sexta-feira, 24 de abril de 2020

Humberto Coelho | 70 anos de liderança

"A alcunha “Beckenbauer Português” atribuída a Humberto Coelho nasceu da fama adquirida às cavalitas da suas capacidades enquanto futebolista de eleição, justificadas em cada acção no terreno de jogo.
A capacidade física e o apurado jogo aéreo, que desenvolveu à custa das imitações a José Águas, ídolo de sempre, provocavam o protagonismo na área defensiva ou nas subidas ao ataque, numa demonstração de total entendimento das mecânicas do jogo e da desenvoltura necessária para se tornar um ícone.
A forma natural como impunha a sua autoridade perante os colegas valeram-lhe a braçadeira durante toda a carreira, dos juniores encarnados até às últimas instâncias de um percurso de charme internacional.
Até por isso, a 7 de Agosto de 1982, já trintão, juntou-se à nata europeia em Nova Iorque para defrontar a selecção do Resto do Mundo. Num Giants Stadium com lotação esgotada, juntou-se ao craque alemão que lhe dá alcunha, Pezzey, Dino Zoff e Platini, ganha 3-2 ao Resto do Mundo e é obrigado a levantar a taça para gaúdio da comunidade portuguesa que se engalanava nas bancadas, entusiasmada com a presença do ídolo de toda uma geração e que viu nele o porta-estandarte daquele genial conjunto de jogadores portugueses (Oliveira, Néné, Jordão, Artur Jorge, Toni, João Alves, Vítor Martins, Damas, Bento, Octávio Machado ou Artur Correia), que falharam, de forma infeliz, todos os objectivos continentais e que chegaram já, poucos e moribundos, ao Euro84.
As lides de treinador nunca encantaram um homem de visão alargada: teve fugazes aventuras no Salgueiros e em Braga, comandou a Geração de Ouro no Euro2000 e percorreu África e Ásia no contexto de selecções. O intelecto superior e a consciência política levaram-no sempre à vida de gabinetes, seja no PSD, seja na Federação. Foi um dos pioneiros das escolas de futebol em Portugal, numa inovação fruto da sua visão alargada sobre o futebol e a vida.
Nasceu em Cedofeita, numa família humilde. Os pais, vítimas de uma vida difícil, sempre foram adeptos fervorosos de uma educação completa para os filhos, caminho ideal para evitar as mesmas desventuras de pobreza. Assim, as tentativas de Humberto desfilar pelos pelados revelar-se-iam sempre infrutíferas.
Aos 13 anos, é aceite no Leixões SC, mas a sua mãe impede-o: a escola industrial, onde estudou até ao quinto ano, era a prioridade. Só a mudança da família para Ramalde libertou o petiz para a prática desportiva no clube local, já nos juvenis.
Chamou tanto a atenção que surgiu o FC Porto, mas o SL Benfica acelerou os contactos nessa iminência e despachou o acordo – 40 contos para o clube, 25 para ele. Tomava assim lugar na equipa de juniores da Luz e desde logo assumiu preponderância, agarrou a braçadeira e comandado pelo bicampeão europeu Ângelo Martins foi campeão nacional em 1967/68.
No final da temporada, Otto Glória leva-o ao Brasil com o plantel principal, participante num torneio juntamente com o Belém do Pará e o Santos de Pelé. A boa exibição de Humberto no primeiro jogo levou-o à titularidade no segundo, com a missão de marcar o melhor jogador brasileiro da história. Diz quem viu que a exibição desinibida no empate a três bolas lhe valeu um forte abraço do técnico benfiquista, como que confirmando a promessa de titularidade efectiva a partir daí.
Consta que se encaixou rapidamente junto dos grandes craques seniores, já que o onze base de 1968/69 se cifra pelo seguinte: José Henrique; Adolfo, Humberto, Zeca, Jacinto; Jaime Graça, Coluna; José Augusto, Eusébio, Torres e Simões.
A partir daí coleccionou títulos nacionais e assumiu-se como uma das grandes peças da equipa, ao mesmo tempo que assumia na Selecção igual importância. A prestação sublime na Minicopa de 1972, na qual Portugal chega à final, favoreceu-o de prestígio intercontinental, arrebantando elogios a toda imprensa estrangeira e elevando o seu nome a patamares que a Liga Portuguesa já não suportava.
Em 1975, a bomba explodiu na Luz: o PSG aterrou em Lisboa pronto a levá-lo. O dinheiro falou mais alto e o menino lá foi, ao som das lágrimas da mãe. Talvez isso tenha resultado num saudosismo demasiado intenso, já que ficou por lá dois anos e logo fez questão de voltar. A inconstância do clube francês, 14.º e nono classificado na Ligue 1, não se coadunava com toda a qualidade do central, entretanto transformado em médio centro.
Uma lesão grave no menisco e os desentendimentos com o treinador Vasovic precipitaram então a saída, transformada em leilão. Internacional de Porto Alegre e Palmeiras, ainda lembrados de ’72, disputaram o português, ofereceram dinheiros inacreditáveis à época – mas Humberto, em desejo ardente de retorno à pátria e ao coração encarnado, exigiu sempre mais do que lhe davam para que o Benfica tivesse vagar de o resgatar…
Voltou então, em 1977. Não sem antes dar uma perninha a Eusébio, Simões e Toni no Las Vegas Quicksilver, na MLS pré-histórica. Voltou, devolveram-lhe a braçadeira e assim continuou com as prestações acima da média e o rendimento galáticco, numa área ou outra. É ainda hoje o defesa mais concretizador do futebol português: 56 golos nas competições internas, mais quatro na Europa.
Já com Eriksson, esteve perto de garantir a glória continental que o Benfica dos anos 70 nunca lhe proporcionou, mas a derrota com o RSC Anderlecht impediu-o de sonhar em termos clubísticos. Em entrevista a A Bola, tentou explicar a inoperância encarnada nessa década, acabando também por relembrar muitas das eliminações na Europa: «A estrutura do futebol em Portugal ainda não era tão profissional. As maiores equipas europeias, Liverpool, Ajax, Bayern, já estavam num patamar superior na metodologia de treino e na nutrição, por exemplo. Tínhamos sempre grande dificuldade quando apanhávamos essas equipas.»
Mas ainda haveria Euro84, onde tentava chegar na esperança de mostrar à Europa a sua qualidade de Quinas ao peito: Portugal não se qualificava para competições oficiais desde 1966, era ele ainda junior. A frustração chegou com a lesão gravíssima antes de um Portugal-Finlândia, em 1983, na preparação para a epopeia dos Patrícios. As complicações resultantes da recuperação apressada e negligente, impossibilitaram a sua convocação e precipitaram o final da carreira, no final dessa temporada.
Foi sempre valorizado fora de portas, ainda assim. Jupp Derwall, técnico que comandou a República Federal da Alemanha à vitória no Euro80 e à final do Mundial de 82, confiou nele em duas ocasiões para representar a selecção europeia. Além do jogo em Nova Iorque, organizado pela UNICEF, alinhou um ano antes na selecção europeia que defrontou a congénera checa no aniversário da Federação Checoslovaca.
No SL Benfica, será sempre lembrado como um dos melhores centrais da sua história. Quando começou a aparecer entre as primeiras escolhas, deu descanso ao Terceiro Anel quanto à sucessão de Félix e Germano, os pilares históricos do eixo defensivo até aí.
Quando foi obrigado a retirar-se, a Luz teve que esperar até 1988, com Ricardo Gomes, e 2003 com Luisão, para ver parecenças no sentido de liderança e no estilo de jogo. Por estes dias, aponta Rúben Dias como o sucessor de uma longa linhagem de centrais autoritários e comandantes no rectângulo de jogo."

