'hacker' do cabelo em pé -, mas, por isso mesmo, é de aplaudir a escusa do juiz. De acordo com a teoria do meu avô, a sua decisão seria sempre favorável no tribunal aos interesses do Sporting para que desse episódio judicial saísse intacta a sua honorabilidade e a sua imparcialidade.
Era assim que as coisas deviam passar também no futebol no que a juízes confessadamente benfiquistas diz respeito. Tomemos, por exemplo, o caso prático do antigo juiz de campo Pedro Proença, um juiz confessadamente benfiquista e que actualmente é o presidente da Liga dos Clubes. Se o juiz de campo Proença, por amor à isenção e respeitabilidade do cargo que ocupou de apito, fosse da laia ética e moral deste juiz benfiquista dos nossos tribunais civis, ter-se-ia recusado a dirigir todos os jogos do Benfica para que foi nomeado ao longo da sua profícua carreira de árbitro, e consequentemente, o Benfica estaria agora a lutar, pelo menos pelo seu 40.º título de campeão nacional de futebol. Isto, sim, é que seria um lindíssimo tributo à imparcialidade prática e activa. Mas, lamentavelmente, não foi assim que as coisas se passaram. O meu avô tinha mais do que razão. Tinha premonição.
A Liga dos Clubes só admite o regresso do campeonato se for reduzida para 16,7% a capacidade total dos estádios dos clubes portugueses que competem entre si na divisão principal. Chama-se a isto optimismo a toda a prova, tendo em conta que a maioria dos clubes em compita regista assistências muito abaixo das apontadas como limite máximo pela via profiláctica da Liga, que é a mãe-organizadora da prova. Mas não há como não sermos optimistas numa circunstância como esta. Aponte-se, portanto, para um máximo de 16% de bilhetes vendidos, até porque não é todos os dias que o Benfica visita os campos dos seus adversários. O optimismo, mesmo nas suas vertentes mais absurdas.
O Carlos Secretário disse esta semana que 'se calhar tinha sido melhor ir para o Barcelona' em vez de ter ido para o  Real Madrid. Ora cá estamos nós outra vez no campo do optimismo imperativo, mesmo nas suas vertentes mais absurdas. Haja alegria."

Regresso do futebol

"O regresso do futebol pode ser um bom barómetro, para medir o grau de regresso à normalidade, que foi desfeita pelo coronavírus.
O tema do regresso dos jogos de futebol é um assunto complicado. Não nos podemos esquecer do jogo Atalanta- Valencia, a 19 de Fevereiro em Milão, que 40.000 cidadãos de Bérgamo (cidade do Atalanta) deslocaram-se a San Siro. E as consequências que isso teve na propagação do vírus, pela utilização de autocarros, de carros, de comboios. Não esquecendo muitos deles estiveram na cidade de Valência. Pode dizer-se que foi uma bomba biológica em potência.
Se houver um controlo da transmissão e parte da população portuguesa e dos outros países conseguir passar incólume esta pandemia. Pode ser este o caminho, todavia não podemos dar oportunidade ao vírus de voltar a reactivar-se e ser de rápida transmissão.
Esta paragem do futebol está a romper a economia dos clubes. Não tenho dúvidas que esta temporada vai ser cumprida sem público para que não se perca os direitos televisivos. Uma decisão sensata perante o cenário reinante.
Se calhar, Aleksander Ceferin, presidente da UEFA, tem razão quando diz, "será melhor jogar sem espectadores do que não o fazer". Eu preferia futebol com assistência, não há comparação possível. 
Ao dizê-lo está a olhar pela sua vida e pelo seu lugar. O negócio de fazer dinheiro com as transmissões televisivas. Os espectadores nestas contas pouco contam, mas são imprescindíveis.
Será a questão que está na agenda futebolística. Para quando o regresso? A vacina ainda vai demorar algum tempo. O futebol tem que voltar com pezinhos de lã. O seu regresso exige mais segurança, quer sanitária, quer física. Os estádios levarão menos assistência.
O seu regresso tem que ser harmonizado, sensato, eficaz e bem preparado. O seu regresso não se compadece com amadorismo.
Um regresso em falso e fracassado será aterrador para quem gosta de futebol e tudo que o envolve. 
Eu quero ter o privilégio de voltar a ver grandes jogos de futebol com grandes jogadores de futebol e a ler o que se passa nos jornais desportivos, em especial no Record."

“Num estágio, na fila do buffet para as saladas, apalpei o rabo ao treinador Ivic a pensar que era um colega. Foi gargalhada geral”

"Vítor Paneira tem 54 anos e um passado de peso no Benfica e no Vitória de Guimarães, depois de ter feito a formação no Famalicão, o clube da sua terra, que viria a treinar anos mais tarde. Numa longa viagem ao passado, fala-nos dos anos que passou na Luz, na pena que teve de cumprir por ter sido considerado desertor, nas diferenças entre Toni e Artur Jorge, explica como uma entrevista o pôs fora do Benfica e como, mais tarde, um gesto de Pimenta Machado ditou a sua saída de Guimarães, um ano antes de terminar um contrato que esteve para não existir

Nasceu onde, quem era a sua família?
Nasci em Calendário, Vila Nova de Famalicão. Sou o irmão do meio de três irmãos rapazes. Os meus pais tinham um restaurante "Vai ou racha", em Famalicão. A minha mãe faleceu há um ano e meio e como ela é que gostava daquilo e era a força aquilo, fechámos.

A paixão pelo futebol começa cedo?
Sim, desde pequenino, embora curiosamente tenha começado a jogar futebol federado muito tarde, só aos 16 anos.

Gostava da escola?
Gostava mais de bola, sinceramente [risos].

Torcia por que clube e quem eram os seus ídolos?
O meu clube foi sempre o Benfica. O Carlos Manuel e o Chalana eram os meus ídolos da juventude. 

Começou a jogar com 16 anos no Riopele. Como foi para lá?
O meu irmão mais velho jogou vólei, mas tinha paixão pelo desporto e foi um dia lá treinar. Era um treino para juniores, supostamente, mas acabou por ser para juvenis e eu era o único que tinha idade para treinar nos juvenis. Como estava lá, insistiram para que treinasse. Acabei por treinar e ficar nos juvenis do Riopele.

Como vai parar ao Famalicão?
O Famalicão foi sempre o meu clube da terra, cresci a assistir aos jogos do Famalicão. Vou para lá no ano a seguir, para os juniores. É quando o Riopele também acaba por desistir do futebol por causa de um caso de corrupção que foi muito falado na altura. Vou para o Famalicão, faço uma época de juniores e subo a sénior. Acabo por ter ali o meu início de trajecto como futebolista.
Nessa altura já tinha deixado os estudos?
Sim, aos 17 anos deixei de estudar. Já me pagavam algum dinheiro.

Lembra-se do valor do primeiro ordenado?
Eram 10 contos [50€] [risos].

O que fez a esse dinheiro?
Sinceramente não me recordo, mas eventualmente comprei uns ténis.

Voltando ao Vizela. Não é nessa altura que assina também pelo Benfica?
A história é assim: eu assino pelo Vizela no sábado e na segunda-feira liga-me o Benfica, para casa dos meus pais. Eu estava na casa da minha namorada, toca o telefone e pedem-me para ir para casa, porque tinham ligado umas pessoas do Benfica para falar comigo. Eu pensei que aquilo era uma brincadeira, porque tinha saído de forma meio complicada do Famalicão, não tínhamos chegado a acordo e pensei que era alguém que sabia que eu ía para o Vizela... Mas fui para casa dos meus pais, fiquei à espera de novo telefonema, sempre a dizer aos meus pais que devia ser tanga.

Mas ligaram.
Sim, entretanto o telefone toca e era o falecido Peres Bandeira a dizer que gostava que eu fosse para o Benfica. Eu ainda não acreditava. Disse-lhe que tinha assinado no sábado pelo Vizela. Ele disse: "Não te preocupes que nós temos óptimas relações com o clube e vamos tratar disso. Só queremos saber se estás interessado". Claro que estava [risos]. Nem discuti valores nem nada. E foi assim a minha ida para o Benfica. Passado uns tempos fui convocado para a selecção de esperanças.

O Vizela libertou-o assim sem mais nem menos?
O Benfica chega a acordo mas o Vizela impôs a condição de eu ficar a jogar no Vizela esse ano. Foi a única contrapartida, além da financeira naturalmente. O Benfica concordou. Fiz esse ano no Vizela e no ano a seguir vou para o Benfica.

Estava dizer que foi convocado para a selecção de esperanças...
Sim, na fase final dessa época no Famalicão há o Torneio de Toulon. Na altura a selecção convocava dois jogadores de cada clube da zona norte, fazia uma concentração para ver alguns jogadores que pedia às equipas para indicar. Eu fui um dos jogadores indicados pelo Famalicão para ir ao treino. E sou visto pelo Peres Bandeira. É assim que a coisa se processa, se não estou em erro. Faço o Torneio de Toulon em 1987, acabei por ser um jogador de referência no torneio, depois venho a Lisboa e assino pelo Benfica.

