sábado, 11 de abril de 2020
«Nunca mais me esqueço da forma como o João Pinto me recebeu»
"Oiã, Palhaça, Oliveira do Bairro e Bustos, Troviscal e Mamarrosa. Como disse? São as quatro freguesias de Oliveira do Bairro, ali na região da Bairrada, terra de leitão e bom vinho. Mas ainda há algo melhor a ter saído dessa terra e chama-se João Henrique Pataco Tomás. O homem que, nas palavras do próprio, amadureceu tarde, fez golos atrás de golos por todo o lado por onde passou, ou não fosse ele um globetrotter com passagens por Sevilha, Qatar, Dubai e Angola, a que se junta em território nacional Coimbra, Lisboa, Guimarães, Braga, Porto e Vila do Conde.
– Infância, juventude, formação –
João, és natural de Oliveira de Bairro, começo por perguntar-te se és apreciador de leitão?
(risos) Já comi muitas vezes, e gosto, mas actualmente só como mesmo em situações especiais.
Que memórias tens dos teus primeiros pontapés na bola?
Tenho muitas, não posso esquecer que sou um miúdo que nasceu e cresceu na aldeia e diria que na aldeia temos tempo para tudo. Dava um jeito tremendo estar na aldeia agora (risos).
Como é que foi o teu percurso na formação?
Foi um percurso normal, muito natural, porque, como disseste, sou natural de Oliveira do Bairro e fiz a minha formação toda lá. A formação na altura só começava aos 10, nos infantis, por isso fiz oito anos de formação.
Jogaste sempre a avançado?
Joguei sempre a médio, sempre a 8.
Como se dá a tua mudança para avançado?
Isso foi no meu segundo ano de sénior.
Por necessidade da equipa ou porque estavas a marcar golos?
Foi uma mistura disso tudo. Quando eu estava no Águas Boas, no meu segundo ano de sénior, jogava a meio-campo e tinha feito alguns golos já. Houve um fim-de-semana, na época 1993/94, em que um dos nossos centrais adoeceu. Nessa altura não existiam telemóveis. No domingo, chegamos ao jogo e o central estava doente, não havia forma de contactar e eu até ia ser suplente, curiosamente. Um dos médios baixou para central, eu entrei para o lugar dele e o colega dele baixou um bocadinho, e eu apareci mais à frente. Fiz quatro golos e o treinador no final do jogo disse-me “Tu comigo nunca mais vais jogar a meio-campo. Vais ser o ponta-de-lança”. E nesse ano fiz para aí 30 golos.
Foste dispensado do Oliveira do Bairro depois de teres feito a formação toda no clube. Como é que lidaste com este contratempo?
Não quero ser injusto mas acho que todos os jogadores que jogaram o campeonato nacional de juniores foram dispensados. Acho que não foi ninguém aproveitado para os seniores. Mas lidei muito mal, fiquei muito desapontado. Em todo o período da minha formação, eu nunca fiz um treino com a equipa sénior e naquela altura era doloroso quando víamos colegas nossos serem chamados para o treino dos seniores. Quando somos miúdos num meio tão pequenino, ficamos desiludidos por não ter a oportunidade de treinar com os seniores, nessa dimensão o objectivo número um é chegarmos àquela equipa e eu nunca o consegui fazer. Retiro daí que a paixão era tanta que, não teve que acontecer por algum motivo. Bola para a frente!
Apoiavas algum clube em miúdo?
O Sporting.
Por causa do teu pai ou algum familiar?
A minha família era quase toda do Benfica, os meus dois avôs eram do Porto e tinha um tio, irmão do meu avô materno, que era sportinguista, foi por ele. Mas deixei de ser sportinguista no dia em que o Sousa Cintra despediu o Bobby Robson.
Das piores decisões da história do futebol. Despedido no avião.
Sim, a regressar de Salzburgo depois da derrota com o Casino. Eu fiquei tão desiludido com aquilo que nunca mais quis saber do Sporting.
Por falar em Bobby Robson, viste o documentário na Netflix?
Sim, adorei! Ia falar agora nisso, depois de ter visto o documentário ainda mais indignado fiquei (risos).
Qual foi o melhor conselho que te deram na formação?
O que me lembro bem, e não quero dizer com isto que os miúdos não tenham essa paixão, é que nós éramos uns obcecados, não pelo treino em si, mas pelo período de tempo em que estávamos a treinar. Acho que isso era o que fazia a grande diferença, adorávamos aqueles 60 ou 70 minutos em que estávamos a treinar e recordo-me perfeitamente que o treino era o maior fascínio que podíamos ter. Passava por cima de tudo, dos brinquedos, das saídas com amigos, das raparigas, passou sempre para primeiro plano, a seguir à escola claro. Acredito que os miúdos agora são manobrados por tanta coisa e têm que controlar tanta coisa que eventualmente é mais complicado. Abdicávamos dos fins-de-semana e saídas à noite porque era a nossa paixão.
Lembras-te da tua estreia como sénior?
Não… É no Arviscal mas é curioso, não me lembro.
E do primeiro golo?
Também não (risos).
Para quem marca tantos golos é normal não te lembrares de todos…
Mas lembro-me de um episódio curioso, dos primeiros treinos no Arviscal. Eles tinham umas condições, em termos de estruturas fixas, muito acima da média. Mas muito mesmo, equipar no balneário do Arviscal era uma coisa de sonho para nós naquela altura, o resto era uma desgraça. Eu sempre me dei muito bem com quase todos os roupeiros onde joguei, com o do Arviscal, o do Águas Boas, ainda no outro dia estive com ele e fartei-me de rir, o Luís. Eu tinha dificuldades, nós éramos três filhos, os meus pais eram professores e não havia botas novas sempre. Lembro-me perfeitamente de ter comprado as minhas botas com o dinheiro que ganhava, na altura custavam para aí oito contos. Com o ordenado de um mês não dava para comprar umas botas. Fui à rouparia, vi lá umas botas e eram perfeitas mas a bota esquerda estava rota à frente. Disse ao roupeiro “Posso ficar com elas?” e ele “Podes, estão aí perdidas”. E eu lembro-me que até estavam um bocadinho grandes mas eram tão boas, nunca tinha jogado com umas tão boas e usei-as até rebentarem.
E mais?
Outro episódio que recordo, já no meu segundo ano de sénior. Eu passei a ganhar sete contos e quinhentos e tinha um prémio, não me recordo do valor certo mas, para teres uma ideia, deu para comprar um carro. Comprei um Renault 5 por 30 contos, 150 euros. E na altura estava muito na moda… tu tens que idade?
27 anos.
Então não te lembras disso. Na altura, foi quando apareceram os primeiros kispos da Duffy, aqueles de penas, muito grossos. Ainda o tenho e, como não tinha dinheiro, combinei com umas pessoas amigas de uma loja lá em Oliveira do Bairro pagar aquilo em três prestações de seis contos.
Lembras-te do que fizeste com o primeiro ordenado?
Não. O primeiro ordenado ganhava cinco contos por mês, no Arviscal.
BnR: Para que é que dava cinco contos na altura?
JT: Na altura, que foi quando eu tirei a carta, eu atestava o tanque do meu carro com quatro contos. Cuidado. O litro de gasóleo custava 70 escudos.
Como foi a transferência para Académica?
Surge porque passei pelo Anadia, fui para lá porque o meu pai conhecia o treinador e eu fui lá treinar. Eu tinha um tio que era da Malaposta, ali ao pé de Mogofores, e que era dirigente da Académica. O caminho ficou mais próximo mas é evidente que eu estava a fazer um brilharete no Anadia, tinha 20 anos, foi uma consequência natural do meu trabalho. Fomos eliminados da Taça nesse ano pelo Boavista do Manuel José, levámos sete...
7-2 não foi? Tu marcaste um golo não foi?
Sim, marquei um e começámos a ganhar. Depois levámos sete mas começámos a ganhar (risos). Mas dizia, o meu tio permitiu abrir o “canal” mas apenas para eu ir fazer os treinos de captação à Académica no final da época. O míster Vítor Oliveira marcou uma série de treinos e eu lembro-me de ter ido lá a Coimbra ao Estádio Universitário treinar à experiência. Depois a ideia era assinar, fazer a pré-época e depois voltar emprestado ao Anadia. Mas no fim da pré-época o Vítor Oliveira disse “Não, não, este já não sai daqui”. E fiquei.
Quem era a equipa da Académica?
Pedro Roma, Miguel Bruno, Febras, Rocha, Abazaj, Mickey.
Com qual dos treinadores tiveste melhor relação?
Com o Vítor Oliveira tínhamos uma relação boa, como era normal. Toda a gente conhece a sua personalidade por isso não é difícil perceber que todos nos dávamos bem com ele. Agora, relação mesmo importante foi com o José Romão, ele que veio substituir o Henrique Calisto e foi com ele que garantimos a permanência na primeira divisão. Depois com o Carlos Garcia também, ainda hoje o vejo aqui em Braga.
Quem é que te pôs a alcunha de “Jardel de Coimbra”?
Talvez os meus colegas. Foi quando o Jardel aparece em Portugal, logo a seguir. Diziam que a minha fisionomia era parecida com a dele e ficou.
Qual a melhor memória dos tempos da Briosa?
