Que jogos devo rever nesta Quarentena? Besiktas JK 3-3 SL Benfica

"A 23 de Novembro de 2016, o SL Benfica apresentou-se na Turquia com vontade de carimbar na quinta e penúltima partida da fase de grupos a passagem aos oitavos-de-final da Liga dos Campeões. Depois do embaraço causado por Anderson Talisca na Luz, com o brasileiro emprestado pelas águias de Lisboa às de Istambul a fazer o golo do empate aos 90+3, e da humilhação em Nápoles frente aos azuis de Sarri (derrota por 4-2, num jogo em que o marcador esteve nos 4-0), os pupilos de Rui Vitória queriam mostrar uma nova cara.
E a primeira parte dos encarnados foi fantástica. Absolutamente assombrosa. Com classe e categoria, os então tricampeões nacionais massacraram os homens de branco e negro e foram para intervalo a vencer por 0-3. Gonçalo Guedes abriu o marcador no último dos primeiros dez minutos. Insatisfeitas com a vantagem mínima, as águias portuguesas não tiraram o pé do acelerador e foi precisamente uma “águia portuguesa” a dilatar a dita vantagem.
Nélson Semedo, numa incursão ofensiva, procurou o espaço interior e, à entrada da área turca, rematou em arco com o pé esquerdo e apontou um verdadeiro golaço. Com dois golos com carimbo do Benfica Futebol Campus, a turma portuguesa vencia na Vodafone Arena por duas bolas sem resposta a equipa da casa, com apenas 25 minutos jogados. Esperava-se o melhor, esperava-se o ressurgimento do Glorioso Benfica, ainda que por uma noite apenas. Anúncio Publicitário
O tento de Fejsa seis minutos mais tarde veio cimentar essa esperança. Uma noite mágica em perspectiva. Durante toda a primeira parte, esteve em campo o melhor Benfica que Rui Vitória conseguia apresentar, o Benfica que nesse ano civil de 2016 havia gladiado olhos nos olhos com o FC Bayern de Munique de Guardiola. Sentia-se que para segurar a vitória, os encarnados só tinham que aparecer na segunda parte.
Não apareceram. Com muito mérito, assente essencialmente na crença e força de espírito demonstradas, os turcos mimetizaram a primeira parte dos adversários e alcançaram o empate. Cenk Tosun, aos 58 minutos, atirou a crença turca para níveis que se julgava serem inatingíveis depois do sucedido no primeiro tempo, com um golo acrobático. O Besiktas JK carregou e carregou com força.
Ainda assim, os visitantes, acanhados, conseguiram tardar o segundo golo dos pupilos de Senol Gunes. Tardar, mas não evitar. Tardaram-no até aos 83 minutos, minuto em que uma grande penalidade convertida por Ricardo Quaresma deixou claro o que viria a acontecer. O tempo escasseava, mas ninguém duvidava – nem mesmo os adeptos benfiquistas – de que o empate chegaria.
Chegou cinco minutos depois do 3-2. Vincent Aboubakar espalhou o êxtase pelas bancadas aos 88´, com o golo do empate que muitos julgavam inalcançável quando do final do primeiro tempo. A passagem encarnada, que ao intervalo parecia estar assegurada, ficou adiada para a última jornada. Os encarnados viriam a perder por 2-1 na recepção aos napolitanos, mas alcançariam os oitavos graças à derrota turca em Kiev, frente ao Dínamo local, por 6-0.
Nesta partida, o SL Benfica demonstrou ser capaz do melhor e do pior, ser bestial e ser besta, ser Yin e ser Yang. Tudo em 90 minutos. A partida de Istambul foi, por isto, um espelho do Benfica de Rui Vitória, um Benfica capaz de atingir o Céu e de seguida conhecer o Inferno.
A partida de Istambul é um constante lembrete do que o clube da Luz pode fazer e do que tem que evitar repetir. A partida de Istambul é um jogo a rever, não só pela qualidade e emoção da partida, mas também para que não esqueçamos do que somos capazes, para o bem e para o mal. A partida de Istambul, por mais penoso que seja revisita-la, tem que permanecer no nosso histórico colectivo, pois está marcada na nossa história.
A partida de Istambul, por tudo o que encerra, só pode ser avaliada conforme o que retirarmos dela no futuro: se aprendermos a não repetir o erro, veremos este jogo como um ponto positivo no novo trajecto benfiquista; se não o fizermos, veremos este jogo como mais um obstáculo que não conseguimos ultrapassar. Seja como for, voltaremos sempre a este jogo. Então, porque não agora? Tempo e aborrecimento para matar não nos falta.