Recorda-se do primeiro jogo como sénior?
Sim, joguei em S. João da Madeira. No dia em que faço a minha estreia, perdemos 3-0, o Benfica vai jogar a Guimarães e perde 4-1, sendo que o Vitória meteu em campo quase todos os juniores porque era um jogo que já não tinha grande interesse e o Vitória queria ver a qualidade dos seus jovens. A minha estreia coincidiu com esse jogo e com as estreia dos jogadores que jogaram comigo no Riopele e que foram para o Guimarães.

Fica duas épocas no Famalicão como sénior. E depois?
Estou em negociações com o Famalicão e não chegamos a acordo. Faltava um mês ou dois para final da época. Eu pedi valores que achava justos para aquilo que ganhavam os meus colegas e a importância que eu tinha na equipa. Só que como era um jogador da terra o Famalicão "nem pensar, esquece, não vale a pena". É quando começa a treinar o Francisco Vital no Vizela, que vem ter comigo e pergunta se estou interessado em ir para lá. Eu disse que iria para o Vizela dentro de umas condições. Como era campo pelado, não me apetecia muito ir para lá e lancei um número mais alto [risos]. No dia a seguir acabaram por vir ter comigo para assinar. O dinheiro dava jeito, eu ia casar nesse ano.
Quando conhece a sua mulher?
Conheci a Rosa Maria quando tinha 17 anos e estava a jogar no Riopele. Ela trabalhava nos escritórios do Riopele na altura. Estamos juntos há 34 anos.

Quando vai para Lisboa, já está casado, vai com a sua mulher ou sozinho?
Vou casado e a minha mulher já estava grávida do meu filho Vítor Hugo, que nasce em Outubro, em Lisboa. Curiosamente o meu filho nasce numa sexta-feira, quando sou convocado pela primeira vez para a selecção nacional. As convocatórias eram dadas pela televisão, eu sei que sou convocado e nessa madrugada a minha mulher acaba por ir para a maternidade e o meu filho nasceu.

Como foi chegar à grande cidade e ter de se adaptar a Lisboa?
Foi estranho. Para além da emoção de ir para um grande clube e de ser tudo novo para mim, vim para Lisboa inicialmente sozinho porque era aquela primeira fase em que vamos para pré-época. Eu ainda tinha dúvidas se iria ficar, tinha muitas dúvidas, tanto eu como os meus colegas que eram contratados da II divisão. Como éramos jogadores com menos expressão não sabíamos se iríamos ser emprestados a outros clubes. Havia sempre a tentação na pré-época de outros clubes procurarem levar jogadores ao Benfica por empréstimo. Mas a verdade é que o Toni diz que eu não seria emprestado, que ia fazer parte do plantel e que não me deixaria sair de maneira alguma.

Recorda-se da primeira vez que entrou no balneário, o que que sentiu?
Quando chegámos fomos direitos para os exames médicos e eu era uma cara desconhecida, era mais um a entrar, ninguém sabia quem eu era e perguntavam constantemente: "Tu, quem és? Como é que te chamas?" E eu todo envergonhado: "Eu sou o Paneira", "Ah ok, anda comigo". Depois fui-me sentar no cantinho. Tínhamos o Ricardo, o Diamantino, o Veloso, ainda estava a jogar o Shéu, foi o último ano dele, o Manuel Bento, o Silvino, o Álvaro, uma equipa cheia de estrelas.

Como é que foi ver-se no meio deles todos e sobretudo jogar ao lado do seu ídolo, o Chalana?
Foi tudo muito estranho, eu estava muito nervoso, muito envergonhado, só olhava, a ver o que é que me rodeava, quietinho no meu cantinho, só se me chamassem é que eu dizia alguma coisa. Recordo que alguns perguntavam quem era, cumprimentavam-me e diziam: "Estás à vontade, estamos aqui para te ajudar. Vais ver que isto é fácil, não tenhas medo". Aquelas palavras que havia muito na altura, um apoio para quem chega não se sentir estranho. Naturalmente com uma distância enormíssima porque eles tinham o grupo feito e para a gente se aproximar era quase impossível. Mas aquela primeira palavra, aquele primeiro estímulo "estás à vontade, estás aqui, se precisares de alguma coisa diz", cria sempre empatia.

Alguém em especial que tenha falado mais consigo?
O Veloso foi dos primeiros a dar-me palavras de incentivo. O Pacheco também, tínhamos sido colegas na selecção de esperanças no ano anterior: "Então pá, estás bem? Se precisares de alguma coisa, estou aqui". Mas houve muitos que se manifestaram.

E lidar com o Toni? Era um treinador muito diferente dos outros que tinha tido?
Há coisas que não podemos comparar. Os treinadores que tive foram todos bons mas acima de tudo homens correctos, sinceros, amigos, uma dimensão diferente. Chegar ali e encontrar o Toni com as estrelas todas, ter uma pessoa que é amável comigo, que brinca comigo e que me dá confiança, que vem dizer: "Estás à vontade, vais ver que isto é fácil. Não te deixes levar pelo medo, põe cá para fora aquilo que tu sabes. Quanto mais rápido conseguires soltar-te, mais rápido vais ter benefícios com isso". Era muito frontal, muito amigo. O Toni tem aquele coração enorme, toda a gente sabe como é que ele é como pessoa. Foi sempre um treinador muito próximo, com palavras muito de incentivo, de carinho, de pessoa calma que está ali para ajudar e compartilhar mais qualquer coisa.
Lembra-se do seu jogo de estreia pelo Benfica?
Fiz alguns jogos na pré-época a titular, mas oficialmente o primeiro jogo foram 20 minutos para a Taça UEFA, em que ganhámos 3-0 ao Montpellier. E faço a minha estreia como titular em Portimão. Com aqueles 20 minutos em que entrei muito bem em Montpellier, fui aposta do Toni, em Portimão. Três meses depois estava na selecção nacional a jogar.

Estreia-se na selecção A em que jogo?
Na Suécia, empatámos a zero. Joguei na segunda parte. Foi tudo muito seguido, tudo muito novo. Tudo a acontecer ao mesmo tempo, mas no melhor caminho. Chegar e jogar no Benfica, ser chamado à selecção, as coisas estavam a tornar-se realidade e cada dia que passava parecia um sonho, mas estava a vivê-las de verdade.

Na época seguinte sai Toni vem o Eriksson.
Sim, somos campeões, perdemos a fase final da Taça de Portugal e o Toni passa a adjunto do Eriksson.

Muito diferentes um do outro?
Duas pessoas incríveis, duas pessoas com um trato extraordinário, com uma postura directa, muito correta, sempre protegendo. O Eriksson tinha a particularidade de falar pouco. As suas palestras eram resumidas a três ou quatro minutos com o que ele achava que era importante, mas era o suficiente para motivar.

Ao nível do treino eram muito diferentes?
Não, quase a mesma linha, porque o Toni tinha sido adjunto do Eriksson da primeira vez que ele cá esteve, portanto já havia ali um treino muito idêntico. Naturalmente tinham ideias próprias também dentro daquilo que é a grandeza do Benfica, que tem de jogar sempre para ganhar, sejam eles ou outros treinadores.

Entretanto, ainda antes de chegar o Eriksson, o Vitor foi acusado de desertar da tropa. Explique lá isso.
A lei dizia que os militares tinham de aparecer no quartel até uma determinada hora limite e a hora limite era a uma da manhã de domingo para segunda-feira. Eu um dia cheguei às dez da manhã. Fui com o meu advogado, o doutor João Rodrigues, que se prontificou para ser meu advogado. Só que as leis militares não têm nada a ver com as leis civis. Quando entro no quartel disse ao doutor João Rodrigues que eventualmente ia levar algumas penalizações, alguns fins de semana de castigo e ele não gostou muito daquilo e disse: "Não, ele não fica. Vamos resolver isto em tribunal". Eu ainda lhe disse: "Atenção que as leis não são iguais". Foi o que aconteceu, sou dado como desertor quando compareci e disse que queria cumprir o serviço militar. Mas também não faz muito sentido, eu estava a defender as cores da selecção. Acredito que me castigaram para ser um exemplo para outros, seguramente foi isso.

Foi condenado a quanto tempo, esteve onde a cumprir e a fazer o quê?
A pena foi de três meses e meio, mas só cumpri 37 dias. Saí por bom comportamento a meio da pena. Estive na casa de reclusão no Porto, ao pé da Constituição, do campo do Futebol Clube do Porto, mesmo ao lado.

Como é que era o seu dia?
Não era um preso [risos]. Estava dentro de um quartel, andava à vontade, dávamo-nos todos bem, conversávamos, dava entrevistas à televisão, às rádios e aos jornais. Os dias forma passados com rapidez e as coisas foram-se fazendo.