Fiquei muito ligado à subida de divisão. Bem, não diria muito porque isso foi papel dos meus colegas, eu joguei muito pouco, mas fiquei ligado a esse feito porque nós fomos ganhar a Felgueiras 0-1 e fui eu que marquei o golo, aos 89’. Foi um chapéu do meio-campo ao Boskovic e nesse jogo nós estávamos a três pontos e ficámos a seis. Acho que foi assim e nós ficámos com vantagem directa, na altura subiam três. O Felgueiras estava quase atrás de nós e atenção que era o Felgueiras de Jorge Jesus.
Como se dá a tua transferência para o Benfica?
Vou para o Benfica fruto do meu rendimento, saio a meio da época e tinha 19 golos marcados em 17 jornadas. Entrei para essa época em final de contrato e não havia a garantia que fosse ser dado seguimento à minha carreira. Entrei para esse ano já meio desiludido com o futebol, porque eu entrei primeiro na faculdade que no futebol profissional. Na altura era estudante universitário e estava a custar-me fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Pensei, vou jogar mais este ano, estou em final de contrato, estou a ver que isto não anda para a frente nem para trás, arrisco este ano e se não der, regresso à faculdade, acabo o meu curso e siga.
Entretanto começas a marcar golos atrás de golos…
Aconteceu. O meu tio era sócio honorário do Sporting e escreveu uma carta a aconselhar que estava um miúdo muito bom na Académica, ele mostrou-me a carta. Acabo por sair para o Benfica, fruto daquilo que estava a fazer em campo, mas gostei muito desse ano na Académica, foi um ano marcante a todos os níveis, futebolístico, emocional, embora as pessoas ainda hoje me culpem pela saída.
A sério? Levaram-te a mal?
Sim e ainda hoje quando vou a Coimbra algumas pessoas fazem questão de continuar a demonstrar que não esqueceram.
Mas era uma mudança natural, se um grande chega à Académica e quer contratar um jogador…
Pois… Da minha parte nunca houve dúvidas nem eu senti obrigação de explicar o que quer que fosse porque para mim as coisas eram claras, exactamente como tu a descreveste. Mas aquilo foi mal interpretado porque disseram que havia outro clube grande que me comprava e me deixava ficar na Académica até ao final do ano. Mas eu, muito honestamente, não tive conhecimento disso. Eu fiquei super surpreendido quando soube.
Como soubeste?
Eu tinha um ritual pré-jogo de recuperação, com pessoas qualificadas. Estava num ginásio e, quando acabo o banho, pego no telefone e vejo que tinha imensas chamadas não atendidas. Fiquei surpreendido e quando chego ao carro para ir para casa ligo e digo “Então, ligaste-me tantas vezes, que se passa?”. E ele “Às seis horas da tarde estamos em tua casa para te levar para Lisboa.” E eu “Vamos para Lisboa fazer o quê?”. E eles, “Vamos para Lisboa porque tu vais para o Benfica”.
E tu?
E eu disse “Vai gozar com o caraças pá, és maluco”. E ele diz “Não, não, vais tu, vou eu, o José Veiga está lá em baixo à nossa espera. Vamos directamente ao Estádio da Luz e assinas.” E eu disse “Se é verdade, então vamos embora!”. E pronto, fui para Lisboa, cheguei lá e assinei dois contratos, um de quatro anos e outro de quatro anos e meio, dependendo se a Académica me deixava sair logo ou só no final da época. Acho que a mágoa é um bocadinho a de perceberam claramente que as probabilidades da equipa subir de divisão com a equipa completa seriam muito maiores do que depois de eu sair. E a verdade é que acabaram por não subir.
Quanto é que custaste ao Benfica?
200 mil euros, 40 mil contos.
Quem eram os líderes de balneário naquela equipa?
João Pinto e outros. Grande capitão. Até hoje temos uma boa relação, nós depois cruzámo-nos novamente no Braga e também na selecção.
Com quem te davas melhor nessa equipa?
Criei uma grande afinidade com o Bossio, até hoje. Eu equipava-me entre o Bossio e o Paulo Madeira e, quem for ler isto e conhece a personalidade deles sabe, era impossível não se dar bem com eles. Dei-me bem também com o Calado, Nuno Gomes, Ronaldo. No ano seguinte, lembro-me porque estou a ver o balneário e como estávamos distribuídos, continuei com o Bossio e o Paulo Madeira, mais o Maniche e o Fernando Meira também ao pé de mim.
Qual é a sensação de entrar no Estádio da Luz a rebentar pelas costuras?
Jogámos lá o derby com o Sporting com 85.000, lembro-me também do jogo com o Boavista que também estava completamente a abarrotar, se ganhássemos passávamos para a frente. Não se ouvia sequer o apito do árbitro.
Isso para os jogadores contagia?
Eu diria que quem disser o contrário está a mentir às pessoas. É impossível, por muito que nós estejamos preparados, que o aspecto emocional não mexa connosco.
Falaste há pouco no derby com o Sporting, vamos a esse jogo.
O derby tem um conjunto de situações fabulosas que acabaram de uma forma muito inesperada (risos)
É a lesão no joelho esquerdo 15 dias antes num treino, certo?
Pois, 15 dias antes tínhamos ganho 4-0 ao Vitória e eu marquei três golos. Antes do jogo do Vitória tinha sido chamado pela primeira vez à Selecção A e, quatro dias depois do jogo em Guimarães, lesiono-me no treino. Eu disse um palavrão e senti “Porquê agora?”.
O sentimento de injustiça.
É, por isso é que eu digo que isto do desportista de elite está muito correlacionado com a sorte, os momentos. Eu cheguei a casa e disse à minha mulher “Porquê agora? Porque é que eu tenho que me lesionar logo agora?”. Ainda por cima no treino que foi, lembro-me perfeitamente do treino que foi, da jogada que foi. Chovia imenso nesse dia, o campo nº3 completamente alagado e o Mourinho disse “O campo está muito estragado, tudo alagado, fazemos a peladinha amanhã.” Mas a malta toda quis fazer nesse dia. O campo tinha água que até tapava as botas.
E é num lance dividido que te magoas?
É. Há coisas do destino, eu nunca chuto de bico, nunca. Mas a bola estava encharcada e eu vou para lhe dar de bico. O Geraldo só segura assim o pé e o meu joelho faz “Trac”, rotura no ligamento lateral do joelho. Cheguei ao banco e disse ao doutor “Já fui”. Isto foi numa 4ª-feira, nós jogávamos no fim-de-semana contra o Campomaiorense para a Taça de Portugal e depois era o jogo com o Sporting. Mas eu disse “Doutor, eu vou jogar com o Sporting, esqueça. Vou ficar bom do joelho e vou jogar”. Depois saiu o resultado do exame e eram quatro a seis semanas parado.
Duro…
Sabes o que é que eu fiz? Aquilo era uma semana a dez dias com a perna imobilizada e eu andei três, quatro dias assim e depois tirei aquilo. Depois recuperei milagrosamente para o jogo. Na semana que antecedeu o jogo falei várias vezes com o mister Mourinho e disse-lhe “Mister, não se preocupe, eu vou estar pronto. Posso não estar pronto para jogar de início mas vou estar pronto para jogar.”
E ele contava contigo para o jogo?
Lembro-me perfeitamente na noite que antecedeu o derby, o Mozer não vai levar a mal esta inconfidência. Ele veio ao meu quarto e estivemos mais de uma hora a falar. Disse-me “João, vai acontecer isto, o mister já preparou a equipa.” Eu disse logo “Oh mister, não há problema nenhum. Eu disse que ia estar pronto e vou, jogue o tempo que jogar”. Eu acho que foi o sentir desta emoção que explica que eu tenha entrado com o joelho todo imobilizado com 30 minutos para jogar ainda. Senão repara, eu tive uma lesão que o tempo para recuperar são quatro a seis semanas, estou seis dias praticamente sem fazer nada, fiz três treinos para me reintegrar, fiz um treino ou dois com a equipa, senão jogava só cinco minutos, um quarto de hora… Esse sentimento, essa emoção que eu demonstrei, que fez com que as pessoas ficassem impressionadas e depois o resto é história. É engraçado, eu a correr à frente do César Prátes com o joelho todo ligado e as pessoas ainda diziam que eu era lento.
Consegues descrever-me na primeira pessoa como viveste os teus dois golos? Entras aos 60’...
Primeiro golo é mais oportunismo do que propriamente uma consequência de algo. Foi uma biqueirada para a frente do Fernando Meira, eu depois de estar na frente isolado era difícil de me apanhar. Se tu reparares, há dois momentos, não sei explicar mas a celebração do primeiro golo digamos que é sóbria, “ufff”, saiu-me um peso das costas, marquei o golo, fantástico, está toda a gente a vibrar. Agora, o segundo golo foi tudo ao contrário, já era eu. A primeira foi a dizer “Tanto sofrimento, mas valeu a pena”, a segunda foi o esctasy total, um gajo sai disparado. É aquela emoção de já teres feito o primeiro golo, depois é o estádio com 85.000 pessoas, é o jogo contra o Sporting que é um derby daqueles que dá gosto. Depois, nós sabíamos que havia a questão contratual do José Mourinho, se o Vilarinho ganhasse as eleições o treinador era o Toni e isso foi tornado público, foi muito desagradável. Não sei se consegues reparar mas o segundo golo foi celebrado entre mim e o Bossio daquela forma. Éramos colegas de quarto, ele sabia o que eu tinha sofrido porque ele morava perto de mim e nós estávamos muito juntos. Ele percebeu que foi um sacrifício muito grande para estar naquele jogo.
Quando és abordado na rua este é o momento que mais te recordam?