Desporto sem público? Ninguém gosta

"Veremos se o interesse do futebol à porta fechada, uma coisa tipo desporto de aviário, ainda apaixona da mesma forma as multidões

Esta falta de competição, de perspectiva seguras do seu regresso dificultam os temas desportivos que abordamos. De uma agenda a transbordar também a rarear em temas de interesse. Os clubes cortam salários, mas isso não é notícia. Há clubes em lay-off, mas isso já não tema. Há clubes que se demonstram terem sido mal geridos, mas isso não é novidade.
Vislumbram-se agora a possibilidade de o campeonato vir a ser acabado a partir de Junho com final da Taça de Portugal em Setembro. Nada a opor às soluções encontradas para  minorar os impactos financeiros nos clubes e SAD's, mas reitero, que para mim, esta época, perdeu qualquer interesse desportivo. Estou bem mais preocupado e atento, ao quadro competitivo da próxima temporada. Veremos, no entanto, como regressam os clubes aos treinos, no caso de ser levantado o estado de emergência do início de Maio como se tem dado a entender.
Veremos se o interesse do futebol à porta fechada, uma coisa tipo desporto de aviário apenas para consumo televisivo, ainda apaixona da mesma forma as multidões.
Talvez sim, agora que as sociedades foram treinadas a estar no sofá, pode ser que até tenha sido uma pré-época para os adeptos do futuro. Eu é que não gosto tanto. Tenho falta da adrenalina do jogo, da discussão entre amigos das jogadas, do grande golo e do penalty falhado, até dos árbitros a prejudicar o meu clube já sinto falta. De futebol gosto é ao vivo e em directo. Logo que for possível é assim que o quero de volta.
As modalidades de pavilhão, por uma questão lógica, parecem-me ainda mais longínquas do regresso. O distanciamento social a que obrigam, os metros de distanciamento, os balneários e todos os demais requisitos necessários. Parece-me que não haverá possibilidade real de acabar campeonatos e provas nos próximos tempos.
Para combater o stress, e manter, alguma sanidade, tenho jogado ténis todos os dias. Faz-me bem e sabem-me bem. Bem vistas as coisas, talvez seja o ténis aquele desporto com melhores condições de ter um regresso televisivo mais rápido. Duvido que haja interesse (ATP) em fazê-lo sem público, mas essa é outra questão, ou talvez seja a mesma. Desporto sem público? Ninguém gosta, pouca gente quer."

Sílvio Cervan, in A Bola

A solidez do Benfica

"Factos são factos e contra factos não há leituras subjectivas.
Hoje, em plena crise sem precedentes, a maior de que há memória segundo todos os analistas, a Benfica, SAD procederá ao reembolso de um empréstimo obrigacionista sem que, conforme é habitual nestas operações, proceda à emissão de um novo instrumento para financiar esse pagamento.
São quase 50 milhões de euros, incluindo os juros, que serão entregues aos investidores, os quais veem-se assim premiados pela confiança depositada na Benfica, SAD. A este montante junta-se ainda o reembolso parcial antecipado, feito em Janeiro último, de outro empréstimo obrigacionista, totalizando ambas as operações cerca de 75 milhões de euros.
Realce-se que tal é feito sem hipotecar a situação de tesouraria, a qual continuará desafogada, permitindo que a Benfica, SAD continue, em tempos que se avizinham caracterizados pela incerteza, a honrar os seus compromissos, nomeadamente aqueles assumidos perante fornecedores, parceiros, Estado e colaboradores.
Isto tudo só é possível devido à excelente situação financeira e de tesouraria da Benfica, SAD, extensível às restantes empresas e clube que compõem o universo empresarial do Sport Lisboa e Benfica. Ninguém imaginava um cenário como este com que nos debatemos no presente, mas também para ele o Sport Lisboa e Benfica se mostra preparado.
Essa preparação é fruto do trabalho feito ao longo dos últimos vinte anos, a que ao período inicial de recuperação, inclusivamente da credibilidade, sucedeu-se a implementação de uma estratégia de investimento que visou reapetrechar o clube aos níveis financeiro, patrimonial, comercial e humano, com os resultados que estão à vista.
Saliente-se, neste caso, a perspectiva financeira, em que estas operações recentes de reembolso de empréstimos obrigacionistas permitiram a redução do endividamento financeiro a apenas 70 milhões de euros (chegou a atingir 317,5 milhões de euros no final de 2013/14), o valor mais baixo desde o início deste século, ou seja, antecedente a todo o plano de investimentos ambicioso e implementado no rescaldo de uma grave situação financeira que o clube viveu e que é sobejamente conhecida.
O factor mais relevante, nomeadamente tendo em conta o sucesso desportivo alcançado nestes anos, para esta recuperação financeira, com uma queda abrupta do passivo e, em simultâneo, o fortalecimento do activo (superior a 600 milhões de euros no final do primeiro semestre) e a recuperação integral dos capitais próprios, está relacionado com as sete épocas consecutivas de resultados positivos, incluindo a corrente, que já se sabe que será lucrativa, não obstante a pandemia. 
Esta é que é a realidade. Não há comédias, nem dramas que a consigam disfarçar. É assim a vida, honrando-se todos os compromissos é que se prestigia efectivamente uma marca.
#PeloBenfica"