A sua mulher e o seu filho ficaram sozinhos em Lisboa?
Não, estavam cá em Famalicão. Tenho cá casa.
Ou seja, não foi um mês muito difícil.
Não, não foi. Foi mais o choque de ter de pagar por uma coisa que não faz sentido. Eu estava a defender as cores da selecção, estava a jogar na selecção nacional, portanto já estava a defender o país. Cheguei umas horas mais tarde... Mas, enfim, não difícil. Foi difícil em termos emotivos. Aquilo não era uma prisão, portanto não era nada de extraordinário, era só o saber que não podia sair dali, que estava fechado dentro de um edifício. Isso custava um bocado. Mas o edifício tinha pátios, campos, dava para jogar futebol durante o dia, basquete durante a tarde, passávamos o tempo bem. 

Isso fê-lo perder a pré-época?
Não, porque consegui cumprir a pena numa altura que coincidiu com as minhas férias, com as férias do clube. Entrei na pré-época dois ou três dias mais tarde do que os meus colegas eventualmente. Perdi foi as férias [risos].

Na primeira época de Eriksson o momento mais alto foi a final da Taça dos Campeões Europeus. Mas não conseguiram ganhar o campeonato. Fale-nos um bocadinho dessa época.
Nós temos um início de época incrível, goleamos as equipas todas. Tínhamos feito uma boa pré-época, estávamos muito bem, muitos seguros, muito leves, com uma alegria imensa e começámos a cilindrar as equipas todas. Estávamos mesmo com um andamento muito grande. Mas veio o inverno e as coisas começaram-se a complicar. A pré-época tinha sido mais leve que o normal e nós pagámos mais tarde por isso, mas conseguimos ir à final da Liga dos Campeões. Fica o registo de uma época que acaba por não ser uma época positiva, porque o Benfica não ganhou títulos, mas tem uma presença, quase como uma afirmação de um Benfica europeu. Porque dois anos antes tinha estado em Estugarda numa final.

Nas duas épocas seguintes de Eriksson o que mais tem gravado na memória?
Foram sempre épocas muito positivas a jogar bem, o Benfica a jogar bem, temos a conquista de um campeonato que foi extremamente difícil; temos boas presenças em termos europeus. Nessa altura só temos primeiros ou segundos lugares. Com o Eriksson tivemos sempre uma qualidade de jogo enormíssima, uma equipa descontraída, a jogar com os grandes da Europa, grandes eliminatórias em termos internacionais e começamos a deixar uma marca de uma equipa que estava a construir novamente caminho para poder chegar a finais europeias.

Segue-se o Ivic como treinador.
Sim, mas o Ivic foi uma situação prematura, acaba por não entrar bem no Benfica. Excelente pessoa, muito dedicado ao futebol, jogava muito com a parte emotiva dos jogadores, com o discurso individual, mas as coisas não correram bem. A equipa não estava bem, a troca de posições também complicava muito a nossa estrutura, havia momentos em que os laterais jogavam a centrais, os que eram trincos jogavam a médios... Houve ali uma série de mudanças que não estavam muito bem e nós acabamos por enfraquecer nessa parte final e ele acabou por ser despedido.

E regressa o Toni.
Sim, regressa o Toni, ainda a tempo de conseguir ganhar a Taça de Portugal.

A época seguinte fica marcada pelo dérbi do 6-3.
É o Toni que transita para a época seguinte, numa era muito complicada, de grandes complicações dentro do seio do Benfica. Ordenados em atraso, jogadores a sair, jogadores suspensos, estou-me a reportar aos três russos [Yuran, Mostovoi e Kulkov].

Como é que isso era vivido dentro do balneário?
Por muito que se diga que passa ao lado do grupo, não é assim. Já naquela altura os três jornais desportivos eram muito agressivos, no sentido de procurarem saber o porquê das coisas. Nós éramos uma fonte de alimentação, nós, os jogadores suspensos, os russos, polémicas e ordenados em atraso, éramos uma constante nos jornais e isso não era vivido de uma forma muito tranquila.
O Vítor também teve ordenados em atraso?
Sim, tínhamos todos. O máximo que estive sem receber acho que foram três meses. As coisas não foram fáceis essa época. Foi uma época que não se explica, a mística, o benfiquismo, a união, tudo isso fez com que conseguíssemos ultrapassar tudo e as pessoas que ficaram à frente têm um papel importante. Estou a referir-me ao Toni. A forma como o Toni vivia o Benfica, como o conhecia por dentro e por fora, a forma como lidava connosco, foi o treinador certo. Ou melhor, nem sempre foi uma pessoa muito certa nas alturas em que esteve no Benfica e acaba por ser por aqui. A forma como ele soube pegar nas pontas de uma equipa que estava com ordenados em atraso, que estava destroçada com perdas de jogadores, com jogadores a sair...

Essa é a altura em que saiu o Paulo Sousa e o Pacheco para o Sporting…
O João Pinto esteve no limite, eu também estive para sair...

Para onde?
Para o Sporting e para o FC Porto, tinha essa possibilidade também.

Não foi porquê?
Porquê? [risos] A minha ligação é forte com o Benfica. E as coisas também acabaram por não surgir, ainda houve tentativas mas nunca foram conclusivas, também nunca me lancei muito para que houvesse essa possibilidade.

Voltando ao dérbi.
Acaba por ser um jogo decisivo. Nós temos um jogo contra o Estrela da Amadora em casa, estávamos com uma vantagem de dois pontos para o Sporting. Tínhamos vencido o Sporting na nossa casa na primeira volta, portanto levávamos ali um resultado que nos era favorável, mas a verdade é que a gente perde essa vantagem ao empatar em casa 1-1 com o E. Amadora. Fomos para Alvalade só com ponto de diferença. O Sporting ganhando passaria para a frente e depois dificilmente perderiam aquele campeonato porque tinham uma super equipa também. Os russos suspensos, nós a empatar em casa numa jornada antes… Tudo aquilo que rodeou essa semana foi muito difícil para nós. Após o jogo com o Estrela da Amadora fomos logo para estágio, Regressámos a casa no dia a seguir e depois fomos para estágio na sexta-feira, dois dias antes do jogo. Era um jogo decisivo, era o jogo do título. A história desse jogo já foi contada milhares de vezes.

Queremos ouvir mais uma, contada por si.
Quando me perguntam qual foi o jogo que mais recordo menciono normalmente este jogo pelas emoções que tive, pela envolvência que houve antes do jogo, depois do jogo, pela decisão do jogo. Não que para mim o Sporting fosse o principal rival, foi sempre o FC Porto, mas esse jogo tem tudo o que há de controle ou descontrole naquilo que é o futebolista. Isto é, nós temos uma vantagem de dois pontos, perdemos essa vantagem quando menos esperávamos, em casa, somos insultados no final do jogo por 5 mil ou 10 mil adeptos à porta do estádio, entramos no autocarro e vamos para estágio. Mas na semana de preparação para o jogo inverte-se tudo aquilo que tinha sido o clima após o jogo com o Estrela, ou seja, as pessoas perceberam que nós precisávamos de apoio, não precisávamos de contestação e iam para os treinos apoiar-nos, fazendo-nos acreditar que iríamos lá ganhar, que eles estavam connosco. No dia do jogo, quando vamos a passar ao pé do estádio, foi uma coisa incrível, estavam milhares de benfiquistas que se recusam a ir a Alvalade para nos mostrar aquele calor, aquele apoio antes do último momento. Encontrámos depois mais à frente a nossa claque na rua, o trajeto era feito a pé da Luz para Alvalade, foi uma coisa inacreditável, e nós começámos a ganhar aquela motivação.

Há um dado engraçado que o Toni refere muitas vezes, que foi o facto de não ter posto o Rui Costa de início e que ele nunca lhe terá perdoado.
É verdade [risos].

Sentiam que o Rui Costa estava com azia?
Não. O Rui Costa fez os jogos todos dessa época a titular, muito provavelmente, à exceção do jogo em Alvalade, que é o jogo que o Rui Costa se calhar mais gostaria de jogar. Mas foi estratégia do Toni, que abdicou de o colocar. Ele era um jogador incrível, cheio de talento. Qualquer jogador fica sempre com azia quando não entra nesses jogos. Mas o Rui Costa, mais do que jogar o jogo, queria mesmo era que o Benfica ganhasse e percebe-se isso nos festejos do golo, quando ele sai do banco a correr e vai abraçar toda a gente. Porque estava ali muito do que nós fizemos e do que éramos capazes de fazer. Estava ali um título perante o nosso rival, na casa dele. Portanto, se houve uma azia de certeza que o Rui Costa perdoou, embora seja uma das recordações que o Rui joga na cara do Toni.