É, sem dúvida.
Que memórias tens de ser treinado por José Mourinho?
A história que eu tenho mais específica dele comigo foi no dia em que ele chega. Ele falou com toda a gente de forma individual e, quando chegou à minha reunião, eu estava apreensivo. Estava no Benfica há pouco mais de meio ano e pensei que isto podia ser complicado para mim mas não, foi tudo ao contrário. Apesar de ser um miúdo de 25 anos, já era uma pessoa adulta, sóbria, já a saber o que dizer e disse-lhe “Mister, se conta comigo eu estou aqui para dar o melhor que posso e que sei”.
Tiveste um gesto muito bonito que acho que passou despercebido a muita gente. Ofereceste uma camisola do Robert Enke ao Museu do Benfica, de quando o defrontaste em Espanha. Que memórias tens dele de quando jogaram juntos no Benfica?
(João demora a escolher as palavras) O Enke era… uma pessoa diferente. Infelizmente partiu de forma trágica, mas era um profissional exemplar, que ninguém tenha dúvidas, era um guarda-redes muito, muito bom e um colega espectacular.
O que é que faltava a este Benfica nos anos em que lá jogaste? Andava longe dos títulos…
Faltava, eventualmente, muito mais do que nós tínhamos. Nós percebemos com o passar dos anos que as coisas não acontecem por acaso. O Benfica transformou-se, com a entrada do presidente Luís Filipe Vieira, na máquina que é hoje e isso é uma consequência de algo. É uma consequência do investimento, da organização, da estruturação e tudo isso faz implicar muita coisa. Faz implicar, na maior parte das vezes, sucesso.
Jogaste em Espanha, no Dubai, no Qatar e em Angola. Em qual gostaste mais de viver e em qual gostaste mais de jogar?
(risos) Gostei muito de viver em Sevilha e no Qatar. De jogar, Espanha.
Sais para o Bétis em 2001. Davas-te muito com o Calado?
Claro, morávamos perto e tudo.
Como era a vida no Qatar? Alguma história engraçada?
Em 2006, no Qatar, a internet tinha aparecido há pouco tempo. Não havia wireless em casa, para teres uma ideia, os portáteis não traziam WiFi, eu tive de comprar uma pen que era o detector do WiFi. Quando lá cheguei, percebi que era um país evoluído e a única diferença era que passámos de um país cristão para um país muçulmano com as devidas regras.
Que memórias tens de Angola? Estreias-te com dois golos…
Foi uma decisão que deu para aprender muita coisa.
A tua mulher acompanhou-te sempre nestas experiências?
Não, só me acompanhou para Sevilha e para o Qatar.
És casado há quantos anos?
Vamos fazer 20 anos de casados em Junho.
Qual a importância de teres estabilidade na vida pessoal cedo?
Tem uma influência muito grande porque é um factor de estabilidade sentimental, emocional e familiar. Com o nascimento das filhas as coisas ficam diferentes mas acho que é uma consequência natural de uma vida em família. Eu sei que numa boa parte dos casos não é esta durabilidade que acontece mas foi sempre parte do meu sucesso e do insucesso profissional, esteve sempre nos bons e maus momentos para ser um apoio.
– Rio Ave e os “Grandes” do Minho –
És o melhor marcador da história do Rio Ave, um feito atingido entre os 34 e 37 anos de idade. Que sentimento é que isto te evoca?
Acho que isso é tudo uma consequência do estilo de vida que tu levas, ponto número um. Depois, obviamente que a genética também pode ajudar mas o Rio Ave foi onde mais gozo me deu jogar. Porque eu chego a Vila do Conde já com 34 anos, numa fase difícil onde temos de mostrar todos os dias que estamos bem. Mas foram os anos em que eu mais desfrutei. Em Vila do Conde senti que tinha uma grande responsabilidade em cima de mim, principalmente posta por mim, porque tinha 34 anos e tinha que provar, não a mim mas aos outros, que podia ser titular todos os domingos, que podia marcar golos todos os domingos. Eu dou por mim a traçar objectivos, porque as pessoas vão-me informando e eu começo a perceber que tenho um recorde para bater e foi um estímulo interessante. E nessa altura já não havia pressão na minha cabeça, havia o desfrutar a situação e eu propor-me a fazer uma coisa que eu achava que era justo.
É a massa adepta da qual sentiste mais carinho?
Tenho boas recordações de todos. A forma genuína como eu jogava reflectia-se na forma como eu estava na vida.
Jogas nos dois grandes do Minho, Vitória Sport Clube e Sporting de Braga. Como é que se vive o derby do Minho?
Eu vivi três derbys maravilhosos: primeiro Benfica/Sporting, depois Sevilha/Bétis e depois Braga/Vitória. Mas destes três, talvez Sevilha/Bétis seja o mais empolgante. Vive-se muito mesmo, um mês antes do jogo já não pensas noutra coisa, foi estrondoso jogar o derby.
Estreias-te a 15 de Novembro de 2000 contra Israel. Que memórias tens deste dia?
Ui… Memórias muito emocionais. Recebo a chamada estou a entrar na autoestrada para ir para Lisboa, tinha vindo passar a folga a Oliveira do Bairro, lembro-me perfeitamente de onde estava. Atendo a chamada e era o António Oliveira. “Olá João, daqui fala o mister António Oliveira” e eu caiu-me tudo e disse “Então mister?”. Ele disse que o Sá Pinto se tinha lesionado e que eu estava convocado. A viagem para Lisboa foi muito difícil, mas a emoção foi maior no dia seguinte quando vou à Luz levantar as minhas coisas para ir para Braga. Nunca mais me esqueço da cara do preparador físico, o Ángel Vilda, a emoção que ele tinha, e não me esqueço daquilo que me disse o Mourinho, foi um momento muito importante.
Porquê?
Foi tudo muito rápido, eu nunca tinha jogado em selecção nenhuma, de repente salto do futebol distrital para o Anadia, do Anadia para Académica, de repente estou no Benfica e agora estou na selecção nacional. Como deves imaginar, para um miúdo de Oliveira do Bairro, nos anos 90 e tal, 2000, não era fácil assimilar isso. Os miúdos hoje em dia estão muito mais preparados. Nós éramos mais reservados, tínhamos mais dificuldades perante a novidade. Depois apanhei o avião para o Porto, estava um táxi à minha espera para ir para Braga. São acontecimentos que nunca se esquecem.
Como foi a chegada ao hotel onde já estava a selecção?
Como deves imaginar o impacto foi muito grande em termos psicológicos e emotivos porque estamos a falar da selecção de Vítor Baía, Fernando Couto, Rui Costa, Figo. Aí é que se vê a grandeza dos craques, eu nunca mais me esqueço da forma como o João Pinto me recebeu quando eu cheguei à Luz e nunca mais me esqueço da forma como o Figo me recebeu quando eu cheguei ao hotel da selecção. E pronto, a partir desse momento, tudo fica mais fácil. Porque eles são os verdadeiros campeões em tudo e sabem que aquela situação é difícil para ti, é complicado aquele primeiro impacto. E eu nunca me esqueci disso quando fui capitão, por exemplo no Rio Ave, porque eu percebi que quem está a chegar novo precisa de ajuda.
Como era o António Oliveira como seleccionador nacional?
Eu privei com ele duas, três vezes. É uma personalidade que temos oportunidade de ver agora a fazer aqueles comentários no canal 1 ao domingo à noite e ficamos maravilhados com aquela postura.
Representar a selecção nacional é o expoente máximo da carreira de um jogador?
É, não tenho dúvidas.
Como era o ambiente na selecção? Havia rivalidade de clubes?
Não, isso é um mito (risos).
Marcas um golo pela Selecção, num amigável com o Kuwait em 2007. Qual é a sensação de marcar pelo teu país?
Era o que me faltava, digamos que se havia peso que estava ali para sair das costas saiu naquele momento.
Sentes que houve alturas em que merecias a chamada à selecção, mas, como não estavas num grande, acabavas por não ser seleccionado?
Sim, claro. Mas isso eu já disse muitas vezes, não vale a pena estar-me a repetir porque não acredito que tenha sido por eu jogar no Rio Ave. Acredito que, com a performance com que eu estava no Rio Ave, se fosse com o Fernando Santos, não tenho dúvidas que era chamado.
A decisão de terminar a carreira é a decisão mais difícil para um jogador?
Eu tinha a convicção, quando decidi sair do Rio Ave para ir para Angola, que a coisa podia acabar muito rapidamente. Não é que no Rio Ave não fosse acabar, era uma questão de tempo, mas a decisão de ir para Angola foi pensada e deu-e mais-valias em termos de bagagem para o futuro, porque estamos sempre a aprender. Foi uma passagem por África, pelo país onde a minha mãe nasceu e os meus avós viveram muitos anos. Foi um encontro com o destino ir à terra onde a minha mãe nasceu, parte daquilo que eu sou também está ali naquele continente. Adaptei-me muito facilmente, identifiquei-me com muita coisa e foi isso que me fez aguentar um ano inteiro lá. Obviamente que nós sabemos que a carreira vai acabar mais tarde ou mais cedo. Acabou, podia acabar noutro sítio qualquer, não pensei muito porque, em primeiro lugar não o devia fazer e, em segundo, porque regresso à faculdade para acabar aquilo que tinha começado há 20 anos e isso tirou-me os pensamentos depressivos da cabeça.
Do que é que tens saudades dos tempos de jogador?