O que vale hoje Rúben Semedo?

"Muito novo e quando ainda defendia as cores do Sporting, Rúben garantiu que apenas esperava pelo Benfica.
Cresceu, ganhou meritoriamente o seu espaço na equipa leonina e foi transferido para a Liga Espanhola por um valor significativo. Por lá se perdeu.
Hoje, volta à ribalta e poderá ser o eleito dos encarnados para reforçar um sector carenciado. Mas, o que vale hoje Rúben Semedo?
Destro, cresceu a jogar maioritariamente sobre o lado esquerdo do centro da defesa. Curiosamente em Atenas, passou a jogar como central direito, ganhando novas e importantes experiências a um nível elevado – Arsenal, Wolverhampton, Tottenham, Bayern foram alguns dos adversários que defrontou na presente época.
As capacidades condicionais foram sempre o ponto mais notório em Rúben Semedo. À muito elevada velocidade de passada, junta-lhe uma excelente leitura e percepção dos timings para os movimentos de profundidade, tendo características que lhe permitem sem dificuldade jogar em modelos que exigem linhas muito altas. Agressivo na saída ao espaço entre linhas, e extremamente forte nos duelos aéreos ou em espaços reduzidos, é regra geral dominante no seu espaço. Os posicionamentos laterais e a cadência de passada permitem-lhe chegar rápido, e a própria técnica defensiva individual tem crescido com as experiências, embora ainda se notem precipitações quer defensivas quer ofensivas.
Precipitado é mesmo o adjectivo que negativamente mais pode catalogar Rúben Semedo. Nem sempre a forma como conduz é assertiva, acelerando em momentos em que se pede maior leitura da situação. Ainda assim, também tecnicamente é um jogador bastante acima da média para quem ocupa a sua posição.



Na realidade Liga NOS, e ainda para mais num Benfica refém de qualidade no centro da sua defesa, Rúben traria argumentos até nas Bolas Paradas. Para substituir Rúben Dias ou para formar uma possível dupla, faz todo o sentido que o futuro de Semedo passe agora por onde sonhou em criança."