Qual foi para si o momento decisivo?
Acho que é quando fazemos o 2-2. Nesse momento começo a pensar que íamos ganhar aquele jogo. Depois o Carlos Queiroz tira o Paulo Torres e abre aquele corredor, a equipa foi inteligente na forma como soubemos canalizar quase todo o nosso jogo para ali e matar o jogo. Depois os golos acabaram por surgir com naturalidade. Recordo-me que ao sexto golo, ao 6-2, viro-me para os adeptos e faço sinal que ainda iríamos chegar ao 7 [risos]. Queríamos vingar o 7-1 de alguns anos atrás quando o Benfica perdeu lá 7-1 [risos].
Esse campeonato teve um sabor diferente dos outros?
Possivelmente foi o mais difícil, o mais complicado. Houve troca de direcções, troca de presidentes ainda a meio da época, os ordenados em atraso, a suspensão de jogadores... Foi uma época muito atribulada, muito complicada. Só mesmo com um espírito incrível e nós tínhamos esse espírito. Recordo-me que todas as semanas juntávamo-nos todos para almoçar. Iam os jogadores todos e isso cria laços, força, cria grupo e o futebol vive muito disso, vive muito daquilo que é o grupo, do entendimento entre os jogadores. Embora todos queiramos jogar, éramos 25 ou 26, só podem jogar 11, mas todos temos de estar a puxar para o mesmo lado. Acho que no Benfica aconteceu isso, tudo a puxar para o mesmo lado, todos a querer ganhar e a querer ser campeões e possivelmente esse foi um dos títulos mais complicados da história do Benfica. Ainda há pouco tempo falei com o Rui Costa sobre isso e ele também concorda.

Tem mais algum episódio, alguma história que possa contar dessa época?
[risos] Tenho que fazer um esforço... Mas nessa época era constante a situação com os russos. Eram óptimos jogadores, todos eles eram craques, jogadores de muita qualidade, mas tinham uma parte de irreverência que implicava com a parte profissional. Tínhamos que estar a gerir… Depois como eram jogadores complicados, que jogavam em posições onde jogavam outros jogadores que também tinham muito peso... Por exemplo, o Yuran jogava muitas vezes no lugar do Rui Águas, que era um peso fortíssimo no historial Benfica, o pai, o José Águas, era um jogador enorme, e o Yuran fazer o que fazia e muitas vezes ser opção... Não eram momentos fáceis para ninguém.

Depois vem o Artur Jorge. Como reagiu a equipa?
O Toni sai por opção do Manuel Damásio. Era um sonho que tinha, de trazer o Artur Jorge para treinar o Benfica. Ou ele não acreditava que nós ganharíamos aquele título... Porque ninguém manda embora um treinador que ganha uma Taça de Portugal no ano anterior com meia época e fazendo a época que fez, pega num clube com ordenados em atraso, com alteração de direcção e é campeão na casa do rival. Portanto houve ali uma precipitação ou uma premeditação, se quisermos, que caiu mal, caiu muito mal na história do Benfica, que ainda hoje tem marcas dessa decisão e de outras que vieram depois.

O Artur Jorge muito diferente do Toni, calculo. Um homem mais distante, mais frio?
São pessoas completamente diferentes, apesar de serem amigos. Mas são formas diferentes de estar, o contacto directo não é um contacto com o calor e o carinho do Toni, por exemplo. Há um isolamento, há quase o afastamento total daquilo que o rodeia, o que não é bom muitas vezes. Obviamente que os jogadores têm de estar num patamar diferente, mas há relacionamentos, há um calor e há o sentido de perceber também as emoções do outro lado. Para nós havia um distanciamento sempre presente, muita dúvida, muita desconfiança, foi-se criando focos de desconfiança entre os jogadores provocados por alguém, fortes desconfianças dos jogadores também com a equipa técnica. A forma como andavam alguns elementos da equipa técnica no balneário também criava muitas dúvidas. Uma época para esquecer. E então para mim especialmente foi uma época para esquecer.

O Artur Jorge acaba por afastar uma série de jogadores.
Sim, acaba por fazer a tal limpeza que já tinha feito há uns anos no FC Porto. Atacando sempre aqueles que seriam os mais velhos, que tinham alguma história e algum peso no Benfica. Foram esses que foram embora.

Acha que ele tinha receio que os jogadores mais velhos lhe “fizessem a cama”, como se costuma dizer?
Só tinha havido um treinador que tinha sido despedido em sete anos no Benfica, que foi o Ivic, portanto não pode pairar qualquer possibilidade desse receio porque o Benfica em termos de treinadores era estável. Eu só tive Eriksson, Toni e Ivic uns meses, em sete ou oito anos. Não sei se há premeditação, se há um conjunto de pessoas que trabalharam esse momento, ainda hoje tenho alguma dificuldade em perceber o porquê disso. Todos nós que saímos do Benfica na altura éramos jogadores com muitos anos, com muitos campeonatos ganhos, com muitos sacrifícios, com ligações fortíssimas ao clube. São opções. Não é só o Artur Jorge o culpado. Eu não acredito que chegue um treinador ao Barcelona ou ao Real Madrid e mande quatro, cinco jogadores embora daqueles mais históricos porque lhe apetece. Não é possível. Por isso tem de haver aqui conivência de outras pessoas e responsabilidade na forma como deixaram um treinador a mandar no clube. Eu joguei muito, fui capitão de equipa, fiz alguns golos, entrei muito bem nesse campeonato, foi-me proposta ainda a possibilidade de renovação por mais de três anos e de um momento para o outro tudo desmoronou e foi ao contrário. Há ali muita coisa que não bate certo. Também há a situação do senhor Artur Jorge ter sido operado na altura, de aquilo ficar um bocado entregue aos adjuntos. Também se viveu ali momentos difíceis, mas não justifica tudo o que se passou naquela época e a forma como fomos afastados e tratados.
Nem chega a acabar a época no Benfica.
Eu não chego a acabar a época no Benfica porque dou uma entrevista ao "Record" como capitão ou sub-capitão de equipa a dizer que havia coisas muito graves que se estavam a passar e que tinham de ser tomadas atitudes. Essa entrevista resultou num processo disciplinar, fui dado como culpado e mandado embora. Nem sequer cheguei a finalizar a época. E com multa.

Que multa?
€10 mil actuais, na altura dois mil contos. É verdade.

Tinha empresário? Já tinha contactos de outras equipas?
Não. Nunca tive empresário. O saber que não iria mais representar o Benfica foi um choque. Demorei algum tempo a recompor-me. Naturalmente a vida seguiu, eu tinha 28 anos, ainda era muito novo para acabar a carreira. E se calhar até estaria ainda num dos melhores momentos da minha carreira e não faz sentido aquele despedimento. Acabei por ser considerado, um ou dois anos, o melhor jogador do campeonato, ainda vou a um Europeu, portanto ainda tinha muito para dar ao Benfica. Mas foi difícil depois de sair do Benfica voltar a normalizar, a estabilizar.

Como vai parar então ao V. Guimarães?
Depois tenho uma série de equipas interessadas. Tenho em Espanha, o Logroñés, na Suíça, o Sion, também tenho em Portugal o V. Guimarães, o Marítimo e o Belenenses. E como saí mesmo abalado de Lisboa, a minha decisão foi vir para casa. Foi o meu primeiro pensamento. Tinha propostas muito mais vantajosas para mim, mas a minha opção foi o V. Guimarães e ainda bem que foi, porque fiz quatro épocas de excelência em Guimarães. Foi muito bom.

Quando chega o treinador é o Vítor Oliveira.
É, mas as coisas não lhe correm bem, acaba por sair muito próximo de dezembro e vem o Jaime Pacheco.

Gostou do Vítor Oliveira?
Já o conhecia. É um excelente treinador mas acho que como homem se sobrepõe àquilo que é como treinador. É frontal, é directo, é honesto, mas as coisas não correram bem em Guimarães, não foram fáceis para ele e acaba por tomar a atitude de sair e é quando entra o Jaime Pacheco que acaba por lançar-se ali como treinador. O Jaime tinha uma ligação fortíssima aos jogadores, uma relação aberta, sincera também, participava nos treinos. Ele soube tirar aproveitamento da grande qualidade dos jogadores que tinha no V. Guimarães. Ele ainda costuma dizer que das melhores equipas que treinou foi essa equipa do Vitória.

Recuperam, chegam ao 4º lugar nessa época.
E na época seguinte começamos bem, já estávamos na frente do campeonato e o Pacheco é despedido porque perdemos em casa e chateou-se com o director. O Dr. Pimenta Machado despediu o Jaime Pacheco porque faltou ao respeito a um director dele. Estávamos em 2º lugar, salvo erro. E vem o Quinito.