Domingos Soares de Oliveira faz um raio-x às contas do Benfica

"- Como foi possível efectuar este reembolso sem condições para efectuar nova emissão, como já aconteceu noutras ocasiões com outras SAD, e inclusive como já sucedeu com o Benfica?
- Durante muito tempo o método normal de lançar novos empréstimos obrigacionistas era fazer o reembolso anterior, com uma operação de alguma forma apoiada por uma entidade financeira, e, em função da adesão dos obrigacionistas, conseguir o reembolso da entidade financeira. Desta vez, como toda a gente percebe, há condições de mercado que são diferentes, mas, de uma maneira positiva, o Benfica tinha disponibilidades de tesouraria suficientes não apenas para fazer este reembolso de quase 50 milhões de euros, mas também para ter feito, como fizemos em janeiro, um reembolso antecipado de umas obrigações que se venciam em 2021. Juntando estas duas operações, estamos a falar de um total de reembolsos feitos com meios próprios, sem recurso a financiamento extraordinário, de cerca de 75 milhões de euros.

- O Benfica poderia ou deveria ter suspendido este reembolso em função do actual contexto de danos provocados pela pandemia de COVID-19?
- Seria possível fazê-lo. Tecnicamente falando teria sido possível conseguir fazer uma suspensão ou adiamento do reembolso. Para isso era necessário convocar uma Assembleia Geral de obrigacionistas, o que normalmente se faz com pouco mais de um mês de antecedência, e explicar o adiamento do reembolso. Uma das questões críticas do Benfica é efectivamente garantir que em nenhum momento falhamos perante os nossos financiadores, sejam bancos, obrigacionistas ou outras entidades financeiras que nos têm apoiado. Entendemos que não deveríamos fazer o adiamento e, em função das disponibilidades, decidimos fazer o reembolso na data prevista, que é justamente amanhã [24 de Abril].

- Disse que o Benfica tinha como prioridade diminuir a exposição a emissões obrigacionistas. Está excluída a possibilidade de lançamentos de novos empréstimos obrigacionistas no futuro?
- Não, não está, e sobretudo numa conjuntura que é completamente diferente daquilo que antecipávamos há sensivelmente um ano. Foi positivo termos tido a capacidade financeira para fazer estes dois reembolsos nas datas previstas. Se nada tivesse mudado, se não houvesse uma conjuntura anormal, provavelmente não estaríamos a falar de novas emissões, mas em função daquilo que é a realidade prática – e já percebemos que esta crise também vai ter impacto na nossa indústria –, é natural que, uma vez que o mercado se reanime, venhamos a fazer alguma emissão obrigacionista, até porque também sabemos que muitos dos detentores de obrigações do Benfica têm neste o seu principal instrumento do ponto de vista de investimento. Se de alguma forma as pessoas se sentiram algo decepcionadas quando antecipámos o reembolso que fizemos em Janeiro deste ano, desta vez entendemos que isso pode ajudá-las na sua gestão de tesouraria pessoal nos próximos tempos, que são incertos. Uma vez esta incerteza resolvida – não sei se daqui a seis meses ou um ano –, é natural que voltemos a utilizar o instrumento de empréstimos obrigacionistas como um dos nossos instrumentos de financiamento.

- Como fica o endividamento do Benfica, neste caso da SAD, relativamente a empréstimos obrigacionistas e ao sistema financeiro?
- Depois desta operação, temos um total de empréstimos obrigacionistas a correr de cerca de 60 milhões de euros, e temos mais uma operação de financiamento junto de uma entidade financeira de cerca de 10 milhões euros. No total – e falo do Grupo Benfica todo, porque a dívida está fundamentalmente centrada do lado da SAD –, a dívida sujeita a encargos financeiros é de cerca de 70 milhões de euros, um valor extremamente baixo. Se olharmos numa perspectiva histórica, só no início do século, quando ainda não tínhamos o novo Estádio e o Benfica Campus, é que tivemos uma dívida tão baixa. Nos últimos 18 anos, inclusivamente antes de o Estádio ser inaugurado, já tínhamos dívidas superiores a este montante de 70 milhões de euros. Para apresentar estes dados financeiros, muitos analistas têm dito que esta recuperação do Benfica só foi possível devido ao efeito da transferência de João Félix no último verão para o Atlético de Madrid. É verdade? Em parte, é verdade, mas é uma análise muito curta, esquecendo o que tem sido a nossa evolução na última década, mais precisamente nos últimos sete anos. Os resultados que vamos apresentar no final do ano desportivo, independentemente do impacto da pandemia, serão sempre positivos, de forma natural, como já tinha antecipado noutras intervenções, sobretudo porque o ano nos correu bem e a venda de João Félix teve impacto neste exercício de 2019-2020. Serão sete anos de resultados positivos, e aquilo que fizemos ao longo deste período de sete anos foi, de uma forma paulatina, construir um modelo de redução do nosso endividamento. Naturalmente, e nunca o escondemos, o contrato de direitos televisivos que assinámos com a NOS também nos permitiu fazer uma redução ainda mais acentuada. Esta é a explicação. O efeito Félix nunca pode ser entendido como a única explicação para termos um montante de endividamento tão baixo, que é consequência, isso sim, da estratégia e da política seguidas. Mais do que falar de um montante de endividamento baixo, é importante falar das disponibilidades de tesouraria altas que temos, mesmo depois deste reembolso.