Não existe nada que nós não tenhamos saudades, até mesmo daqueles treinos que nos rebentavam, mesmo os estágios em que estamos privados de tanta coisa. Tenho saudades de tudo, nem gosto de pensar, até evito pisar a relva. Vou-te contar um episódio. Estava uma vez no treino, já como treinador, e havia um jogador da equipa A do Braga, não vou dizer nomes. No tempo do Paulo Fonseca, estávamos a treinar os pontas-de-lança e no final do treino houve uns jogadores que tiveram de fazer treino complementar. Tive a oportunidade de dizer a um miúdo, ainda joga, e disse-lhe “Oh X, não imaginas as saudades que eu tenho de fazer essas aberturas. Por isso, aproveita, não faças cara feia e treina porque não imaginas o que eu pagava para tirar 10 anos ao meu BI e estar aí a fazer essas aberturas ao teu lado. E podes não dar valor ao que eu estou a dizer agora, mas quando acabares a carreira vais lembrar-te do que eu disse.” E é verdade, que saudades que eu tenho de fazer aberturas, que é o exercício mais horrível que há, estarmos a fazer sprints para cima e para baixo.
Como é um dia-a-dia de um director desportivo? Passas mais tempo no escritório do que perto da equipa?
Não. Eu tento sempre ser um director desportivo que está no treino, mesmo prejudicando o meu próprio quotidiano, porque depois o tempo que se está a ver o treino não se está obviamente no escritório, mas eu prefiro assim. Só mesmo se for urgente e impossível conciliar.
Criaste um treino específico para avançados.
É uma das minhas paixões, porque considero que a especificidade de um avançado está também muito próxima do que é a especificidade de um guarda-redes. São posições muito parecidas na questão da integração do treino e faz o atleta ser melhor.
Consegues explicar em traços gerais como funciona?
O modelo é simples, eu diferencio o treino em três etapas. O primeiro momento refere-se à parte técnica do jogador, o que é treinável e como é que é treinável. Ou seja, as questões mais analíticas, passar bem, receber bem, utilizar os dois pés, a cabeça, os apoios, a forma como eu rodo. Tudo questões muito primárias e com importância gigantesca naquilo que é o resultado final. Depois, na segunda fase temos tudo isso e a oposição do guarda-redes, porque ele é o nosso adversário número um. A terceira fase é integrar tudo aquilo que nós utilizamos no treino específico com aquilo que faz a equipa. Portanto, eu sozinho, eu com o guarda-redes e depois eu na companhia da minha equipa.
Isto surge fruto da tua própria experiência como jogador?
Sim, eu sempre vivi muito da equipa por isso é que acho que não se pode desligar as peças, sempre fui o primeiro a assumir que se não fossem eles eu fazia muito pouco. Eu nunca fui um dotado, fui um dotado em determinadas valências, mas para fazer golos precisava dos meus colegas. Eu costumo dizer, isto até pode ser uma frase forte, em tom de brincadeira, mas de uma forma séria, que eu atingi o máximo que podia. Melhor teria sido difícil. Repara, eu nasci em Oliveira do Bairro e fui viver para uma aldeia de 500 habitantes, cresci na aldeia e apenas comecei a jogar futebol com 10 anos, no Oliveira do Bairro. Não tive acesso a tanta coisa importante, mas essas limitações talvez me tenha permitido adquirir determinados comportamentos que se revelaram fundamentais, não consigo quantificar.
Uma história com final feliz?
Depois de estudar nós ficamos mais consciencializados daquilo que podemos controlar e daquilo que não podemos. E eu a juntar a isso, comecei a jogar com 10 anos, tive um processo de maturação muito tardio, talvez por isso é que tive muita dificuldade na formação. Cresci muito depressa, não tinha força, não tinha equilíbrio, não tinha coordenação, fruto da minha maturação tardia. Com 14/15 anos era menino, com 16/17 é que passei a adolescente e isso teve uma grande influência naquilo que foi a minha formação. Por isso foi uma sorte monstruosa ter dado o primeiro trambolhão quando saio do Oliveira do Bairro. Eu caio do Oliveira do Bairro, não é do Sporting ou do Braga. Qualquer um pensaria que não tinha jeito nenhum para isto e desistia mas depois nós vamos construindo e as coisas vão acontecendo. Isto tem muito trabalho, muita dedicação mas tem que ter muita dose de sorte também. Mas o normal era não acontecer.
– Passes Curtos –
Qual é para ti o melhor momento da tua carreira?
Ser internacional A.
Um estádio?
O primeiro impacto, Estádio da Luz. Fui lá jogar pela Académica e só o túnel que tinha para chegar ao campo intimidava logo.
Qual foi o jogador com quem mais gostaste de jogar?
Van Hooijdonk.
Qual foi o guarda-redes que mais confiança te transmitia?
Paulo Santos.
Qual o defesa mais difícil de enfrentar? E o que mais gostavas de ter na tua equipa?
(risos) Ai, o defesa. Joguei com eles tão bons, Jorge Andrade, Jorge Costa, Naybet. Tenho uma fotografia no jogo Bétis-Deportivo em que estou a receber a bola e tenho os pitons dele ao nível da minha cabeça. O que mais gostei de ter na minha equipa diria o Nem.
Qual o médio que mais gostavas de ter a dar-te jogo?
Madrid.
Qual o avançado com quem mais gostaste de jogar?
Miguel Bruno.
Qual o treinador que mais te marcou?
Jesualdo Ferreira.
Qual o melhor golo da tua carreira?
Académica-Braga, 2005/2006, o segundo golo. Estou descaído para o lado esquerdo, o Castanheira recebe orientado para a frente, eu faço uma diagonal de dentro para fora e ele bate-me a bola junto à linha. Eu sou mais rápido que o Andrade, numa primeira fase, ele fica batido e vai para dentro e é o Zé Castro que me vai fazer a dobra. Quando ele vai fazer a dobra, eu passo-lhe a bola pelo meio das pernas, já estou dentro da área, e vou buscar do outro lado. Sai o Pedro Roma, toco para o lado, salto por cima dele e já com a baliza aberta remato."
Jogadores Que Admiro #114 – Jan Oblak
"Ser guarda-redes não é fácil. Raramente se é o herói, raramente se é o melhor jogador em campo. Isto, claro, a não ser que sejas Jan Oblak.
A posição de homem mais recuado no terreno de jogo é das mais complicadas dentro das quatro linhas. O papel de um guardião é bastante subvalorizado, uma vez que quando se ganha, normalmente é porque o “avançado matador” da equipa colocou a redondinha no fundo das redes, e as inúmeras defesas que o guarda-redes fez acabam esquecidas. No entanto, se a equipa perder 1-0 com um “frango”, a culpa da derrota cairá, provavelmente no homem entre os postes e escassas serão as vezes que a culpa será do avançado que não converteu duas ou três boas oportunidades.
É por isso que ser o homem da baliza é uma das posições mais complicadas no mundo do futebol, e é também por isso que é uma das posições que mais me fascina.
Já que falamos em fascinar, falo-vos de Jan Oblak: que espectáculo de guarda-redes, uma verdadeira “besta” dentro da área. Jogador completo, muito bom com as mãos, reflexos impressionantes e um jogo de pés acima da média. Isto é Oblak, um guarda-redes que se já não o é, tem potencial para se tornar no melhor guarda-redes do mundo.
Natural da Eslovénia, Oblak chegou ao futebol português pelo SL Benfica, ainda que tenha sido emprestado nas primeiras três temporadas ao SC Beira-Mar, SC Olhanense e UD Leiria e Rio Ave FC.
No clube de Vila do Conde, Oblak destacou-se, tendo disputado 31 jogos, o que chamou a atenção do Benfica, que o fez regressar à Luz na temporada seguinte.
Nos encarnados, Jan tinha a concorrência de Artur Moraes, no entanto o brasileiro lesionou-se no jogo frente ao Olhanense, na temporada de 2013/14, e para o seu lugar entrou o esloveno.
A verdade é que o guarda-redes de 188 cm assumiu o lugar que havia ficado vago e tornou-se na primeira opção para Jorge Jesus. Nessa temporada, Oblak foi o responsável pelas redes do glorioso em 26 partidas e sofreu apenas seis golos, distribuídos por quatro jogos. Com o Manto Sagrado, o guardião conseguiu uns impressionantes 22 jogos sem que a bola entrasse na sua baliza (em 26 jogos!). Algo de incrível.
Na temporada ao serviço das águias ajudou a conquistar o campeonato nacional, a Taça de Portugal e a Taça da Liga. Um triplete que poucos têm. Ajudou também o Benfica a chegar à final da Liga Europa que acabou por perder para o Sevilla FC (de Beto!) nas grandes penalidades.
A temporada chegava ao fim e o Atlético de Madrid chegou-se “à frente” com 16 milhões de euros e levou o esloveno da Luz.
Por terras espanholas, Oblak deu-se bem, muito bem! No seu palmarés conta com uma Supertaça de Espanha, uma Liga Europa e uma Supertaça Europeia. Foi também finalista da Liga dos Campeões, onde perdeu para o Real Madrid CF, em 2015/16, nas grandes penalidades.
Com 27 anos e muita, muita qualidade, certo é que Oblak ainda tem muito para dar ao mundo do futebol. Como guarda-redes, a sua margem de progressão ainda não terminou. Assim, coloca-se a questão: será Oblak capaz de se tornar, indiscutivelmente, o melhor guarda-redes do mundo? Sim, penso que sim!"