Entrevista para ver e rever

"No passado sábado, dia 11, o director-geral do futebol profissional, Tiago Pinto, deu uma ampla e importante entrevista em que revelou, ponto por ponto, o plano de acção gizado e implementado para a nossa equipa de futebol desde que surgiu o surto de coronavírus. Anteviu também um pouco do futuro pós-pandemia, sabendo-se, no entanto, que não há prazo definido para o regresso à normalidade e não se conhecem igualmente as consequências que advirão desta situação inusitada.
O que se sabe, porém, e conforme explicitado por Tiago Pinto, é que, independentemente de quando se der esse regresso e seja qual for o contexto nessa altura, "o Benfica vai ter a necessidade de continuar ganhar". Esta é uma das premissas, porventura a mais relevante, transversal no Clube, imutável e orientadora do empenho dos seus dirigentes e profissionais, que norteiam todas as decisões tomadas. Tudo no Benfica é feito com o intuito de haver retorno desportivo. "Ganhar, ganhar, ganhar", como recentemente afirmou o Presidente Luís Filipe Vieira.
Neste momento, e no que diz respeito à nossa equipa principal de futebol, Tiago Pinto esclarece: "A nossa grande preocupação diária é ter a certeza de que tudo se fez durante este período para, quando o futebol voltar, o Benfica estar mais capaz do que os outros e ganhar as 11 finais."
Esse regresso só se dará se e quando as autoridades o permitirem, previsivelmente num ambiente controlado, com jogos à porta fechada e vigilância permanente das condições de saúde de todos os intervenientes. Para já, a intenção, partilhada pela Liga, UEFA e Associação Europeia de Clubes, passa pela conclusão das competições.
Assim, está previsto que o regresso aos treinos, ainda que com limitações e salvo indicações em contrário por parte das autoridades da saúde, se verifique em maio e que as competições ressurjam, o mais tardar, em Junho. Entretanto, os jogadores estão a gozar um curto período de férias após um mês de trabalho intenso em casa, sob coordenação da equipa técnica e com apoio dos vários departamentos, para manutenção da forma desportiva de acordo com planos de treino individuais.
O nível de detalhe do acompanhamento dos jogadores impressiona e é revelador da esfera de acção alargada da estrutura do futebol benfiquista. Um dos exemplos apontados por Tiago Pinto está relacionado com a alimentação dos atletas, a qual é definida por nutricionistas de acordo com a recolha permanente de dados acerca do estado físico dos jogadores. As refeições são então confeccionadas segundo os parâmetros definidos para cada jogador e entregues diariamente nas suas casas.
A incerteza é, ainda, a norma. No entanto, é com enorme confiança, empenho e determinação que a enfrentamos. A rapidez com que o Sport Lisboa e Benfica transitou do seu contexto habitual para outro, caracterizado pela indefinição a todos os níveis, é demonstrativa da liderança e organização que pautam o dia a dia do Clube. 
#PeloBenfica"

Pizzi - O ‘influencer’

"É o verdadeiro influenciador de todo o jogo do Benfica. À direita, ao meio, nos penalties ou nas bolas paradas.

Luís Miguel Afonso Fernandes, bragantino na casa dos 30 que o futebol batizou, um dia, como Pizzi, merece honras de abertura deste espaço de análise a algumas das figuras que têm direito a nota de destaque no memorando de uma época futebolística que, em boa verdade, ainda ninguém sabe quando vai terminar. Ou se vai terminar.
O elogio a Pizzi não oferece discussão nem ao mais desatento dos mortais. Figura de destaque, e não apenas esta temporada, independentemente do sistema, do modelo ou do treinador, Pizzi é o verdadeiro influenciador de todo o jogo do Benfica. À direita, ao meio, nos penalties ou nas bolas paradas, a produção de conteúdos futebolísticos que nos apresenta em cada jogo colocam-no hoje nesse lugar de destaque. Esta época com um importante upgrade: 26 golos e 13 assistências são o melhor registo de sempre e um contributo relevante para os resultados e os sucessos da equipa.
Na sexta temporada ao serviço do Benfica, Pizzi não precisa dos números para gerar unanimidade. Só na primeira temporada ficou abaixo das quatro dezenas de jogos por época, o que mais sublinha a ideia de que ele, mais do que ninguém, assume capital importância no desenvolvimento do jogo colectivo. Sem perder qualidade individual. Aqui está um belo exemplo de quem, ao serviço do todo, consegue depois evidenciar o melhor dos seus recursos. Pizzi tem mundo. Conheceu realidades como as do Ribeirão, do Sp. Covilhã ou do Paços de Ferreira. Ganhou estatuto no Atlético Madrid, no Deportivo ou no Espanhol de Barcelona. Mas foi de águia ao peito que atingiu o auge como futebolista. Pizzi não nasceu (para o futebol) em berço de ouro. Não. Mas quando deu os primeiros pontapés no Mãe d´Água, provavelmente, já tinha o sonho de.... voar alto.