- Era muito redutor dar apenas a transferência de João Félix como razão para estes bons resultados… 
- O pico máximo de endividamento que tivemos deve datar de 2013/14. Foi um valor acima dos 300 milhões de euros. Actualmente estamos, como eu referi, com um montante de 70 milhões de euros, e, portanto, esta redução superior entre os 230 e os 250 milhões de euros nunca poderia ser só explicada pelo efeito João Félix.

- Com estes resultados financeiros que o Benfica tem apresentado e com a redução do endividamento, será que isto não vai ter consequências desportivas para o Benfica na próxima temporada?
- Há duas questões aqui que são importantes compreender. Há uma questão de tesouraria e outra questão que são os resultados financeiros. Nós já antecipámos, dentro de todos os modelos que já equacionámos, aquilo que possa ser o impacto nas nossas contas – e quando falamos de contas, falamos da parte financeira. Este ano, e temos uma clara noção que, dependendo ou não de termos jogos à porta fechada isso terá impacto, dependendo ou não de podermos concluir os dez jogos que nos faltam, isso terá impacto também do ponto de vista dos direitos televisivos. Digamos que do ponto de vista financeiro conseguimos, de alguma forma, determinar o que é que vai ser o resultado final deste exercício em função sobretudo destas duas variáveis: há ou não há jogos, e havendo jogos, se são à porta fechada. Qualquer que seja o impacto, os nossos resultados serão naturalmente sempre positivos, e até diria muito provavelmente um dos melhores resultados da história da SAD do Benfica. Depois existe uma segunda questão, que é a tesouraria. Conforme se viu na apresentação dos resultados no final do primeiro semestre, o Benfica tinha em caixa mais de 100 milhões de euros. Apesar de fazermos agora este reembolso de quase 50 milhões de euros, continuamos com uma posição de caixa extremamente favorável e positiva. Como é evidente não há uma posição de caixa que nos permita continuar, por exemplo, sem ter competições durante mais uma época desportiva inteira, não temos capacidade para isso, como não tem ninguém. Não é um tema do Benfica, é um tema de todos os clubes nacionais e europeus.

- (...)
- O que se passará na próxima época desportiva é a grande incógnita, porque se conseguirmos ter jogos, mesmo à porta fechada (que é uma coisa que ninguém deseja, mas que nos pode ser imposta), teremos aqui um impacto do ponto de vista de receita de bilhética, e aí será a nível de caixa e de resultados económicos. Depois temos uma segunda coisa que também toda a gente já percebeu que vai acontecer: todos os grandes clubes atravessam uma situação idêntica e mais difícil, portanto, este mercado de transferências que vamos ter daqui até ao final do ano vai ser um mercado de transferências diferente, provavelmente aberto durante mais tempo, mas que só se pode iniciar a partir do momento em que as competições sejam fechadas. Este mercado de transferências vai ser diferente numa perspectiva de menos negócio e, provavelmente, na desvalorização de alguns activos. Estes dois efeitos conjugados, da bilhética e do mercado de transferências, terão repercussões no próximo ano, quer ao nível financeiro (mas aí temos a certeza que o efeito COVID-19 vai tentar ser de alguma forma anulado para a análise da boa ou má gestão dos clubes), quer do ponto de vista das disponibilidades de caixa dos clubes. Portanto, o grande desafio que os clubes têm, e isso é válido para o Benfica, é termos, ou não, condições de caixa para fazer face a um exercício que, pelo menos nestas duas variáveis, transferências e bilhéticas, vai ter um impacto negativo.

- De acordo com as contas do Benfica, qual é o impacto dos jogos à porta fechada ou, por outro lado, não havendo jogos?
- Se eu quiser somar todas as receitas do ponto de vista de RED PASS, camarotes, da executive seats, normalmente a nossa receita de bilhética é, e vou apontar um número gordo que pode ter variações de dez por cento, de 25 milhões de euros. Portanto, temos aqui uma referência que se fizermos 25 jogos por ano, cada jogo à porta fechada tem aqui um custo de cerca de um milhão de euros. Se não tivermos jogos... e aqui é preciso fazer uma leitura atenta daquilo que são os diferentes clausulados de cada contrato, que no nosso caso é um contrato com a NOS. Falando nos valores que são pagos relativamente aos direitos televisivos, que no nosso caso há um valor para direitos televisivos e outro para a exploração da própria BTV, o impacto seria acima destes 25 milhões de euros, se estivéssemos uma época inteira sem ter jogos, mas aí o reflexo é muito maior porque não conseguimos ter outras receitas, pois as receitas de merchandising, de transferências, das competições europeias, sem jogos, não existem. Esse seria um cenário catastrófico e acho que ninguém o equaciona. O que todos queremos, dentro das condições possíveis e de maximizar as garantias de segurança dos nossos atletas e daqueles que estão a assistir aos jogos, é voltar às competições, vontade essa que tem sido unânime desde que as condições sejam asseguradas. Domingos Soares de Oliveira CEO Benfica 