Cada um dá o que pode
"A PJ disponibilizou uma assoalha a Rui Pinto. É uma prática corrente. Já o FC Porto disponibilizara uma assoalhada no seu estádio para 'armazenar'' o que foi roubado pelo 'hacker' ao Benfica, tal como revelado em Tribunal por Diogo Faria, funcionário do clube
Surpreendeu-me, confesso, o pouco menos do que fugaz folguedo registado nos centros de pensamento que mais pugnaram pela entronização de Rui Pinto depois de ser pública a alteração da medida de coacção que lhe foi aplicada. O 'hacker', que estava em prisão preventiva há 13 meses, foi posto agora em prisão domiciliária numa assoalhada disponibilizada pela Polícia Judiciária. A disponibilização de assoalhadas neste é caso é uma prática corrente visto que já o FC Porto disponibilizara uma assoalhada no seu estádio para 'armazenar' o que foi roubado ao Benfica, tal como foi relevado em tribunal por Diogo Faria, funcionário do clube. Segundo Faria, o FC Porto disponibilizou-lhe não só a assoalhada como também um computador que 'estava apenas acessível a si e a Francisco J. Marques', que era e ainda é o director de comunicação da casa. A diferença maior entre a assoalhada agora disponibilizada pela Polícia Judiciária a Rui Pinto e a outra assoalhada disponibilizada pelos receptores do material roubado é não haver computar 'à mão' na assoalhada da PJ.
Obviamente, 'à mão' de Rui Pinto, cuja libertação vinha sendo exigida por uma legião de admiradores indignados pelo facto de o acervo surripiado e o respectivo surripiado serem chamados 'a colaborar com as autoridades'. Por tudo isto, volto a confessar, surpreendeu-me a ausência de um clamor de satisfação tendo em conta que a notícia da alteração da medida de coacção - da prisão preventiva para a domiciliária - veiculava ainda que Pinto passaria a colaborar com a Justiça tal como parecia que era pretendido por muitos dos seus admiradores e por ele próprio desde o dia em que nasceu.
Lá parecer, parecia, mas o despacho da juíza de Instrução Criminal veio desfazer o pequeno engodo. A juíza explicou a alteração das medidas e a colaboração com a Justiça por força da alteração do estado de espírito e da disponibilidade de Rui Pinto para o efeito. Ora leiam com atenção esta frase singela e, porém, tão desmistificadora: 'O arguido inverteu a sua postura, apresentando agora um sentido crítico e uma disponibilidade para colaborar com a Justiça'. A palavra 'agora' tem, de facto, muita força assim como o verbo 'inverter' e tudo isto junto esclarece com cabimento como Rui Pinto depois de sofrer as agruras de um ano de prisão efectiva resolveu (finalmente!) disponibilizar-se para colaborar nos termos em que o Ministério Público entende ser profícua, republicana e democrática a sua colaboração. Que colabore bem. Que dê tudo. Cada um dá o que pode.
O Benfica, por exemplo, doou ao Serviço Nacional de Saúde 1 milhão de máscaras cirúrgicas, 1 milhão e 800 mil pares de luvas descartáveis, 173500 máscaras de protecção, 2620 óculos de protecção, 2620 fatos de protecção, 778 termómetros infravermelhos e 6 ventiladores. Ainda está tudo em armazém. E em armazém legítimo. Cada um dá o que pode."
“No Benfica, o Fernando Santos virou-se e disse-me: ‘Essas merdas dessas palhaçadas que te pões a fazer, tens de deixar de fazer isso, pá’”
"Aos 36 anos, Nélson assume que vive há quase dois em exclusivo para os três filhos. Com a rotina instalada em Espanha, de onde não pensa sair, diz que gostava de ser treinador de crianças e que está a preparar-se para isso. Nesta viagem ao passado recorda as dificuldades que sentiu no início de carreira, quando chegou a Portugal, altura em que chegou a viver sem água, sem luz e a ir para os treinos sem tomar o pequeno-almoço. Fala da importância que treinadores como Jaime Pacheco ou Fernando Santos, entre outros, tiveram no seu amadurecimento e da fortuna que gastou a tentar recuperar o pai que ficou tetraplégico após uma queda. Lembra ainda os anos felizes que passou no clube do coração, o Benfica
Nasceu em Cabo Verde. Quem era a sua família?
O meu pai era funcionário da Shell, abastecedor de avião, e a minha mãe era doméstica. Eu sou o mais novo de 17 irmãos. Da parte da mãe, tenho cinco irmãos, da parte do pai, 12.
Foi criado por quem?
Eu vivia com a minha mãe e com o meu pai, porque eu sou filho do último matrimónio do meu pai. Vivi com ambos até aos meus 12, 13 anos, altura em que se separaram e continuei a viver com o meu pai porque a minha mãe foi quem saiu de casa. Ele é que praticamente me educou, mas estava todos os dias com a minha mãe.
Viveu em Cabo Verde até que idade?
Até aos 17 anos.
Quando se fala da infância, qual é a primeira coisa que lhe vem à cabeça?
Sinceramente, são os momentos bonitos que vivi no meu bairro, com os meus amigos, na Palmeira, uma zona piscatória da ilha do Sal.
E o futebol, claro, começa aí na rua.
Sim, com as equipas de bairro, de meninos, de crianças, e na escola.
Quando era pequeno torcia por que clube?
Pelo Benfica. O meu pai era fanático pelo Benfica e todos os meus irmãos são do Benfica. Só tenho um irmão que é do Sporting [risos], o resto é tudo do Benfica.
Quem eram os seus ídolos?
O meu grande ídolo sempre foi o João [Vieira] Pinto. Era a minha referência porque jogava a avançado, era o número 10. Na época alta do Benfica quando eu era criança, lembro-me que só se falava dele e do Rui Costa. Tive a oportunidade de jogar com o João e nem imagina a alegria que foi.
O seu sonho sempre foi ser futebolista?
Sempre. Desde pequenino que tive a bola na minha cabeça, sempre disse que era um dom que Deus me deu. Na escola os professores diziam: "Nélson, tu sabes que em Cabo Verde isso é difícil". Falavam que era uma coisa quase impossível mas eu sempre tive uma convicção muito grande.
Gostava da escola?
Eu ia para a escola porque era obrigado, preferia estar na rua a jogar à bola [risos].
Havia alguém na família ligado ao futebol?
O meu pai foi jogador na minha zona e sempre me disseram que era bom jogador. Nunca tive oportunidade de o ver jogar porque temos uma diferença de idade muito grande. Salvo erro, o meu pai tinha 40 ou 42 anos quando eu nasci. Tenho um irmão mais velho que também jogou futebol, mas profissionalmente fui o único. Na minha terra era complicado na altura.
Qual foi o primeiro clube onde jogou?
Com 15 anos estava a destacar-me em Cabo Verde, na minha equipa de bairro. Lembro-me que o Portimonense foi lá fazer uns jogos amigáveis e já me queria trazer para a formação. Mas fui depois fui jogar para o Palmeiras. Fui campeão pelo Palmeiras e revelação da ilha do Sal antes de ir para Portugal.
Quando o Portimonense o quis trazer, não veio porquê?
O meu pai não me deixou, eu tinha 15 anos. Dois anos depois comecei a fazer a minha primeira época como federado. Puseram-me na equipa da zona, o Palmeiras, e comecei a ser conhecido a nível nacional em Cabo Verde. Tinha um amigo meu, o Pulidio Brito, que jogava na selecção de Cabo Verde e que falou bem de mim ao seleccionador. Começaram a observar a ilha do Sal e então o seleccionador Óscar Duarte conseguiu trazer-me para Portugal, para uma equipa que se chamava Vilanovense, em Gaia, porque ele tinha contactos no Porto. Foi quando fui fazer uma experiência na equipa do Vilanovense.
Veio sozinho?
Sim.
Ficou a viver onde?
Num lar que o Vilanovense tinha. Era uma casa onde vivíamos sete jogadores das camadas jovens. Portugueses, brasileiros, angolanos, etc.
Foi muito difícil a adaptação a Portugal?
Foi muito difícil porque estava sozinho, acabava de ser pai, fui pai com 17 anos, deixei a minha filha, a Nelice, com uma semana de vida, e não imagina o que eu senti naqueles dias. Chorava diariamente. Deixei a minha mãe, o meu pai, os meus irmãos, foi muito complicado para mim, sinceramente.
Chegou a pensar em voltar para Cabo Verde?
Quando o sol desaparecia e era hora de estar na cama, tranquilo, chorava. Batiam as saudades. Era muito convicto daquilo que queria e daquilo que ia fazer a Portugal, por isso quando estava a treinar não me lembrava de nada, só queria desfrutar e sentia que estava a viver um sonho. Era um momento de descontração, sentia que estava no meu mundo, sempre foi o meu sonho e só o jogar na relva já me fazia sentir realizado [risos]. Só quando chegava à noite é que me vinha abaixo, começava a lembrar-me da minha família…
Ficou no Vilanovense dois anos.
Sim, passados dois anos, o Vilanovense tinha muitos problemas financeiros e o meu pai é que teve de mandar dinheiro para eu ir de férias ver a família. Os meus irmãos disseram ao meu pai para não me deixar voltar, mas eu disse-lhes: "Vocês não vão me vou dizer quando é que eu vou embora ou não. É assim que eu quero, sei porque é que fui para Portugal e vou voltar”. E voltei mesmo contra a vontade deles.