B. I.
Nome: Luís Miguel Afonso Fernandes
Idade: 30 anos
Valor de Mercado: 27 M€*
Jogos: 40
Minutos: 3193
Golos: 26
Assistências: 13
*Transfermarkt"

Os operadores televisivos também só se chegam à frente nos tempos de vacas gordas?

"À seca extrema de jogos que vivemos, seguir-se-á uma enxurrada capaz de saciar a sede à oferta televisiva mais exigente

O que sabemos (ou julgamos saber)
- O confinamento e o afastamento social são essenciais para conter o novo coronavírus;
- Daqui a algum tempo, com optimismo lá para o princípio de Maio, com pessimismo lá para o início de Julho, iniciaremos uma nova fase das nossas vidas, marcada por um progressivo retomar da actividade habitual, com observância de regras estritas, prescritas pelas autoridades sanitárias;
- Só seremos devolvidos a uma vida mais ou menos parecida com a que tínhamos antes de sermos invadidos pela Covid-19, quando for descoberta e produzida em massa uma vacina que erradique a peste.
Na fase em que nos encontramos devemos apelar à disciplina e à resiliência, seguindo-se tempos de prudência redobrada onde podemos perspectivar um retorno do desporto de alta competição, à porta fechada, que depois de meses de privação será um bálsamo para as almas e uma forma expedita de afastar a tendência temática monolítica dos dias de hoje, onde o novo coronavírus, qual buraco negro, suga toda a informação.

Nestes tempos terríveis em que a vida tem de continuar mas a morte não pára, têm desaparecido, à margem da Covid-19, alguns vultos do desporto que não receberam, pelo contexto em que nos encontramos, o devido tributo. Ontem morreu Stirling Moss, triunfador nas 24 Horas de Le Mans em 1956 (ao volante de um Aston Martin, fazendo equipa com Peter Collins) e vencedor de 16 Grandes Prémios de Fórmula 1 entre 1955 e 1961, entre os quais o GP de Portugal de 1958, disputado no circuito urbano da Boavista, no Porto, e o GP de Portugal de 1959, realizado no circuito de Montes Claros, em Lisboa. Moss foi quatro vezes vice-campeão mundial, entre 1955 e 1958, três delas atrás de Juan Manuel Fangio, antecipando na F1 a saga que Poulidor e Anquetil iriam, na década seguinte, escrever no ciclismo.

Para conter o mais possível, no futebol, os custos inevitáveis da pandemia que atacou o planeta, tanto a FIFA como a UEFA, depois de algumas hesitações próprias do desconhecimento do inimigo que enfrentavam, chegaram a decisões expeditas, que podem minimizar danos e defender alguns princípios que estavam postos em causa. Além do adiamento do Euro-2020, medida atempada que criou espaço nos calendários nacionais para a conclusão das provas (enquanto que o Comité Olímpico Internacional esbarrava no autismo nipónico, que passou de querer fazer os Jogos à força nas datas previstas, a uma posição de dúvida quando à possibilidade de organizar o evento em 2021!), foram abertas pistas para o prolongamento das épocas até onde fosse possível, garantindo-se o mérito desportivo dos campeões. O que significa que a fome de bola dos dias de hoje irá transformar-se numa fartura nunca vista num futuro que se deseja próximo. E os operadores televisivos, que andam há décadas a encher os cofres à custa do futebol (usando uma expressão bem portuguesa, por cada porco, dão um chouriço...) que não se queixem demasiado, nem tentem fugir às responsabilidades, porque se há sector de negócio, associado ao futebol, que esteja garantido para o futuro é precisamente o audiovisual.
Mas a FIFA também anunciou ter condições para apoiar o futebol (leia-se as Confederações, que chegam às Federações, que chegam aos clubes) o que pode servir de paraquedas para o salto no desconhecido que está a ser dado. Há que ter consciência, porém, de que muitos danos serão incontornáveis, vigorará o princípio darwiniano da sobrevivência daqueles que melhor se adaptarem às novas circunstâncias (não só no futebol mas em todas as áreas de actividade, à escala global), e não valerá a pena pensar que é possível regressar a uma vida como era antes: há um novo normal à nossa espera.