Que tal o Quinito?
É o romântico do futebol. É tudo aquilo que a gente não pensa ouvir no meio de uma dificuldade ou antes de um jogo de futebol que pode ser complicado para todos, ele é um romântico. Ele é capaz de dizer dos outros que se lhe tirarmos a camisola eles são fracos e nós é que somos os bons e vamos lá ganhar. Trabalha a parte mental de uma forma extraordinária. Toda a gente conta histórias incríveis dele.
Tem alguma que se lembre?
Tenho muitas com ele, mas tenho esta: fomos jogar contra o Benfica, à Luz, para a Taça de Portugal e a palestra do Quinito é: "Nós estamos a jogar no Estádio da Luz e estamos à frente neste jogo. Vamos jogar 11 contra 10". Nós ficamos a olhar para ele. Não percebemos. Então ele diz que o Thomas, que jogava no meio-campo, só sabia jogar para trás e para o lado, não fazia diferença nenhuma no jogo. "O gajo é fraco, vamos ganhar aqui". E a verdade é que nós perdemos 1-0 e foi o Thomas que marcou o golo [risos].

O que é que o Quinito disse depois?
"Este gajo enganou-se hoje e logo contra mim" [risos].

Do Euro 1996, o que mais o marcou?
Foi a minha primeira experiência numa fase final de uma competição daquelas. A minha geração merecia mais porque havia jogadores de grande talento e muitos estávamos a passar um bocadinho ao lado das grandes competições. O Futre acaba por apanhar o Mundial do México no início da sua carreira, aos 17 anos, e depois está para ir ao Europeu e lesiona-se. Imaginem o Futre, que é aquele fenómeno, acaba por só apanhar o México. Mas lembro-me que tínhamos uma super equipa e que fomos acreditando que era possível fazer qualquer coisa de diferente e melhorar o que tínhamos feito até aí enquanto selecção. E estivemos quase.

E que tal o António Oliveira como seleccionador?
Era um treinador sabido. Ou seja, era aquela pessoa que sabíamos que sabia de tudo o que de bom e mau há no futebol. Ele tem um irmão, Joaquim Oliveira, o senhor da Olivedesportos e da SportTV, com uma ligação fortíssima à federação, com um peso enorme, sabia tudo o que se passava e tinha um estatuto de todo poderoso. Nós sentíamos que ele sabia tudo o que se passava. Mas era um treinador que percebia de futebol. Foi um génio como jogador, foi um excelente treinador também e acaba por estar ligado a essa brilhante campanha do Europeu. Por muito pouco... Lá está, ainda estávamos na era do muito pouco, ainda estávamos a acabar essa era, porque estava a surgir ali uma geração de talentos incríveis.

O António Oliveira a determinada altura era muito associado a superstições. Isso afectava os jogadores?
O Artur Jorge também era acusado de acreditar muito nessas coisas e muitos treinadores acreditam, mas a nós passa-nos completamente ao lado essas situações. Mas também são rótulos que se dão às pessoas, nós não víamos nada de estranho.

Como corre a sua última época em Guimarães?
O Vitória vai ao 3º lugar na minha penúltima época e quando vou para a última época é apresentado o Filipovic, que era um dos adjuntos do Artur Jorge no Benfica, na minha altura. As coisas não correram bem ao Filipovic. Como tínhamos feito o 3º lugar com o Quinito as expectativas estavam altíssimas, o presidente criou a onda de “um treinador que veio do Mundial” e apresenta o Filipovic. Ele fala bem português mas expressava-se às vezes com alguma dificuldade. Era um treinador que tinha ideias boas, ideias novas, dado o passado dele queríamos acreditar que tínhamos ali um treinador que nos podia fazer superar o que tínhamos feito na época anterior, o que não veio a acontecer porque ele acabou por ser despedido e regressa o Quinito.
O Vítor entretanto não continua porquê?
[risos] Para essa minha última época a apresentação da equipa aos adeptos ia ser feita no estádio do Vitória, à noite. Entretanto eu tinha acertado já o meu contrato com o Dr. Pimenta Machado, mas não estava assinado ainda. Nesse dia da apresentação vamos realizar exames médicos de manhã. Mais tarde o diretor Pedro Xavier chama-me e diz-me que o Vitória não vai poder pagar o contrato que tinha combinado comigo e que eu teria de baixar o meu ordenado. Isto em cima da hora da apresentação. Disse-lhes: “Se não pagam, não contem comigo para a época, tenho contrato até dia 31 e a partir daí não sou mais jogador”. E ele: "Eh pá, não, mas pensa..." E tal. “Está pensado, nós tínhamos um acordo”. À noite há a apresentação, os jogadores iam entrando um a um e eu era o capitão, por isso era o último a entrar em campo. Quando chamam por mim aos altifalantes eu não entro. Há uma espera de 10 minutos porque eu nem sequer equipado estava. Ficou tudo em pânico. Os adeptos começaram todos a chamar por mim. Eu estava no balneário e vem o irmão do Dr. Pimenta Machado, que tinha estado no jantar em que nós combinámos a renovação, perguntar o que se passa. E diz: “Aquilo que o meu irmão combinou contigo será cumprido, não te preocupes, eu cumpro, tens a minha palavra". Bastou dar-me a palavra dele, equipei-me e subi. Dão-me o microfone para falar, tinha falado o presidente, o Filipovic, e ia falar o capitão. E eu tive a infeliz frase: "Eu só não fico no Vitória se o Dr. Pimenta Machado não quiser". Ele olhou para mim, juntou o polegar à garganta e traçou, como quem diz já foste [risos]. E no final dessa época fui-me logo embora.

Fez a época toda a saber que não ia continuar em Guimarães.
Sim, já sabia que não ia haver renovação porque confrontar o Dr. Pimenta Machado à frente do povo todo tem custos.

Mas Pimenta Machado não o convidou para ser treinador do V. Guimarães?
Ele convida-me para ser treinador ainda durante essa época, para substituir o Filipovic, e eu disse que não, que era cedo, que ainda queria jogar. Dois anos depois convida-me novamente para treinar, para substituir o Jorge Jesus, porque as coisas não estavam a correr bem na parte final. Mas eu estava para subir no Ribeirão e resolvi não aceitar. E depois ainda me convidou mais uma vez.

Está arrependido de não ter aceitado?
São decisões. Para já, a primeira vez que surge o convite eu era jogador ainda, estava a meio da época, estava a sentir-me bem, estávamos a lutar pela Europa, era titular indiscutível, tinha 31 anos, ainda estava para jogar. No ano a seguir saio do Vitória e ele convida-me para ser coordenador do futebol e eu disse-lhe que queria continuar a jogar. Depois, como estava para subir no Ribeirão, precisava de currículo como treinador, achei que não devia aceitar. Portanto houve uma série de situações que levou a que não acontecesse.

Mas quando termina a época no V. Guimarães, em 1998/99, já sabia do interesse da Académica?
Não, surge depois, como surge Varzim, Rio Ave, uma série de clubes que tentaram contratar-me. A partir daí decidi que para onde quer que fosse só assinaria por dois anos e depois acabava a minha carreira. Achava que era suficiente acabar aos 34 anos. A escolha acabou por ser a Académica, por ser um histórico, um clube de que todos gostam, que todos admiramos.

Foi viver para Coimbra?
Ficava lá de vez em quando, tinha lá apartamento.

Entretanto teve mais filhos. Fale-nos deles.
No V. de Guimarães nasceu a minha menina, a Carolina. Nasce quando eliminamos o Parma, em 1996. Ela é o terceira, porque tenho o João, que nasceu em Lisboa, em 1993.

Voltemos à Académica. Como correram essas duas épocas?
Foram duas épocas de gente boa, de um clube diferente de todos, tive alguma dificuldade porque não era exigente em termos profissionais, era um clube muito ligado às tradições. A Académica nunca perde, quando perde são os outros que ganham, não foi a Académica que perdeu. O almoço a seguir aos jogos era normal, não havia ali um clima de derrota, nem tinha peso quase. As coisas foram mudando e naturalmente foi-se aperfeiçoando também essa vertente. Mas o perder ou ganhar, desde que a Académica fosse honrada e as tradições fossem mantidas, era quase o mesmo naquela altura. Embora tenham passado pela Académica enormíssimos jogadores de futebol, que têm história no futebol português.

Quando chega a hora de pendurar as botas, já sabia o que queria fazer a seguir?
Achava que tinha todas as condições para seguir por esse caminho e as coisas foram-se encaminhado para aí porque quando deixo de jogar já tinha o terceiro nível do curso de treinador.

Mas não começa a treinar logo. Porquê?
Resolvi parar um bocadinho. Parei quase dois anos, fui estando com a família. E fui-me preparando para começar a minha carreira de uma forma tranquila.
Começa a treinar a equipa do Serzedelo.
Sim, mas vou para o Ribeirão logo a seguir, saio logo à 3ª jornada por opção. Era um projecto diferente o do Ribeirão e conseguimos logo a subida. Pelo meio surgiram o Vitória de Guimarães, da I Liga, como já tinha dito, depois surge o Moreirense, na II Liga, e fui para lá. Fui trabalhando assim, mas é verdade que algumas saídas não foram as melhores. Há uma delas até que foi muito errada da minha parte, que foi para treinar o Marco de Canaveses, em 2005. Eu era uma pessoa que quando os outros me falavam ao coração ia muito atrás e essa foi uma má decisão que tive como treinador. 