- Fala-se que é difícil ter, a curto prazo, as tais transferências de 100 milhões de euros, como aconteceu recentemente com o Benfica. Segundo um estudo realizado pelo Transfermarkt, os jogadores estão a desvalorizar em média 20 por cento. Isto significa que para um clube como o Benfica, cuja parte da sua receita é proveniente da venda de jogadores, poderá ser mais aconselhável esperar mais um ano para realizar uma transferência que poderia realizada neste defeso?
- Essa pergunta depende em primeiro lugar da capacidade que o Benfica tenha para fazer face à crise. Hoje, temos uma situação financeira positiva, conseguimos olhar para a frente e ter a certeza de que temos as condições necessárias para continuar para os próximos meses, em situação de caixa, sem necessidade de entrarmos em planos extremamente redutores relativamente àquilo que é a nossa actividade. Nesse sentido, também não queremos ver as transferências de jogadores afectadas por esta crise. Não vamos entrar num mercado de transferências em que os nossos atletas estejam a ser desvalorizados. A análise que o Transfermarkt fez é correta, mas durante o período de transferências iremos ver alguns jogadores que poderiam ter um valor no ano passado e, este ano, vão ter um valor completamente diferente. Contudo, as condições irão mudar na janela de transferências seguinte, provavelmente no verão de 2021, e a razão para tal acontecer é porque, a partir do momento em que entremos novamente numa via normal, o que faz subir o valor dos jogadores é a concorrência. Temos uma concorrência, não tanto económica, mas sim desportiva. Nessa concorrência desportiva o objectivo de cada clube é estar sempre à procura dos melhores recursos. Da mesma maneira que nós [Benfica] queremos os melhores recursos, e estaremos na disposição de pagar por eles, também há outros clubes, mais poderosos que o Benfica, que em determinada altura, pelos factores concorrenciais, vão outra vez tentar garantir os melhores jogadores, e esperemos que eles possam sair do nosso Benfica Campus. Há uma situação momentânea de desvalorização dos jogadores que creio que irá acontecer neste ano de 2020, mas a partir de 2021/22 o mercado voltará a conhecer os valores que já conheceu no passado.

- Tem-se falado muito que os clubes portugueses precisam de "apertar o cinto" face às actuais circunstâncias. Sabemos que o Sporting fez uma redução do salário dos futebolistas, há um processo de lay-off dos funcionários, temos lido algumas notícias em relação ao FC Porto... E em relação ao Benfica?
- Temos estado em permanente análise daquilo que são as informações do mercado e como elas impactam as contas do Benfica. Aqui, temos naturalmente várias realidades porque o Universo do Benfica é o Clube e depois são cerca de dez empresas. Aquilo que é a situação do lado da SAD não é uma situação igual à Benfica Estádio, não é igual à da BTV, como também não é igual à do Clube. Apesar de fazermos uma gestão consolidada, depois temos de atender àquilo que é a realidade de cada universo empresarial. Não posso dar nenhuma garantia relativamente ao futuro, mas aquilo que posso dizer aos benfiquistas é que só entraremos num processo mais acentuado de redução de custos se efectivamente tivermos necessidade de fazer esse processo. Para já, numa primeira fase logo no mês de Março, o que fizemos foi rever de uma forma significativa tudo aquilo que eram os grandes investimentos, e em particular o Estádio da Luz. Tínhamos previsto fazer mudanças muito grandes no ponto de vista de iluminação, do ponto de vista do som, do ponto de vista de megascreens, todavia, esses investimentos foram colocados em suspenso. Tínhamos outros investimentos para fazer no Seixal que também foram, de alguma forma, postos em espera. Analisámos, já durante o mês de Abril, tudo aquilo que são gastos que temos dentro dos vários departamentos que pudessem ser evitados. A título de exemplo, revimos todos os custos que temos com a pré-época e, por iniciativa do próprio departamento de futebol, entendemos parar uma parte significativa desses custos, que considerámos não serem estritamente necessários. Relativamente a tudo o resto, estamos a fazer aquilo que entendemos ser o correto, ou seja, continuar a honrar todos os nossos compromissos. Não sabemos o que irá acontecer relativamente à época 2020/21, falta muita informação, falta perceber como é que o mercado vai funcionar, mas, para já, a única coisa que posso dizer é que estamos muito atentos a pilotar a situação de forma permanente, regular, com o Presidente totalmente envolvido neste processo.

- O Presidente – ainda agora na carta enviada aos Sócios – e Domingos Soares de Oliveira têm, a uma só voz, transmitido algum optimismo. O Benfica está mais bem preparado para as consequências desportivas, e do ponto de vista económico, tendo em conta o que aí vem?
- Não quero fazer uma comparação entre o Benfica e os seus rivais, em particular o FC Porto e o Sporting, porque vivemos realidades diferentes. Portanto, vou analisar apenas o lado do Benfica. Hoje, estamos mais bem preparados do que há um ano, e há um ano estávamos mais bem preparados do que há dois. Temos condições para olhar para o futuro com uma confiança moderada. Olhamos para estas nuvens negras que andam em cima das nossas cabeças e não sabemos quando é que elas vão desaparecer. Todos queremos voltar à vida normal, queremos que os jogos recomecem, queremos vibrar dentro dos estádios com público. Não sabemos quando é que isto vai acontecer, porque não está nas nossas mãos. Esta confiança é sustentada pela nossa condição económico-financeira, com as nossas disponibilidades de tesouraria, mas é moderada porque não sabemos o que o futuro nos reserva. Com essa cautela, hoje estamos bem preparados. Se assim não fosse, não teríamos capacidade para fazer, sozinhos, este reembolso de quase de 50 milhões [de euros] no meio da maior crise que cada um de nós já viveu.

- Tendo em conta esta crise inédita, como é que olha para este cenário económico que se avizinha e para o impacto que isto possa ter no futebol que se segue nos próximos tempos?
- Teremos 12 a 18 meses desafiantes como indústria. E depois teremos uma situação diferente. Desafiantes porque diversas variáveis fundamentais na nossa indústria estão a ser postas em causa. Vamos ou não ter espectadores dentro do estádio? Há ou não transferências? Há ou não jogos que permitam transmissões televisivas? As respostas a estas questões terão grande impacto na indústria. Ela não vai ter de se reinventar, porque a base é o espectáculo ao vivo, mas vai passar por desafios. E não é só a indústria do futebol, mas sim a indústria do entretenimento onde está o futebol. Por exemplo, um espectáculo de uma banda de rock em diferido na televisão ou ao vivo, obviamente que as pessoas mais rapidamente pagam para ver esse espectáculo ao vivo. Toda esta indústria do entretenimento vai passar por um processo desafiante, mas é um processo que terá um fim, estou certo, algures em 2021, e a partir daí teremos condições – eventualmente com outras modalidades, e, aí, o Benfica antecipou-se através da aposta na Formação – de sustentabilidade para voltar a ser uma indústria florescente e positiva. Há poucos sinais de vida positiva como o futebol. As pessoas adoram e emocionam-se com o futebol. Esta indústria que faz as pessoas sentirem-se vivas, tão depressa quanto possível, tem de voltar a ocupar um lugar de destaque nas nossas cabeças, no nosso coração e nas nossas emoções. 