Por cá, a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) não escondeu e estabeleceu atempadamente parâmetros coerentes:
- Não haverá campeões de secretaria. Para ser outorgado um título, há que conquistá-lo em campo. Este é um princípio inatacável, que deve vigorar em todas as modalidades desportivas.
- Não havendo condições para levar as competições até ao fim, por falta de meios dos clubes que disputam as provas da formação e os campeonatos não profissionais, incapazes de dar respostas que salvaguardem a saúde dos desportivos e demais pessoas envolvidas directamente na realização dos jogos, a única solução é dar por terminados os campeonatos, abrindo contudo uma excepção para as subidas e descidas de divisão, que podem ser alvo de regulamentação excepcional.
- Foi ainda encontrada uma verba, para já escassa, para ajudar no primeiro impacto sofrido pelos clubes. Mas, e este princípio também é válido para os clubes do futebol profissional, o problema que se coloca agora, pode ser a oportunidade perfeita para corrigir erros e distorções que levaram os gastos muito para além das reais possibilidades de cada emblema...

Mas há outras questões que têm sido alvo de alguma mistificação e que urge clarificar. Sabendo-se que continua em aberto a possibilidade de play-offs para determinar subidas e descidas, falta falar de um cenário pessimista, no qual se prolongaria no tempo a impossibilidade de os campeonatos profissionais serem finalizados. Como determinar, então, não só as promoções e despromoções, mas também a hierarquização do acesso às competições europeias?
Uma via de play-off, que limitasse o número de jogos, deverá ser sempre colocada em cima da mesa. Mas, e se mesmo uma versão competitiva reduzida viesse a mostrar-se impraticável, o que fazer?
Em relação a subidas e descidas, uma de duas hipóteses viriam à baila: ou se dava a época por anulada e 2020/2021 iniciar-se-ia como tinha começado 2019/2020; ou aceitar-se-ia a classificação à data da interrupção das competições a agir-se-ia em conformidade.
No que respeita às competições europeias - e salvaguardando-se sempre que não acabando as provas não haveria distribuição de título - às duas primeiras sub-hipóteses atrás apresentadas, anular a época ou aceitar a classificação, poderia juntar-se uma outra, que passava por seguir o ranking de clubes da UEFA para preencher hierarquicamente as vagas.
Mais difícil, e quiça prematuro, é especular sobre quem se responsabilizaria por todas estas decisões. Mas confiemos que será possível, até Agosto ou Setembro, concluir as competições. Este será, sem dúvida, o mal menor...

Os números da pandemia em Espanha, teimam em não ceder, e é com redobrada apreensão que olhamos para os 619 óbitos por Covid-19 ontem verificados, mais 109 que na véspera (já morreram 16.972 pessoas). O facto de cada vez mais haver menos novos contágios é o único raio de esperança, num momento-chave em que os espanhóis vão hoje sair da hibernação a que estavam obrigados. O drama de muestros hermanos tem sido fonte de aprendizagem, e estará evitar-nos danos maiores na luta contra este inimigo quase invisível a olho nu. Para Espanha, solidariedade sem fim."