Quando regressou a Cabo Verde, a sua filha reconheceu-o?
Claro, porque eu falava com ela constantemente. E com a minha mãe e a mãe dela. E sempre que ia lá tentava estar todos os dias o máximo de tempo com ela, porque durante seis anos seguidos só a via uns 15, 20 dias ao ano.
Estreia-se como sénior no Vilanovense?
Sim, eu treinava com os seniores e jogava com os juniores. Passados três meses de ter chegado, o Vilanovense foi para um torneio internacional de sub-20 em Itália, e eu fui. Fiz bons jogos e a Roma mostrou interesse em mim. Quando regressámos, em Fevereiro, a Portugal, o Vilanovense pôs-me na equipa principal e foi quando eu comecei a jogar.
Tinha empresário?
Não. Supostamente o meu empresário foi quem me trouxe para Portugal, mas o gajo deixou-me aqui. Trouxeram-me e deixaram-me aqui... Enfim, só tive empresário quando fui para o Salgueiros.
E como é que vai para o Salgueiros?
Foi uma história muito curiosa, porque nós passámos por tantas dificuldades... As pessoas não têm noção, para chegar aonde se chega, das dificuldades por que tu passas. Tinha um colega no Vilanovense, o Edu Castigo, que tinha um empresário, o Caldeiras, que trabalhava com o senhor Libório, que esteve na formação do Boavista muito tempo. Ninguém me conhecia mas sempre gostei muito de ver os meus jogos em casa e por isso tinha alguns DVDs com jogos meus. Tinha mais dois anos de contrato, mas o Vilanovense não nos pagava, estivemos nove meses sem receber, e esse amigo disse-me: "Vou apresentar-te ao meu empresário, ele vai ajudar-te". Eu nem tinha dinheiro para ir de autocarro, foi o empresário que pagou o autocarro de Gaia para as Antas. Depois levou-me para o escritório dele, viram os meus DVDs e disseram-me que iam tentar ajudar-me. Eles conheciam o treinador do Salgueiros na altura, que era o Norton de Matos, e convenceram o Norton a levar-me para lá, sem ninguém me conhecer bem. E foi assim que fui parar ao Salgueiros.
Nesse tempo todo que esteve no Vilanovense sem receber vivia de quê?
A nossa sorte era que o motorista do Vilanovense tinha um restaurante e ele é que nos dava de comer, porque o Vilanovense pagava-lhe no final do mês. Mas também deixou de lhe pagar e ele mesmo assim dava-nos comida grátis. Só que como o pequeno-almoço tínhamos de pagar, muitas vezes nós íamos treinar sem tomar o pequeno-almoço. Só tínhamos o almoço e o jantar porque era o motorista que nos dava. Por isso é que para ir de férias a Cabo Verde, teve de ser o meu pai a pagar.
No Salgueiros a realidade é completamente diferente?
Sim, muito diferente e o Salgueiros estava numa situação delicada porque não tinha estádio, o clube não estava tão estável, mas sempre era o Salgueiros, uma equipa que estava a lutar para voltar à primeira divisão. Tínhamos uma boa equipa e comecei a destacar-me nos treinos. O Norton começou a dizer: "Fogo, tem um pedaço de jogador aqui". Ele não me meteu logo ao início, porque dizia que eu não tinha experiência. Mas depois de ter jogado o primeiro jogo e o segundo jogo, destaquei-me e ele apostou em mim, nunca mais saí da equipa e fiz uma época muito boa. Fui a revelação da segunda liga e o Boavista contrata-me.
Foi viver para onde?
Fui viver para Leça da Palmeira.
Sozinho?
Não, o dinheiro não era tanto para pagar a renda. Tinha uma prima que vivia no norte com o marido e eles ajudaram-me. Fui viver com eles, ajudava-os a pagar a renda da casa e a comida. Tínhamos um vizinho que jogava comigo, o Madureira, acho que o pai dele era guarda-redes, e ele é que me levava todos os dias para o treino porque eu não tinha carta.
Quando chega ao Boavista o treinador era o Jaime Pacheco. Notou muita diferença dele para o Luís Norton de Matos?
São totalmente diferentes. O Norton era mais filosófico, um treinador busca talentos e o Jaime forma-te como jogador mais maduro e como homem também. A mim fez-me amadurecer muito. Eram totalmente diferentes.
Fê-lo amadurecer como?
Eu era muito inocente na hora de competir. Era muito novo, era um jogador que tinha muita habilidade e, por exemplo, o Jaime não me permitia fintar atrás. Era um risco que eu corria e ele fez-me ser mais maduro nesse aspecto, na hora de tomar decisões. Já com o Norton, não. O Norton dizia: “Tenho que explorar tudo o que tu tens”. Ou seja, dou-te liberdade total, não te preocupes, tens aqui o Nilton para te cobrir as costas. Mas ali era a primeira divisão e jogar numa equipa como o Boavista também era uma grande responsabilidade. O Jaime, nesse sentido, fez-me amadurecer muito e no princípio nem jogava, só no final é que acabei por jogar com ele.
Notou muita diferença da primeira para a segunda liga?
Sim, muita. Quando cheguei ao campo do Boavista, estava todo a tremer. A tremer quando entrei no estádio e quando fui falar com o presidente. Estava todo tímido e a tremer [risos]. Na minha conferência de imprensa, o presidente até começou a brincar comigo para eu descontrair, porque eu nem conseguia falar [risos]. E notei uma diferença brutal. O Salgueiros nem estádio tinha, jogávamos no estádio do Mar, que era o estádio do Leixões.
Ainda se lembra do seu jogo de estreia pelo Boavista?
Perfeitamente. Estava no banco e acho que o Frechaut se lesionou e a equipa estava a perder, 1-0, salvo erro, contra o Gil Vicente. O Jaime tirou o Frechaut e meteu-me. Foi quando comecei a desfrutar um pouco daquele ambiente e da primeira divisão.
Aí também lhe tremeram as pernas ou não?
Não, dentro do campo nunca me tremeram [risos], sinceramente. Foi o contrário, eu estava a vibrar naquele momento, estava a vibrar muito, porque eu sempre fui atrevido e sempre gostei de clubes grandes, então estava a sentir-me realizado, estava a sentir como se estivesse a viver um sonho, estava a desfrutar muito. Quando me meteram no campo, sabes quando podes correr 90, mais 90, e não te cansas? Eu era assim porque desfrutava cada momento, até nos treinos também desfrutava cada momento porque a minha vida mudou da noite para o dia.
Como se dá a passagem para o Benfica, logo na época seguinte?
Nós estávamos a treinar, o treinador era o Brito. Foi o Jaime, depois contrataram o Brito e nós estávamos na pré-época. Havia um secretário técnico, não me lembro do nome... Victor, era brasileiro. Um dia, depois do treino, fomos almoçar e ele disse-me: "Se tivesses oportunidade de ir para um grande, para onde ias? Para o Benfica ou para o FC Porto?" E eu: "Se tivesse de escolher, escolhia o Benfica, que mais podia ser?" [risos]. Passado uma semana, vem ter comigo o João Freitas e diz-me assim: "Nélson, sabes que tens de ir fazer o passaporte não sabes?"; Tenho de renovar o passaporte, mas porquê?"; "Porque nós vamos tratar da tua nacionalidade". Um dia depois do treino, almocei, depois fui descansar porque tínhamos treino à tarde e veio o Paulo Gonçalves buscar-me: "Nélson, vem, tens de ir renovar o passaporte, a Federação está interessada que tu tenhas nacionalidade portuguesa para jogares" e meteram-me no carro. Eu não conhecia Portugal, não conhecia nada, nem o Porto, e já estávamos a andar há uma hora de carro e perguntei: "Ó Paulo para onde estamos a ir?" E ele: "Sabes onde vais, não é?" E eu: "Como?" Comecei a desconfiar e a ficar com água nas mãos. "Vais para o Benfica"; "Como?!?" [risos]. Foi assim, pegaram-me de surpresa e levaram-me directamente para o estádio da Luz. Quando lá entrei, ali sim é que foi uma tremedeira, nunca me senti tão nervoso na minha vida, até aquele momento. E quando lá cheguei encontrei-me com o Veiga e com o senhor Shéu, assinei o contrato e fiquei em Lisboa com o Paulo. No dia seguinte foi a minha apresentação.
Ficou a viver onde e com quem?
Aluguei uma casa e veio viver comigo um primo que já estava a viver comigo no Boavista. Ele era cozinheiro de barco e tinha um amigo que estava sempre connosco. Quando vim para o Benfica convidei esse amigo para viver comigo. Como ele cozinhava e tinha carta de condução, ajudou-me muito.
Como é que foi quando entrou pela primeira vez no balneário do Benfica?
Sinceramente, quando entrei no balneário não fiquei tão assustado. Porque antes de ir para o Benfica tive uma conversa com o João Pinto. Ele jogou comigo no Boavista e então sentei-me a falar com ele, quando tive de voltar ao Porto para ir buscar as minhas coisas.
O que lhe disse o seu ídolo?
"Olha, Nélson, tu não te preocupes, és o mesmo jogador, és igual a eles. Vais lá e vais fazer aquilo que estavas a fazer aqui, tu és igual a todos eles que estão lá, percebes? E não te vais intimidar por nada, nem por ninguém". Sinceramente sempre foi assim, mas essa conversa de uma pessoa que foi o meu ídolo, que jogou na selecção, no Benfica, fortaleceu ainda mais aquilo que era a minha personalidade. Quando cheguei no balneário também tive sorte porque encontrei jogadores internacionais, como o Petit. O Paulo já tinha falado com ele para cuidar de mim também. Foi das pessoas que me pôs mais à vontade e depois comecei a ganhar confiança com todos eles, com o Nuno Gomes, o Simão, tinha um bom trato com todos.