- Mesmo com jogos à porta fechada, afastando os adeptos do grande palco?
- Nós não queremos jogos à porta fechada, mas se tivermos de entrar nesse caminho, vamos entrar. Isso lança-nos outro desafio, como sociedade e não como indústria do futebol. Naturalmente, as pessoas gostam de vibrar juntas, mesmo que em frente a uma televisão. Por exemplo, as Casas do Benfica têm uma actividade importante que é a transmissão dos jogos. E eu, ainda antes desta crise, assisti a um jogo do Benfica na Casa do Clube em Grândola, porque estava no Alentejo, não estava aqui [em Lisboa]. Como vamos fazer isso? Como é que vamos garantir que as pessoas podem ver os jogos em segurança sem irem ao estádio? Como garantimos que não há aglomerados quando o Benfica joga no Norte ou no Sul? Isto porque as pessoas vão sempre receber o Benfica. Temos, como sociedade, um conjunto de desafios pela frente, às quais ainda não temos resposta, mas encontrá-las-emos em devido tempo.

- Gostaria que deixasse uma mensagem final aos Benfiquistas e não apenas aos accionistas...
- A mensagem é de que temos confiança num futuro positivo, confiança de que voltaremos a vibrar dentro dos estádios e dentro dos maiores palcos europeus, como já vibrámos. O Benfica está preparado para esta crise. Em função dos desafios colocados, encontraremos resposta. Já vivemos tempos de tremendos sobressaltos, como foi a passagem do Século em que o Benfica estava praticamente em falência, do ponto de vista técnico e prático, e conseguimos ultrapassar. Com a força dos Benfiquistas, tenho a certeza de que saberemos ultrapassar este desafio. É preciso continuarmos juntos, cada um em sua casa para, no futuro, podermos estar juntos no estádio."

O olhar de Judite (para os meus alunos)

"Cada um verá naquele olhar – que contém mil possibilidades - coisa diferente e, se calhar, hoje uma coisa, amanhã outra.

Judite e Holofernes é um dos quadros de Caravaggio que mais me interpelam e desafiam (refiro-me agora ao quadro “canónico”, não ao discutido quadro do sótão francês). É uma composição a óleo, que datam de 1599, e que reproduzirá uma cena do Livro de Judite, do Antigo Testamento. A viúva judia terá seduzido e levado à embriaguez o general assírio, durante o cerco à sua cidade, e acaba por decapitá-lo, ajudando, assim, a salvar o seu povo. O quadro retrata o momento da decapitação, sendo de notar – sublinho, pois aprecio muito a arte sub-reptícia de cruzar o sagrado e o profano – que se diz que o ousado pintor usou uma cortesã como modelo para Judite. Mas, voltando ao quadro, e à degola do malvado às mãos da mulher determinada, dir-se-ia: belo quadro (como se pode constatar na ilustração), e fim de história. Ou talvez não – e que me perdoe Sontag no seu alerta contra o excesso de interpretação – porque, no quadro, o que mais me seduz, prende, fascina, intriga, dói, deleita, é o olhar de Judite; ou melhor, as muitas possibilidades que ele contém.
Sim, muitas – diria, metaforicamente, mil. E que relação tem isso com a dedicatória acima, ou seja, com os meus alunos, que devo orientar na descoberta e no cultivo da retórica, no seu mestrado forense? Tem toda a relação, e não é preciso ser versado em Aristóteles ou noutros mestres para o saber. Basta viver e estar atento. Retórica é comunicação, linguagem, emoção, interpretação, vida. É olhar e ser-se olhado, ouvir e ser-se ouvido. É ser-se todo, em si, mas com “o” e “no” outro. É o objeto no sujeito – como se este fosse o único ninho possível daquele. E é sedução, combate, superação, medo, surpresa, repulsa, luxúria. Donde, as mil possibilidades do olhar de Judite são as mil possibilidades da vida, das emoções, da comunicação, das armadilhas, dos enganos; e da interpretação (sim, Susan, desculpa-me, da interpretação). E, também, ou sobretudo, a (im)possível conjugação simultânea de três verbos: dever/poder/querer. Verdadeira quadratura, não de um círculo, mas de um triângulo que, não por acaso, é um dos maiores desafios da geometria.
Cada um verá naquele olhar coisa diferente e, se calhar, hoje uma coisa, amanhã outra. Judite majestosa, destemida, orgulhosa, vingativa, libertadora – dizem alguns sobre o quadro. Eu não vejo bem isso. Vejo mais assombro, repulsa e até incredulidade. A criada que segura o saco e espera mostra-se nervosa – dizem alguns. Eu não vejo bem assim, vejo mais crueldade, ou mesmo a precária vingança dos fracos sobre os fortes. E mais, e mais, um mundo de possibilidades, uma espiral de olhares e de leituras. Mas isto é o que me parece agora; noutro dia, talvez seja coisa diversa. Vejo e ouço o que quero, o que posso ou o que devo? E que conjugação entre os três? E como, onde e quando? Muitos são os caminhos, acidentado e armadilhado se apresenta o terreno, caprichoso se põe o clima – como bem ensinava Sun Tzu, numa arte da guerra que é a arte da vida. São tantas, são sempre mil, ou mais, as possibilidades, e é esse o fascínio, mas também o perigo. Tanto deleite quanta cautela, tanta paixão quanto senso. Vertigem e abismo – de mãos bem enlaçadas. É assim ser-com--os-outros, mas também, em igual ou maior medida, é assim ser-connosco. Como diria Walt Whitman, (des)arrumando definitivamente o assunto, todos os assuntos:
“Do I contradict myself?
Very well, then I contradict myself,
(I am large, I contain multitudes.)”
Como Judite, como todos nós."