José Manuel Delgado, in A Bola

A época em que não há campeões

"Não sei, nem ninguém no seu juízo perfeito saberá, se vai haver fim nesta época de futebol. E já aqui afirmei que, independentemente de se achar uma fórmula para se encontrar os clubes que sobrem e descem e os clubes que se qualificam para as competições europeias, a época de 2020/2021, caso fique por aqui, deverá ficar registada na história como a época em que não houve campeões.
A razão será óbvia para quem não se deixou contaminar pelo vírus da clubite. Um campeonato tem regras. Quando não termina - e só razões muito especiais e raras pode determinar que isso suceda - não havendo campeonato não haverá campeão.
Claro que este é o cenário pessimista. Há outros cenários, todos eles mais optimistas. A pandemia dá tréguas improváveis, as autoridades sanitárias declaram que não há riscos, os campeonatos prosseguem, após meses de quarentena, tudo acaba em bem, o campeão é o que chega ao final da prova, com mais pontos.
Qualquer cenário optimistas nos parece, hoje, improvável. No entanto, não deixa de ser possível e desejável. E eu também defendo que, se for mesmo necessário, então que se jogue o que falta jogar sem pública nas bancadas. Poderão dizer que isso é um crime lesa futebol, que o futebol sem povo não é futebol, mas é tudo uma questão de escolha. Entre acabar o campeonato sem campeão, com jogos que se deitam para o lixo da história oficial, e poder acabá-lo, mesmo que se pague o tributo de ter bancadas desertas, pois eu prefiro que se vá até ao fim da competição desportiva. Será um género de telefutebol mas, isso, no fundo, nem sequer é grande novidade..."

Vítor Serpa, in A Bola

Uma crónica sobre carniceiros, cuspidelas, cartões vermelhos, expulsões e o Arregaça