Porque diz isso?
Porque não tinha pernas para andar. Aquilo estava ao Deus dará e eu achei que podia ajudar a mudar alguma coisa, o que era impossível. Não pagavam há meses e meses, enfim, muita coisa. Tirando aquilo tudo só alguns jogadores se valorizaram ali, o caso do Beto, que era meu guarda-redes, e pouco mais. Entretanto vai para o Vila Meã e segue-se o "seu" Famalicão. Que surge no momento mais difícil do Famalicão. Possivelmente o futebol do Famalicão ia terminar naquela altura e uns amigos, mais concretamente o Carreira e o Dr. João, tomam a decisão de tentar salvar o clube. Para eles a pessoa ideal para se juntar a esse projecto seria o Vítor Paneira, porque é da terra, é treinador e pode ajudar. Foi isso. Foi um projecto de um ano em que alinhei, as coisas correram bem e foi possivelmente aí o princípio deste Famalicão que temos agora, que é fortíssimo e que está aqui para dar e para vender, e para se impor no panorama do futebol nacional.

Por que não continua no Famalicão então?
Eu não estava muito de acordo com o director que me acompanhava, não achava que a postura que tinha, a forma como abordava as coisas, fosse a correta. As pessoas sabem todas quem é a pessoa portanto nem vale a pena estar a dizer. E decidi não ficar.

Assume o comando do Boavista, que na altura estava na II Divisão.
Sim, apanho o Boavista também numa situação complicada. O Álvaro Braga Júnior, que também conheço há muitos anos, liga-me, fala-me ao coração, era preciso salvar o Boavista…. Vou e acabei por salvar o Boavista da descida. Estava em penúltimo lugar, o cenário não era nada favorável, mas conseguimos todos em conjunto salvar o Boavista da descida ao distrital.

Impõe-se a mesma pergunta: vem embora porquê?
Porque há um director que assume o futebol, o Rémulo, e que leva um treinador da confiança dele. Nada mais do que isso. Depois vou para o Gondomar, já tinha começado a época, mas fizemos uma época incrível também e a seguir vou para o Tondela e fico quase três anos no Tondela. Saio em desacordo com o presidente, o senhor Gilberto Coimbra, uma excelente pessoa, mas estávamos em desacordo relativamente a algumas situações e acabei por sair. Ainda subo o Varzim à II Liga antes de ir segunda vez para o Tondela, já na I Liga.

Mas vem embora.
Talvez uma má gestão minha, o presidente queria que eu ficasse mas não geri bem esse momento. 

Explique melhor.
Queriam mexer na minha equipa técnica e não aceitei. As coisas acabam por ter consequências.

Isso foi em 2016 e de lá para cá não voltou a treinar. Porquê?
Apareceram clubes, mas ou pego em coisas que me sustentem, com credibilidade e garantias de que são sérias, ou então prefiro estar como estou.

O que tem feito?
Tenho estado na SportTV. Vou estando ligado ao futebol mas mais por fora, como comentador e analista.

Pensa voltar a treinar?
Existe sempre essa possibilidade, claro. Tem de ser uma coisa sustentável, credível e que tenha conteúdo.
O que mudou na relação jogador/treinador ao longo dos tempos?
Eu era um bocado treinador-jogador, porque tinha uma proximidade muito forte com os jogadores e achava que não devemos nunca esquecer que fomos jogadores e aquilo que sofrem. Tinha ligação muito próxima, o que muitas vezes também não é bom. Por outro lado, ao longo dos anos o futebol mudou em todos os aspectos, não há nenhum item, seja no plano alimentar, de treino, de descanso, etc, que seja comparável há 20 anos; o futebol evoluiu, a própria gestão das carreiras dos jogadores, as redes sociais, tudo isto trouxe dificuldades para gerir. Recordo-me que uma vez cheguei ao intervalo de um jogo e há um jogador meu agarrado ao telemóvel para ver como é que estão os resultados das apostas que tinha feito. Isso era uma coisa impensável há uns anos. Mas, por outro lado, noutros aspectos, acho que os jogadores estão muito mais responsáveis, cuidam-se mais agora e são mais capazes no treino do que eram há 20 anos. Até porque hoje há outras facilidades que não havia no meu tempo. Acho que o jogador hoje está mais profissional.

Não se perdeu o espírito de grupo que havia antes e que era fomentado pelos almoços e jantares de equipa?
Eventualmente mantém-se esse espírito do jantar pelo menos uma vez por mês. Mas os jogadores relacionam-se cada vez mais em grupos pequenos. No meu tempo estávamos juntos constantemente, éramos seis, sete ou oito com as respetivas famílias, em casa uns dos outros ou em restaurantes, portanto havia muito mais essa cumplicidade e união. Agora os tempos são diferentes, os jogadores acabam os treinos e metem-se nos carros sozinhos; antes às vezes íamos quatro ou cinco num único carro. Os centros de estágio também prendem os jogadores muito tempo, é tudo feito de uma forma diferente. Mas vai continuar a haver grupos muito bons e grupos menos bons.

Enquanto treinador, quais as suas referências?
Fui alterando ao longo dos tempos. Sempre gostei muito do Eriksson e do Toni, por exemplo, também gostei do Chico Vital e do Vítor Oliveira, pela formalidade e honestidade que têm; atualmente aquele com quem me identifico no jogo é o Jorge Jesus. Tem o melhor treino e capacidade de jogo, é um treinador antigo que lê bem. Também gosto de algum estilo de Mourinho e gosto muito daquilo que o Guardiola tem nas suas equipas.

Mas quando o Jorge Jesus saiu do Benfica e foi para o Sporting, o Vítor apoiou Rui Vitoria e disse que ele era melhor treinador.
Pela forma como o JJ saiu do Benfica. Naturalmente ninguém gostou. Independentemente das razões que possa ter ou não, aquilo que foi provocando constantemente na imprensa e a forma como foi gerindo a época… O Rui Vitória foi sempre uma pessoa coerente e correto nas suas análises. Gostei de o ver treinar o Benfica. Mas são treinadores de eras diferentes, que evoluíram de forma diferente também. Não podemos esquecer aquilo que o Rui Vitória fez no V. Guimarães e eu que estou aqui ao lado ia muitas vezes ao estádio. Aquilo que ele conseguiu fazer e o que ele sofreu para aquele primeiro título no Benfica. Mas o Jorge Jesus em termos de treino está num patamar, parece-me, acima.

Diria que o seu modelo de jogo privilegia mais o ataque?
Sim, sempre privilegiei mais o ataque, a posse. Eu deliro com os jogos que faz o City. Gosto também de alguns jogos do Liverpool, por aquilo que representa aquela equipa, pelas dinâmicas que tem, mas a equipa do Barcelona do Guardiola foi de todas a melhor equipa que vi jogar. Aquela equipa ganharia a qualquer selecção. Identifico-me com futebol de ataque, mas apoiado, como tem o Guardiola.

Qual a sua equipa de sonho, a que gostava um dia de treinar?
O Benfica [risos]

Qual foi o golo mais bonito que marcou?
É um golo cujas imagens não vi, só tenho imagens visuais minhas, mas foi um golo que marquei no Setúbal, para a Taça de Portugal, perdemos 2-1. Nunca vi imagens desse golo. Colectivamente tenho o golo que fiz na final da Taça de Portugal contra o Boavista, que é um golo fantástico em termos de triangulações de equipa e também é um dos golos mais bonitos.

O maior rival?
Há um jogador que se estivesse em circunstâncias normais era titular sempre, o Diamantino. Quando chego ao Benfica tive a felicidade de ele se lesionar e ele e o Benfica a infelicidade de o perder para a final da Liga dos Campeões e durante mais de um ano. Diamantino era um craque incrível, estando bem. Embora ele fosse um jogador mais de interior, mais pelo corredor central, por isso talvez não fosse um concorrente directo meu...

O melhor jogador com quem jogou?
Não quero ser incorrecto com alguns. O Rui Costa era um número '10' incrível, o Valdo, o João V. Pinto, que era um craque, o Chalana, uma coisa inacreditável, mesmo já o apanhando na segunda fase... Talvez o Chalana fosse o melhor de todos.
Onde ganhou mais dinheiro?
No Benfica.

E onde investiu?
Meti-me no negócio da construção civil, Paneira e Companhia limitada, os meus irmãos é que estão à frente daquilo.

Se não fosse jogador de futebol, o que teria sido?
Teria ficado no restaurante dos meus pais.