Como era a abordagem do Koeman? Gostou dele?
Gostei dele como treinador, porque apostou em mim, mas no final já não gostei tanto [risos]
Porquê?
Porque ele deu-me a entender que eu era imaturo e havia desconfiança. Porque nós fizemos uma grande Liga dos Campeões e quando chegámos aos quartos-de-final o gajo meteu-me no banco. Respeitei mas fiquei chateado. Lembro-me que eliminámos o Liverpool e nos quartos-de-final jogámos com o Barça e eu não joguei esses jogos porque preferiu meter um central, para jogar com três centrais, em vez de me utilizar. Mas, no global, aprendi muito com eles, porque também havia um segundo treinador que era muito bom, um senhor mais velho [Bruins Slot], que tinha sido treinador no Barça, e sinto que aprendi muito com eles. Foi o meu primeiro ano no Benfica e é um ano muito bom na Liga dos Campeões, não foi tão bom o campeonato, porque ficámos em 3º, mas guardo boas recordações.
Como é que foi a adaptação a Lisboa?
Não foi difícil, foi fácil, porque também tinha um primo meu que estudava em Lisboa e ajudou-me a conhecer Lisboa. Em Lisboa há muitos cabo-verdianos a estudar, pessoas com quem lidava em Cabo Verde, por isso não foi tão difícil.
É nessa altura que também começam as primeiras saídas à noite ou não?
Claro, com 20 anos não vais sair à noite, como!? [risos]
Mas as noitadas já tinham começado no Porto ou foi mais em Lisboa?
Como todos os jovens, sempre que podia, não tendo a minha família comigo, não tendo ninguém, tinha de buscar forma de me distrair, com os meus amigos, por isso sempre que tinha folga e podia, saía com os meus amigos e ia divertir-me, sem problema nenhum.
Nunca teve problemas por causa disso?
Tive um problema no geral, porque lembro-me que uma vez, no Benfica, quando a equipa não estava bem, o presidente [Luís Filipe Vieira] chamou-me particularmente para me chamar à atenção porque lhe disseram que eu andava a sair à noite. Não neguei nada, disse-lhe que sim. "Sim, saio, mas saio quando sei que amanhã não vou treinar". E ele: "Mas não tens de fazer isso, porque estás no Benfica, o Benfica é uma instituição muito grande e vocês são exemplos, e se as pessoas te encontram na rua vão tentar chatear".
Não teve mais nenhum problema com isso, nem com o Koeman, nem com o Fernando Santos, no ano a seguir?
Não. Com o Fernando Santos também não tinhas tempo para nada porque estávamos em três competições. Isso foi no terceiro ano.
Como é que foi a segunda época no Benfica com o Fernando Santos?
O Fernando Santos comigo "era muito chato" [risos], porque dos titulares eu era o mais novo e era a quem ele chamava à atenção, para corrigir muitas coisas. Foi dos treinadores que mais me ensinou o que era jogar futebol, o que era competir. Ainda há pouco falámos do Jaime Pacheco, que começou a fazer isso comigo, o Fernando Santos deu continuidade. Lembro-me como se fosse hoje, nós ganhamos 2-0 ao Sporting e eu para mim: "Eish, que grande jogo fiz", todo contente a brincar com os meus colegas quando estávamos a ver o resumo. No dia depois do jogo, fomos treinar, o Fernando Santos chama-me à parte e corrige-me coisas do jogo, defensivamente falando. Depois chegou um momento em que disse: “Essas merdas dessas palhaçadas que te pões a fazer, tens de deixar de fazer isso, pá". Assim, de forma simples [risos]. "O futebol é básico, o futebol é objectivo". Não sei se se lembra de mim a jogar, mas quando eu jogava era muito divertido, era muito aquele típico jogador africano que gostava de fintar.
Foi nessa época que marcou o golo ao Manchester United, de que hoje ainda se fala?
Sim, foi. Ficou-me marcado por dois motivos. Por jogar na Champions, por ser no estádio do Manchester e também porque eu estava a passar por uma fase muito complicada da minha vida, porque o meu pai teve um acidente em Cabo Verde, ficou tetraplégico e ele estava comigo em Portugal, eu tinha-o trazido para uma clínica para recuperar. Lembrei-me logo dele quando fiz o golo e chorei.
Como é que o seu pai ficou tetraplégico?
Caiu desamparado, porque se sentiu mal, partiu a cervical e ficou tetraplégico. Passado sete anos, morreu.
Nesses sete anos esteve sempre na clínica ou esteve consigo?
Esteve na clínica durante três anos, depois mandei-o para Cuba, onde havia muitos especialistas nessa área, esteve lá um tempo mas viu-se que não podia recuperar e ficou muito mal quando voltou a Portugal, já só queria morrer. Eu já estava em Espanha nessa altura, falava com ele para ver se ele se animava, mas ele nem queria comer. Deu-se continuidade ao tratamento em Portugal, mas os médicos disseram-me que o que eu estava a fazer era gastar dinheiro, porque ele estava numa clínica privada onde eu pagava todos os meses 12, 13 mil euros. Então ele foi para Cabo Verde. Preparámos toda a casa dele para ter as condições de lá estar e passado, salvo erro, quatro anos, faleceu.
Voltando à carreira, o terceiro ano no Benfica foi mais complicado. Teve três treinadores...
Sim, foi um ano complicadíssimo para mim. E digo-lhe porquê. Quando o Fernando Santos começou a segunda época, passados dois jogos ou assim, foi-se embora. Lembro que empatámos no Bessa e ele foi embora antes de fechar o mercado de agosto. Eu tinha uma oferta do Aston Villa para sair. Tinham vindo em dezembro e depois voltaram em julho. Depois chegou o Camacho, que disse que contava comigo, que era um jogador indispensável no Benfica. Eu disse-lhe: "Olha, Camacho, vou contar-te a história que se passa aqui. Eu no ano passado falei com o presidente, que tinha oferta, ele sabia perfeitamente que eu não estava contente com o meu salário no Benfica e passaram-se umas quantas coisas que não foram do meu agrado. Eles ofereceram-me um aumento de salário mas não cumpriram com isso. Eu não estou contente e tenho esta oferta, que é boa para o clube e para mim. Vê lá se me podes ajudar com isso". E ele responde: "Ó Nélson, tranquilo, és importante para mim, vou falar com o presidente e em 20 dias resolvemos a tua situação". Fiquei no Benfica, perdi uma grande oferta, tudo porque eu queria continuar no Benfica.
E melhoraram-lhe o salário?
Não. Resolvi ficar no Benfica por dois motivos. Porque já lá estava há três anos, era um dos jogadores mais importantes do clube e sentia que podia fazer a minha carreira no Benfica, porque é a minha equipa. Mas afinal fiquei e não se resolveu nada, o Camacho foi-se embora, veio o Chalana e no final da época o Benfica chamou-me para renovar o contrato, só que a oferta que eles me fizeram não era o correto e no final eu e o meu empresário falámos com o Benfica para buscar a melhor solução. A melhor solução foi sair. É quando venho para o Betis.
Ainda tinha quantos anos de contrato com o Benfica?
Dois anos.
Que tal Espanha? Foi sozinho, foi com alguém?
Falei com o tal meu primo que era cozinheiro nos barcos. Apesar de ser primo é como se fosse pai, é muito mais velho do que eu, cuidava bem da casa, era um bom cozinheiro, então falei com ele. Ele aceitou a proposta que eu lhe fiz para vir viver comigo. Era ele que cuidava de tudo, dos deveres de casa, ele é que organizava tudo. E ficou a minha mãe em Portugal com a minha filha.
A sua filha foi viver consigo quando estava no Benfica?
Sim, como já tinha possibilidade de ter a minha família, trouxe a minha mãe e a minha filha. Ela chegou a Lisboa e passado um ano eu vim para Espanha. Não quis trazê-la porque eu vim sozinho, só com o meu primo. Como ia viajar muito, preferi deixá-la adaptar-se a Portugal. Ficou lá com a minha mãe e eu sempre que tinha folga ia a Lisboa vê-las.
Como é que foi a adaptação a Sevilha e ao clube?
Foi muito boa. Cheguei a um clube onde era muito respeitado, os adeptos simpatizaram muito comigo, então foi muito fácil.
Notou muita diferença ao nível futebolístico?
Sim. O nível do jogo, a qualidade do jogo era muito maior, não tinha comparação com o campeonato português. Muito mais competitivo. Aqui em Espanha todas as equipas têm um nível alto. No Betis quase todo o 11 inicial era formado por jogadores internacionais.
Houve algum jogador que o tenha ajudado mais e com quem tenha criado amizade?
Sim, o Ricardo simpatizou muito comigo, tivemos uma boa amizade, ia comer na casa dele com a sua família. E há um outro jogador com quem me identifiquei, que é um amigo meu, o Emana, que era o número 10 da selecção dos Camarões. Mantemos amizade até hoje, ele vive aqui também em Espanha.
Teve duas épocas no Betis que lhe correram muito bem.