"Volto ao Arregaça, o campo de alcatrão onde, na minha infância, muitos talentos se revelaram e poucos se aproveitaram. Com boa vontade, dava para cinco jogadores de campo e um guarda-redes em cada equipa. As balizas de ferro eram precárias e perigosas (só mais tarde as fixaram no chão) com pequenos aros de ferro na parte interior dos postes que deveriam servir para pôr redes.
Mas só em ocasiões especiais – festas da Junta ou torneios que mobilizavam algumas colectividades financiadas pela carolice de alguns pais, geralmente homens de bigode e óculos de fundo de garrafa que, na juventude, tinham jogado nas distritais e aspiravam a deixar uma marca no dirigismo desportivo local – é que punham lá as redes que, terminados os torneios, eram rapidamente removidas por funcionários municipais que as guardavam, como tesouros, em armazéns com latas de tinta, caixotes do lixo estragados e carrinhos de mão ferrugentos.
Graças ao excesso de zelo dessa guarda pretoriana dos bens públicos, jogávamos sempre sem redes, o que nos jogos mais rasgadinhos, quando em jogo só estava o nosso orgulho infantil e a aversão à derrota, significava longas discussões sobre se a bola entrara mesmo. O consenso era difícil. Para quem estava de fora, à espera de entrar, a bola entrava sempre. Quando o lance era decisivo, o segundo golo no roda-bota-fora, os derrotados agarravam-se com unhas, dentes e má-fé às dúvidas que só existiam nas suas cabeças, terçando trajectórias impossíveis como espadachins num duelo de floretes.
Numa altura em que muitos de nós tínhamos dificuldades na aritmética mais simples, os quase-derrotados eram possuídos pelo espírito de Newton e garantiam que, fisicamente, era impossível que a bola, chutada do meio campo, tivesse passado pelo meio das pernas do Zé Maluco. Na iminência da derrota, um evidentíssimo frango transformava-se num debate interminável sobre as leis da física. 
Mas não nos faltavam apenas redes. Às vezes, também não tínhamos bolas de qualidade. Os habituais guarda-redes, esse bem tão escasso e precioso no futebolzinho suburbano, nem sempre apareciam e, para preencher o lugar, lá ia um emérito ponta-de-lança, desgostoso e contrariado, avisando logo que bastava um golo de uma das equipas para ir outro à baliza, um critério que apavorava os companheiros de equipa, temendo que o temporário guarda-redes deixasse a bola entrar de propósito só para sair do castigo.
Árbitros, como todos sabemos, também não havia, à excepção de pontuais e ingénuas tentativas de pôr alguém nessas odiosas funções que tinham o efeito de despertar pulsões ditatoriais nos jovens juízes e o benefício de unir adversários contra esse inimigo comum.
Rapidamente destituíamos o árbitro nomeado e regressávamos ao método das decisões colegiais, quase sempre pacíficas quando se tratava de um agarrão, de uma mão na bola ou de uma rasteira manhosa, mas muito polémicas quando eram mais discutíveis: a distinção entre uma entrada viril (em que o infractor se defendia com o argumento de só ter querido jogar a bola) e uma tentativa de homicídio (aquilo a chamávamos “dar pau”) era nebulosa. A maneira mais eficaz de reclamar uma falta era pegar na bola e não permitir que o jogo recomeçasse enquanto a falta não fosse reconhecida pela comunidade desportiva. Claro que não havia cartões vermelhos. Já nem falo dos amarelos, o que seria uma picuinhice, uma burocratização das nossas práticas selvagens.
Mas o cartão vermelho, que seria admissível em certas circunstâncias, como daquela vez em que o Cebola, que militava nas camadas de formação do Vitória de Setúbal, deu uma patada nas costas do Xixa, era um recurso incompreensível para os nossos padrões éticos. Quando uma falta velhaca gerava tumultos incontroláveis, acabava o jogo. Ia tudo para casa, mas sem cartões vermelhos.
Isto quer dizer que todos os que lá passaram guardaram memórias, boas e más, do Arregaça – golos de letra, frangalhadas, fintas, passes de vinte metros – mas ninguém pode evocar aquela expulsão inesquecível porque nunca houve expulsões. E o que seria do futebol, do futebol a sério, sem o tempero das expulsões? Por exemplo, a de Batista. A resposta certa era Battista, defesa uruguaio. A pergunta, que às vezes dava queijinho no Trivial Pursuit, era: qual foi a expulsão mais rápida num campeonato do mundo de futebol? Antes de termos decorado a resposta, já sabíamos que só podia ser um uruguaio. Ou um argentino.
No Mundial de 1986, Batista foi expulso aos 56 segundos do jogo contra a Bélgica. Artistas de uma fineza inigualável como Francescoli ou Maradona eram escoltados por milicianos de ar carniceiro, como se tivessem sido libertados no dia anterior de prisões de alta segurança para jogarem pela selecção.
Quatro anos depois, em Itália, ficaram célebres as expulsões do camaronês Massing, que levou um segundo amarelo por ceifar o argentino Caniggia, numa falta que justificava o cartão vermelho, e as expulsões em simultâneo de Rudi Völler e Frank Rijkaard, com cuspidelas pelo meio. Ficando apenas pelos mundiais, lembro ainda as expulsões de Leonardo, defesa brasileiro, por dar uma cotovelada no norte-americano Tab Ramos, em 1994 (ano do cartão vermelho que nunca foi, quando Tassotti partiu o nariz a Luis Enrique), a de João Vieira Pinto em 2002, por cumprimentar com excessivo vigor um árbitro mexicano, a orgia de vermelhos na Batalha de Nuremberga de 2006, em que portugueses e holandeses se esforçaram por jogar cinco contra cinco, o que seria contra as regras, e, no mesmo ano, a mais inesquecível de todas, a de Zinedine Zidane, após ter dado uma marrada no italiano Materazzi, em plena final do campeonato do mundo.
Por diferentes motivos, nenhuma destas infracções teria merecido cartão vermelho no Arregaça. Desde logo porque não havia cartões vermelhos no Arregaça, mas também porque não havia árbitros (sem árbitro em campo, João Vieira Pinto nunca teria sido expulso, essa é que é essa) e porque todas as outras faltas, incluindo a de Zidane na final, teriam sido resolvidas em concílio ecuménico, provavelmente com mais agressões pelo meio, até os ânimos se acalmarem e ser possível retomar o jogo. No fundo, era isso que queríamos.
Não era justiça, nem cumprimento de regras, nem punição dos infractores. Era jogar à bola, jogar até nos cansarmos, jogar até as nossas mães nos chamarem para casa porque estava na hora do jantar. No universo do Arregaça era esse o nosso cartão vermelho: o minuto em que a voz da mãe dava ordem de expulsão."