Portugal 2-1 Holanda. Como Ronaldo, Pauleta, Figo ou Maniche foram o melhor dicionário de um miúdo de 9 anos

"30 de Junho de 2004. Portugal-Holanda, meias-finais do Europeu que transformou o “país à beira-mar plantado” num enorme campo de futebol. A bola transformou-se, mais que nunca, no centro da vida de todos nós e, 18 dias depois do pontapé-de-saída, Portugal preparava-se para tentar vingar 1966, 1984 e 2000, desafiando a maldição que nos impedia de chegar a uma final.
A 16 de Junho, eu havia celebrado o meu nono aniversário nas bancadas do Estádio da Luz, assistindo à vitória contra a Rússia que nos devolvia a esperança após o primeiro ato (mal adivinhámos que seria o primeiro...) da tragédia grega. A seta do cupido do futebol atingira-me há pouco tempo, mas, teleguiada como um cruzamento de Beckham, acertara de maneira fulminante no meu coração.
Foi com total dedicação e entusiasmo – e, por primeira e única vez, com direito a televisão colocada no meu quarto, podendo eu assim ver as antevisões, os jogos e os rescaldos do Euro, aplicando o “fechado para futebol” que Galeano descrevera – que vivi o desfile de estrelas que passava à minha porta. Depois de derrotar Rússia, Espanha e Inglaterra, a equipa de Scolari, abençoada pela Senhora do Caravaggio e abraçada por um país que colocava bandeiras à janela, tinha na Holanda dos consagrados van der Sar, Seedorf e van Nistelrooy e das jovens pérolas van der Vaart, Sneijder e Robben o último desafio antes da final do Estádio da Luz.
Há semanas que me habituara à rotina do Euro’2004, mas naquele dia tudo foi diferente. O acordar foi súbito, atento, ativo. Tinha uma incapacidade de verbalizar mais do que palavras de circunstâncias, pois a cabeça já se encontrava centrada no lugar para o qual o corpo se dirigiria horas depois. A alimentação foi transformada em obrigação quase forçada. Saí de casa cedo, com passo grave e sentido de missão, como se tudo o que eu fizesse nas horas seguintes estivesse cosmicamente ligado ao destino final do dia. Na caminhada até ao Estádio José Alvalade havia duas manchas reconhecíveis: uma vermelha e verde e outra monocromaticamente laranja.
E havia algo no ar, como se o respirar colectivo da multidão o enchesse de alguma substância. Entrei no estádio e as bancadas e a relva tresandavam à dita substância. A que me levara a acordar excitado. A que centrara as atenções do meu cérebro. A que me levara a achar que as minhas acções estariam directamente ligadas com o que 11 homens fariam horas depois. A que conduzira aquela multidão às imediações de um estádio horas antes de um jogo.
Foi assim que, aos 9 anos, o dicionário do futebol me ensinou o que significado de “tensão antes de um jogo grande”.
A contenda decorria há 26 minutos quando Portugal dispôs de um canto do lado esquerdo do seu ataque. Deco, com o seu mágico, subtil e leve pé direito colocou a bola na cabeça de um jovem de 19 anos. O rapaz, com fios de esparguete no cabelo e pensos a taparem-lhe os brincos nas orelhas, elevou-se aos céus de Lisboa da mesma maneira que, anos antes, um avião levantara voo da Madeira para dar asas a todos os seus sonhos. E, do alto da sua impulsão, o jogador mais novo em campo rematou de cabeça, deixando Davids – “oh mãe explica lá outra vez por que é que ele joga de óculos?” – agarrado ao poste da baliza, abandonando o papel de adversário para se converter em mera testemunha.
Alvalade exultou. 1-0 e a final mais perto. O jovem festejou tirando a camisola, mostrando ao mundo um corpo já com as marcas do trabalho físico de um obstinado. E o país tinha ali, de tronco nu e cara de menino, o seu novo herói. A partir daquele momento, “Cristiano” passou a ser antecedente lógico de “Ronaldo”. E “Ronaldo” tornou-se prelúdio racional de “golo”.
Foi assim que, aos 9 anos, o dicionário do futebol me ensinou o significado de “um momento icónico”.
Pouco depois do 1-0, Maniche fugiu pela direita e assistiu Pauleta. O açoriano ganhou a frente aos defesas holandeses, rematou... mas van der Sar defendeu. Ainda em branco no Europeu – e após ver os outros dois pontas-de-lança da convocatória, Nuno Gomes e Postiga, marcarem um tento cada nas duas partidas anteriores -, o dianteiro passou os minutos seguintes cabisbaixo. Alheado do jogo e do mundo. O meu olhar acompanhava-o. Portugal estava a ganhar, a jogar bem, mas Pauleta não parava de se questionar. E eu questionava-me com ele. Esgar de dor, olhar de desilusão, expressão de quem deseja ardentemente algo mas não está a conseguir obtê-lo.
Foi assim que, aos 9 anos, o dicionário do futebol me ensinou o significado de “a angústia do ponta-de-lança que anda divorciado do golo”.
Ainda antes do final da primeira parte, uma bola desceu dos céus de Alvalade para ser domada pelo peito de Luís Figo. Quando eu “nasci” para o futebol já Figo era o consagrado Bola de Ouro, a referência futebolística do país. Na minha cabeça, triunfar na vida era algo parecido a repetir as façanhas do homem de rosto sério que jogava na galáxia distante que se chamava Real Madrid. E, ali à minha frente, Figo contornou van Bronckhorst com aquela passada dura, pesada mas rápida, que emanava um contagiante desejo de vencer. E, após sair do drible, atirou de pé esquerdo. Clack! A bola, caprichosa, bateu no poste direito da baliza holandesa, fazendo o som vigoroso que só se produz quando as balizas, por respeito a quem rematou, querem mostrar que, apesar de não ter sido golo, aquele que tentou colocar a bola nas redes é alguém especial.
Foi assim que, aos 9 anos, o dicionário do futebol me ensinou o significado de “ver uma lenda em campo”.
Segunda parte. Portugal passou a atacar para a baliza mais longe do meu lugar, a do topo Norte de Alvalade. Ao minuto 58, Cristiano Ronaldo, com a pressa própria dos que vivem guiados pela ambição, marcou rapidamente um canto, tocando curto para Maniche. O que se seguiu foi um míssil terra-ar de consequências devastadoras. Van der Sar voou como eu achava que só Benji Price poderia fazer, mas aquele era um remate digno de Mark Landers.
Da outra ponta de Alvalade, a minha estupefacção superava a emoção. Eu, que quando pisava um campo de futebol “à séria” tinha dificuldades em fazer um remate à entrada da área chegar com força decente à baliza, achava, genuinamente, que o que tinha acabado de ver pertencia ao campo do sobrenatural ou do impossível. Soube, depois, que quem viu o jogo pela televisão não assistiu ao golo em directo, pois a velocidade de Ronaldo a bater o canto e a espontaneidade do remate de Maniche enganaram não só os holandeses, mas também o realizador. Só quem esteve em Alvalade foi testemunha daquele fenómeno raro enquanto ele sucedia.
Foi assim que, aos 9 anos, o dicionário do futebol me ensinou o significado de “ao vivo é outra coisa”.
Jorge Andrade, com um corte infeliz, ainda deu esperança aos holandeses, mas a vitória foi portuguesa. Quando o jogo acabou, eu agarrei-me à pessoa que estava ao meu lado direito. Ao homem que se havia esforçado tanto, durante tantos meses, para conseguir bilhetes para o Euro’2004, ciente da importância que isso teria para o seu filho. À pessoa responsável pela minha presença num evento único na história do meu país. Se os meses anteriores foram de namoro pelo futebol, foi naquele eterno e sentido abraço de vitória com o meu pai que selei o meu casamento por este jogo. 
Dias depois da vitória contra a Holanda vieram as lágrimas gregas, vertidas no colo do meu pai na sala da minha casa. 12 anos depois, as mesmas lágrimas voltaram a ser vertidas na mesma sala no colo do meu pai. Mas, aí, já o dicionário do futebol me tinha ensinado que há lágrimas que têm sabores muito diferentes."