Tem algum hobby?
Jogar à sueca.

Jogava muito com os colegas nos estágios?
Sim, jogávamos muito às cartas, na altura não havia iPads e consolas.

Quem é que jogava bem à sueca?
O Paulo Sousa, o Rui Costa, o João Pinto do FC Porto, o Pedro Xavier também, havia alguns... 

Algum outro desporto que goste de seguir ou praticar?
O hóquei em patins é possivelmente o outro jogo que gostaria de praticar.

O seu filho mais velho, o Vitó, joga futebol?
Sim, no Ribeirão. Já está com 31 anos. É formado em marketing. O João trabalha para o Benfica, está ligado à formação, e a Carolina está no estágio de nutrição.

É crente?
Sim, muito. Vou à missa, somos todos católicos. Infelizmente este ano não pudemos fazer a cruz, mas é um dos momentos mais lindos que tenho em casa, beijar a cruz de Cristo na Páscoa. Todos os meus filhos são baptizados, todos casados pela igreja, mas não sou muito praticante, devia ser mais.

E superstições, tem?
Não tenho muitas. A não ser entrar com o pé direito em campo.

Qual foi o jogador contra quem jogou que mais o surpreendeu?
Maldini. Mas joguei contra muitos talentos, contra o Ronaldo, o Ronaldinho, contra tantos, mas Maldini sendo meu adversário directo era um jogador excepcional.

Quem é a maior amizade que fez no futebol?
O meu compadre, o padrinho da minha filha Carolina: o Quim, jogou comigo no Vizela e é o pai do Ricardo, o capitão de equipa do Feirense.

Qual foi a maior extravagância que fez?
Comprar o Porsche 911 Carrera.

Alguma vez quis mesmo jogar no estrangeiro?
Nunca, porque achava que não tinha espírito, mas tive sempre propostas. E há uma que pouca gente sabe. Quando foi o Paulo Sousa para a Juventus, era eu que eventualmente ia para Juventus.

Isso não aconteceu porquê?
Não sei, é uma coisa que nunca perguntei ao Toni e ao Jesualdo. Foram os dois que me contaram isto no hotel Continental em Lisboa. Chamaram-me e disseram-me isso, mas nunca lhes perguntei. Tive propostas também do México e de França, além de Espanha e Suíça, como já tinha dito.

Qual foi a maior alegria e a maior frustração que teve na carreira?
Ser campeão, a primeira vez. E a maior frustração foi não ganhar a Liga dos Campeões. E tenho a frustração de não ter jogado o Europeu, de não ter entrado em campo.

Para terminar, não tem nenhuma história caricata para nos contar?
No ano do Ivic, fomos fazer a pré-época à Suécia. Depois do treino, quando íamos para o almoço, que era servido em buffet, eu estava na fila da mesa de saladas e entretanto está um colega meu à minha frente e à frente dele o Ivic. Nós tínhamos a mania de apalpar o rabo uns aos outros na brincadeira. E eu ao deslocar-me para me servir, sem olhar, apalpei o colega que estava à minha frente. Só que ele tinha saído e quem estava no lugar dele era o Ivic e eu não me apercebi [risos]. Ou seja, apalpei o rabo ao Ivic, foi uma gargalhada, fiquei todo envergonhado e ele: “No, no, no, no problema, no problema” [risos]. Tenho outra história como treinador que é engraçada, mas trágica ao mesmo tempo.

Conte.
Eu estava a treinar uma equipa e os resultados não nos eram favoráveis nessa altura. As coisas não estavam a correr bem, jogávamos bem mas não ganhávamos. E alguém se lembra de colocar por cima da porta do balneário uma santinha, uma Nª Srª de Fátima. Nós não nos apercebemos. Só quando chegámos ao treino na semana a seguir é que vimos a santinha por cima da porta do balneário. E quando íamos para o treino um ou outro jogador virava-se para a santinha e dizia “espero que nos ajudes” e saía. E há um que vira-se e diz: “Não sabes onde é que te vieste meter”. Entretanto alguém pôs uma velinha ao pé da santinha e fomos para o treino. Quando viemos, a santinha estava a arder [risos]. Não tem piada, mas ao mesmo tempo tem, porque esse jogador diz: “Eu não te avisei, santinha, de onde te vinhas meter?” [risos]."

Cancelado!!!!

"Holanda sem campeão, sem descidas e sem subidas.
Esperamos que amanhã haja capa no jornal “O Jogo” com esta notícia, com a manchete “Holanda já deu o mote: Não há campeão!”. Estamos igualmente atentos à comunicação oficial e oficiosa do FC Porto, nomeadamente aos ratos de esgoto do Twitter."

Direitos na saúde há muitos e no desporto ainda mais

"Um mês e meio de quarentena, de isolamento, de paragem total…
O mundo parou e nós parámos com ele, como não podia deixar de ser. Ficámos em casa, apercebemo-nos do que é o nosso lar, a família (seja pelo excesso de convívio forçado ou pela forçada proibição de convívio) e daquilo que realmente é importante: a saúde.
E aqui, somos forçados logo a pensar, qual a saúde que se encontra em causa, pois que um dos mais elementares direitos de que o ser humano (deve) gozar e de que o Estado é garante, desde logo a nível constitucional, é o que mais discussões tem gerado, mesmo sem nos darmos conta.
Por um lado, o decretamento das medidas de emergência, como garante da saúde colectiva, em estado pandémico, para evitar maior propagação e proporções catastróficas a nível de perdas humanas, o que facilmente se entende. Porém, por outro, a questão da economia e da paragem da mesma e do impacto que isso vai ter na vida de todos. A queda da economia implica a perda de milhares de empregos, actualmente implica a perda de um terço da retribuição por milhares de trabalhadores e faz com que se denote uma perda significativa do poder de compra. Como efeito cíclico e de bola de neve, numa visão muito realista de que não girando o mundo à volta de dinheiro, sem ele também não vive, o direito à saúde encontra-se igualmente comprometido pelas medidas pandémicas, pois que, sem dinheiro, há um sério risco de várias famílias se confrontarem com o flagelo da fome, da falta de dinheiro para medicação em caso de problemas de saúde, falta de dinheiro, em suma, para prover às mais básicas necessidades de sobrevivência do ser humano, o que, em si, encerra um perigo ao direito à saúde de cada indivíduo.
E, logo aqui, somos confrontados com este primeiro dilema. Contudo, fosse apenas este que assolasse o direito à saúde… Numa outra vertente, é indiscutível a consagração constitucional do direito à saúde e das medidas que o Estado deve promover para que este direito seja salvaguardado. Contudo, não menos é verdade que, no mesmo texto fundamental, o direito ao desporto e à actividade física tem também o seu lugar de destaque.
Mais do que ponto assente é o facto de que o exercício físico faz bem à saúde, porém, agora, em virtude de um ataque global que, no confronto de direitos conflituantes - direito à saúde vs. direito à actividade física e ao desporto -, "ganhou aos pontos", a actividade física comum foi duramente limitada, fechando-se ginásios, autorizando-se apenas passeios de curta duração (ainda por definir o que se entende por tal conceito, sabendo apenas que a OMS recomenda a prática diária de 30 minutos de exercício) e pedindo-se às pessoas para restringirem a circulação ao mínimo indispensável, o que, quer se queira quer não, limita igualmente qualquer tipo de exercício físico ao ar livre. Daí poderão advir vários problemas de saúde, aquela que se tenta proteger com tanto sacrifício nacional.
Depois, temos também de ponderar o que integra o conceito de saúde e aí, incontornavelmente, teremos de atender à saúde física, mas também à saúde mental. E mais uma vez temos o confronto com o dever de salvaguardar o colectivo face a uma pandemia, porém como ficará o colectivo, em termos psicológicos, ao fim de um período de confinamento?
Não haverá o risco do confinamento prolongado causar doenças do foro psíquico que, a médio/longo prazo, poderão ter consequências a nível de produtividade no trabalho e, deste modo, impacto indirecto na economia? Estamos preparados para isso? Temos um plano B?
Noutro plano, há também que equacionar a outra vertente do direito constitucional à actividade física: o desporto. Aqui, pensamos no desporto de alto rendimento e à medida que escrevemos, confrontamo-nos com o pensamento de que neste caso, o combate entre os direitos fundamentais tem ainda mais intervenientes do que nos cenários anteriores, muito similar a uma "royal rumble" de WWE (que, a propósito, foi considerada como bem essencial para o Estado da Flórida e, portanto, continuou com a sua actividade).
Num canto, temos o direito à saúde em contexto pandémico, então, proibe-se os eventos desportivos (com o futebol, naturalmente, a sofrer o maior golpe), fecham-se os pavilhões desportivos, proibem-se treinos… Noutro canto, temos a economia desportiva a bradar: direitos televisivos, revenues, patrocínios, merchandising… Como fazer para sustentar esta máquina e pagar ordenados aos atletas, se os mesmos estão impedidos de prestar o grosso do seu trabalho?
E pensando micro (e não é preciso sair do futebol): meio da tabela da 1ª divisão para baixo… Como manter os atletas ao serviço, quando não se consegue cumprir com o dever contratual de pagamento de salários? Começam os incumprimentos, a falta de dinheiro para os atletas sustentarem a sua casa e família e, voltamos a ter um problema - real - de falta de saúde causada por questões tão básicas como falta de dinheiro para comprar comida (como, aliás, já começou a acontecer, em escalões inferiores). E é este direito que está em confronto no terceiro canto.
No quarto canto então, temos o direito à saúde individual de cada atleta. O desporto, especialmente o futebol, mexe com milhões e, naturalmente, qualquer paragem não programada, por mais pequena que seja, causa prejuízos astronómicos (quanto mais uma paragem de dois meses quase, numa altura crucial para qualquer campeonato, como seja a sua ponta final).
Naturalmente, os prejuízos monetários são enormes e a dificuldade de coordenar esta finalização de épocas com o início de uma próxima é hercúlea pois que não basta apenas atentar ao campeonato nacional, mas também a outras competições internas como taças (no nosso caso, a de Portugal e da Liga), bem como com as competições europeias, selecções e seus compromissos, etc.
Em Portugal, conseguimos ver perfeitamente o impacto que o futebol profissional tem, pois que a decisão para os campeonatos amadores (CNS e Distritais) já foi tomada - término de todas as competições em todos os escalões nas modalidades reguladas, sem definição de campeões ou efeitos a nível de subidas ou descidas de divisões (uma espécie de reset à máquina), podendo agora concentrar-se em pleno na preparação da época que se aproxima, de uma forma ponderada e concertada face ao que se adivinha que vá ser a nova realidade após o estado de emergência -, a verdade é que no futebol profissional a decisão não foi assim tão fácil, consensual e definitiva…
De facto, no momento em que se escreve, existem notícias que dão por facto assente que as competições profissionais são para terminar, dê por onde der. O problema é que é apenas isso que se sabe, ficando por responder o mais importante: Como? E quando? Alguns clubes nacionais, inclusive, já voltaram aos treinos, respeitando, até, as normas de segurança emanadas pela DGS. Contudo, não se percebe como, uma vez que, segundo o Anexo I do Decreto 2-C/2020 (anexo que já vem desde o Decreto 2-A/2020, que determinou o primeiro estado de emergência) as instalações desportivas têm de se estar encerradas.
Porém, foi notícia de jornal de horário nobre que existiam equipas que já haviam retornado aos treinos e, da parte governativa, nem um comentário foi tecido… o Estado, mais uma vez, fecha os olhos ao futebol e deixa-o regular-se na sua própria autonomia, deixando-o, como sempre, reinar no seu mundo à parte, muito à semelhança do que acontece com o Parlamento. Contudo, no mesmo Anexo I, actividades comerciais como cabeleireiros, se forem apanhados a laborar e em plena actividade, porque o pequeno comerciante esgotou todas as suas economias e não teve apoios estaduais, resolveu arriscar para "fazer uns trocos" de modo a colocar comida na mesa, correm o risco de pagar pesadas coimas por desrespeito da obrigatoriedade de encerramento de estabelecimento. Igualdade relativa, talvez…
Mas o cerne do que está em causa com esta conivência à máquina desportiva futebolística, para completar o nosso canto do ringue, reside no direito à saúde dos desportistas, atletas de alta competição. Estes direitos estão a ser completamente desconsiderados (ainda que, aparentemente, se estejam a tomar as precauções determinadas) pois que, ao terem de retornar aos treinos e jogos em contexto pandémico e de emergência, por maiores que sejam os cuidados que se tenham (jogos à porta fechada ou com público reduzido, limitação de pessoal envolvido na logística dos jogos), fazem-no por obrigatoriedade de um contrato de trabalho (atenção que há a questão dos contactos que findam com o fim da época desportiva, que, neste momento, é matéria altamente discutida) e terão de se sujeitar às medidas que forem estipuladas por terceiros e isso já começou a acontecer no momento em que em pleno estado de emergência, conforme acima indicado, já tiveram de ir treinar, ainda que em instalações que se determinaram encerradas.
Isto para já não falar na vertente do que representa em termos de desgaste profissional (uma vez que, como se sabe, o futebol é uma profissão de desgaste rápido) o impacto que terá uma solução que preveja uma quantidade concentrada de jogos num curto espaço de tempo, solução que tem sido avançada para "apanhar o passo" entre o término desta época, o começo da próxima e ainda as competições externas. Em termos de condições físicas, tal poderá implicar o fim de carreira profissional para alguns atletas, cujo corpo acuse a pressão de uma maior carga de jogos no calendário desportivo ou eventuais lesões que se possam verificar, que comprometam o rendimento desportivo a curto e médio prazo.
But, the show must go on…
Mas, mais uma vez, o que se percebe é que se arriscam pessoas, por uma questão de entretenimento pois que, conforme se conseguiu perceber com esta pandemia, não precisamos assim tanto de futebol e futebolistas, como precisamos de saúde e de médicos.
Assim, não há soluções perfeitas, não há soluções consensuais, não há grandes remédios ou milagres, mas há umas melhores que outras e é necessário mais do que decisões unânimes, decisões harmoniosas e equilibradas, que permitam assegurar às pessoas que a salvaguarda da sua saúde foi tida em consideração, seja qual for o sector que esteja em causa."

O desporto: um logro absoluto?

"Analisar o desporto (e o “campo desportivo”*) é analisar a sociedade. Em boa verdade, não se pode ser desportivo e não-desportivo inocentemente. A sua omnipresença apoia-se em discursos (alguns até bastante autoritários), que embelezam a realidade e nos enganam voluntariamente… ou não. É um incomparável mobilizador de multidões. Mais: é uma “filosofia de vida”, como se encontra escrito na Carta Olímpica. Sem valores (o respeito, o fair-play, a dedicação, o autocontrolo, a disciplina, a alegria no esforço, etc.), o desporto não seria mais olímpico. Ele seria apenas um divertimento. No caso dos valores Olímpicos, eles incluem uma verdadeira universalidade, a solidariedade, a integração, a compreensão internacional, entre outros. As ideias dominantes são inculcadas pelas mais diversas instituições: a família, a escola, os medias. Amplamente plebiscitado, o desporto governa directamente as representações correntes e as atitudes das populações e tornou-se para muitos um molde de comportamentos. A sua ideologia é eficaz, na medida em que é interiorizada pelas massas.
Consciente ou inconscientemente, o desporto está em todas as cabeças. Não passamos um dia sem estar informados dos últimos resultados (ou a falta deles agora pela pandemia covid-19). O desporto pode ser definido da seguinte forma: situação motrícia, competição, regulamentado e institucionalizado. A partir do momento que o indivíduo passa as portas de um clube desportivo, ele aceita, independentemente do seu nível, a lógica e as normas de uma instituição centralizada e hierarquizada. Eis até porque é inexacto, pese embora as diferentes denominações, falar de vários desportos: desporto de elite, desporto de massas, desporto escolar, desporto militar, desporto civil, desporto amador, desporto profissional. No desporto dito de competição, procuramos em vão as carateríscticas lúdicas. O desporto é uma “empresa” muito séria, absorvente para ser apenas um jogo. Como diria Georges Magnane, a liberdade do atleta é uma “liberdade bem guardada”. Somos assim levados a colocar algumas questões: um atleta age por sua livre vontade ou por obediência?
Decidiu sozinho se submeter a um treino forçado ou está sujeito a um ambiente cada vez mais invasor? Os atletas de alta competição estão rodeados de fisioterapeutas, de médicos, de psicólogos; são examinados, testados, controlados, condicionados, infantilizados. Não nos contentamos a dirigir o seu trabalho, como os alimentamos, os vestimos, são alojados, pensamos por eles. Submetidos a pressões familiares, do público, do Estado, dos treinadores, dos dirigentes e agentes, o atleta deve ganhar para que, de uma forma ou de outra, a sua “entourage” retire dividendos. Ao observar os dirigentes influentes de certos clubes, rapidamente percebemos que reivindicam uma boa parte do sucesso. São as vitórias por procuração. O atleta, se reduzido a uma máquina de ganhar, com todos os riscos inerentes, torna-se um instrumento de avaliação permanente. Mas, como diria Albert Jacquard, uma sociedade que só propõe à juventude a competição, como a única moral de vida, é uma sociedade doente.

* Campo desportivo: noção definido por Pierre Bourdieu para dizer que é um espaço social, possuindo normas próprias e relativamente autónomo do campo social global. Todo o campo – desportivo, económico, literário, burocrático, jurídico, científico, etc. – é também um campo de forças com as suas relações de dominantes-dominados e as suas desigualdades."