Comité Olímpico de Portugal celebra o seu 108.º aniversário

"O Comité Olímpico de Portugal (COP) celebra 108 anos de existência, no próximo dia 30 de Abril. Foi numa terça-feira que se reuniram no Centro Nacional de Esgrima, em Lisboa, os delegados de clubes desportivos, jornalistas e directores da Sociedade Promotora de Educação Física Nacional (SPEFN) para formar um Comité Olímpico, em Portugal. Jayme Mauperrin Santos foi o escolhido para se tornar o primeiro presidente do Comité Olímpico Portuguez (designação à data, alterada para Comité Olímpico de Portugal na Assembleia Plenária de 4 de Junho de 1992).
A constituição do COP, em vésperas da realização dos Jogos Olímpicos de Estocolmo, teve como principal função possibilitar que os atletas portugueses pudessem participar pela primeira vez numa edição dos Jogos Olímpicos.
Assim aconteceu! Desde 1912, a presença dos atletas portugueses no maior evento multidesportivo à escala mundial tem sido constante. Relembra-se o facto das edições dos Jogos Olímpicos de 1916, 1940 e 1944 não se terem realizado devido às Guerras Mundiais.
São mais de cem anos de existência dedicados ao desenvolvimento do Movimento Olímpico em Portugal. Ao longo do tempo, o trabalho desenvolvido tem merecido reconhecimento social e público, por diversas personalidades e instituições. A este respeito, destaca-se a atribuição da Medalha de Mérito Desportivo (1984), a Medalha de Honra ao Mérito Desportivo (1991), o Colar de Honra ao Mérito Desportivo (1999), o grau de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (2014) e a designação, pela Presidência da República Portuguesa, como Membro-Honorário da Ordem do Infante D. Henrique (2015).
Actualmente, o COP, para além de ser responsável pela participação das missões portuguesas nos Jogos Olímpicos (de verão, inverno e da juventude), tem ainda a responsabilidade de organizar as missões que participam noutras competições organizadas sob a égide do Comité Olímpico Internacional e dos Comités Olímpicos Europeus.
Para além desta missão eminentemente desportiva, mais recentemente e fruto do desenvolvimento que o desporto e o Movimento Olímpico têm vindo a alcançar, outros desafios foram acrescentados à área de intervenção do COP. Projectos como a Educação Olímpica, a investigação nas ciências do desporto, a salvaguarda e divulgação da história e legados Olímpicos, a importância da sustentabilidade, o combate à dopagem, violência e outras formas de discriminação, a promoção da boa governação no desporto, o acolhimento de refugiados e apoio a populações mais vulneráveis fazem parte das actividades que o COP desenvolve diariamente.
Na próxima semana celebramos o aniversário do Comité Olímpico de Portugal. Nem sempre assim foi. Durante anos, diferentes perspectivas e interpretações fizeram com que se confundisse a data de fundação do COP com a data de fundação da sua precursora, a SPEFN. A reposição da data de 30 de Abril de 1912, como data da fundação do COP, foi ratificada na Assembleia Plenária, realizada a 26 de Setembro de 2016, através de uma revisão estatuária homologada a 1 de dezembro do mesmo ano pelo Comité Olímpico Internacional.
Recolocando a história no seu lugar, celebramos mais um ano de existência!
É verdade que vivemos tempos de incerteza, a reagir a uma pandemia que nos obriga a um confinamento e a um distanciamento físico (e não social, como é referido), com cuidados redobrados no que diz respeito a medidas de higiene. Uma pandemia que provocou também, e pela primeira vez, o adiamento de uma edição dos Jogos Olímpicos.
Sejamos assim capazes de transformar estes tempos de incerteza em tempos de esperança, inspirados nos exemplos de superação e dedicação que os Atletas Olímpicos nos mostram, ao serem capazes de ultrapassar os desafios mais difíceis que tantas vezes surgem no trajecto de um Sonho Olímpico!"