Individualmente fiz uma boa primeira época muito boa, voltei à selecção através do Carlos Queiroz. Mas infelizmente foi um ano em que o Betis desceu de divisão. Vim para um clube com muita ambição, um clube grande em Espanha, fizeram uma equipa para ir à UEFA mas acabámos por descer de divisão por um ponto.
E na 2ª liga espanhola como foi?
O clube estava a passar por um momento de crise financeira, o presidente e dono do clube teve de sair porque o clube tinha muitos problemas financeiros. Obrigaram-no a sair. No terceiro ano chegou um novo treinador, que já conhecia a casa, porque tinha sido jogador do Betis. No princípio da época, quase a terminar as inscrições, apareceu o Osasuna e eu queria jogar outra vez na primeira divisão, porque seriam já dois anos na segunda e ia perder quase todas as oportunidades de voltar à selecção. Falei com o clube e fui para o Osasuna, onde fiz, para mim, a melhor época aqui em Espanha. Mas infelizmente tive uma lesão muito grave e estive um ano parado.
Que lesão foi essa? Como é que aconteceu?
Foi num jogo contra o Sevilha, numa entrada fiquei com o pé preso no chão e o jogador do Sevilha em vez de chutar na bola, chutou-me no pé, e fiz uma luxação completa. Estive um ano para recuperar. Perdi outra vez a oportunidade de ir à selecção.
Ou seja, depois do Osasuna tem mais uma época e meia no Betis, mas praticamente sem jogar.
Sim, estive quase um ano sem jogar porque estava a recuperar da lesão e no segundo ano joguei só até Outubro, se não me equivoco. Fui jogar um dérbi, perdemos 5-1, e eu estava numa fase muito delicada no Betis, porque estava no final do contrato e se eu fizesse 20 jogos renovava automaticamente. Nessa altura eu era o jogador que mais ganhava no clube. O Betis tinha um limite de salário e eles estavam a arranjar uma forma de eu sair porque não queriam pagar aquela quantidade que eu ganhava. Então, no meu ponto de vista, eles aproveitaram um jogo do Sevilha, quando eu já tinha 15 jogos feitos, e crucificaram-me e tiraram-me da equipa, afastaram-me. Começaram a fazer pressão para sair. Tive umas ofertas para ir para o estrangeiro mas a que me pareceu mais normal foi a do Palermo. Fui pai em dezembro, do Angel, e segui para Itália.
Como conheceu a mãe do seu filho?
Quando estava a jogar no Osasuna. Eu vinha sempre para Sevilha e conheci-a num grupo de amigos. Temos dois filhos, mas estamos separados.
Assistiu ao nascimento do seu filho?
Sim, tenho gravado e tudo. Do segundo é que não, porque estava destacado a jogar no Alcorcón.
Já lá vamos. Então o Angel nasceu em dezembro de 2012 e o Nélson vai para Itália. Gostou de Itália e dos italianos?
Sinceramente não gostei muito. Não é que não tenha gostado de Itália, mas não me adaptei bem ao clube. Era um clube muito problemático, não tinha estabilidade. Tinha dinheiro, pagava bem mas em termos de organização não gostei nada. Estive lá seis meses e tive três treinadores e dois diretores desportivos. Tive um treinador duas vezes na mesma época. A equipa desce de divisão e eu pedi para ser cedido para Espanha e vim para o Almeria fazer uma época.
O futebol italiano era muito diferente do espanhol?
É um futebol muito mais físico, o sistema de jogo era bastante diferente, mas um jogador tem que se habituar a essas coisas.
Voltou a Espanha e como é que correu essa experiência no Almeria?
Foi uma boa época, mas em dezembro também tive uma lesão e estive dois ou três meses parado. Uma ruptura no menisco tibial, uma ruptura muito profunda. Foi num jogo contra o Betis. Estive três meses parado e o final da época foi muito irregular porque uns jogos jogava, outros não jogava.
Tinha assinado por quanto tempo com o Palermo?
Assinei dois anos e meio. Meio ano fiz quando cheguei, depois fui para Almeria, fiquei mais um ano e no último ano de contrato não queria voltar para Itália. O clube também não queria que eu voltasse porque estava na segunda e eu tinha uma ficha muito alta, entrámos em acordo de rescisão e fui para o Belenenses.
Como surge o Belenenses?
Foi muito engraçada a forma como eu fui para o Belenenses, porque sinceramente não tinha pensamento de voltar a Portugal. Estava de férias no Algarve com a minha família e encontro lá numa discoteca de verão o presidente do Belenenses. Apresentaram-nos, estivemos a conversar e ele disse que eu podia ir para o Belenenses, mas estávamos sempre na brincadeira e no final trocámos números. Passado uns dias ele ligou-me, para saber se eu estava interessado mas que naquele momento o clube não podia pagar muito. Mas que o Lito [Vidigal] estava muito interessado que eu fosse para lá, que eu ia ser muito importante para eles, que tinham um projeto muito bonito. Falei com a minha ex-mulher, ela também gostava de Lisboa, foi mais fácil para mim tomar a decisão e fomos para Lisboa. Sinceramente foi uma época espectacular, tanto a nível pessoal como profissional. Levámos o Belenenses às competições europeias e foi muito gratificante.
Além do Lito Vidigal, teve também o Jorge Simão como treinador. Entre os dois qual prefere?
São diferentes. Estive muito pouco tempo com o Jorge Simão, mas vê-se que é um treinador com muito carácter, que tem umas ideias muito boas de futebol e daquilo que eu gostava, porque ele gostava que eu atacasse, que fosse atrevido. E era muito disciplinado. Gostei muito. O Lito também foi muito importante para mim porque era um dos jogadores de confiança dele e falávamos muito, respeitava-me muito. Também tenho um grande respeito por ele.
Não continuou no Belenenses porquê?
Não chegámos a um acordo. Disse ao presidente: "Quero ficar aqui com vocês mas, como deves entender, tenho estas propostas na mão de Espanha, onde me sinto bem também, vê lá se consegues fazer um esforço para me manteres aqui". Mas não chegámos a um acordo e o Alcorcón fez-me uma boa proposta. Era uma equipa que desportivamente também queria subir de divisão. Falei com a minha mulher, ir para Madrid era uma boa opção e acabei por ir parar ao Alcorcón mesmo sendo segunda divisão. Como disse, a segunda divisão em Espanha é muito, muito forte.
Quanto tempo?
Dois anos de contrato.
Dessas duas épocas o que quer destacar?
A primeira, porque foi uma época espectacular. Fizemos uma boa época, infelizmente, no final, nós estávamos nos primeiro cinco lugares, que davam acesso aos playoffs, mas nas últimas três jornadas deitámos tudo a perder. Mas para mim saiu-me tudo bem. Na segunda época chegámos aos quartos-de-final da Taça do Rei. Foi um momento espectacular porque fizemos história com o Velázquez, que foi treinador do Belenenses. Eu queria ficar lá mas o clube falou comigo, que iam mudar toda a estrutura e não tinham muito dinheiro e eu fui para minha casa. Entretanto fui para o Chipre.
Pelo meio teve mais um filho.
Sim, o meu filho Nelson nasceu em Julho de 2016, estava no Alcorcón.
Como foi o impacto quando aterrou no Chipre?
A sorte é que fui para um clube onde a maioria era espanhola. Director desportivo, treinador, três dos jogadores, por isso a adaptação foi muito rápida. E o Chipre surpreendeu-me muito pela positiva. A minha família estava muito bem adaptada lá, os meus filhos estavam muito contentes.
A sua filha continuava em Lisboa com a sua mãe?
Não, a minha filha, desde que me juntei com a mãe dos meus filhos, veio viver comigo, desde os 13 anos, quando fui para o Almeria.
Ganhou a Taça do Chipre. Porque é que não continua lá?
Mudaram a direcção, mudaram o director desportivo e disseram que tinham de mudar a equipa porque estava com muitos estrangeiros e, não sei porquê, tocou-me a mim.
E depois?
Fui para a minha casa em Sevilha. Passados uns meses separei-me e tive uma oferta para ir para o Dubai. Mas os meus filhos estão em primeiro lugar e então preferi deixar de jogar futebol.
Preferiu deixar de jogar futebol para não estar longe dos seus filhos?
Sim. Terminei a época no Chipre muito bem, fisicamente encontro-me muito bem mas já tinha tido a experiência de separação com a minha filha, foi muito dura e então achei que com 35 anos não me ia aventurar mais a deixar os meus filhos.
Já tinha pensado no que queria fazer depois de deixar de jogar futebol?
Sinceramente não. Até porque não tinha pensado deixar o futebol desta maneira, pensava que iria jogar futebol até aos 40 anos, porque me sinto muito jovem, adoro futebol, adoro o que eu faço e deixar assim... chocou-me muito. Até hoje fico a pensar que podia estar a jogar à bola.
O que foi fazer então?
Neste momento cuido dos meus filhos. A minha vida agora é mesmo cuidar dos meus filhos. Tenho uma namorada, vivemos juntos.
Está assim desde 2018?
Sim.
Os seus filhos vivem todos consigo?
Neste momento vivem comigo mas ainda não temos a definição da custódia dos miúdos, estamos nesse processo. Faço todos os deveres de pai e sinceramente não estou nada arrependido da decisão que tomei de deixar o futebol. Porque a minha vida hoje são eles, é para isso que estou aqui, para lutar por eles, cuidar deles e vê-los crescer, para mim isso é o mais importante.
Como é que é o seu dia-a-dia? Faz ginásio, treina?
Sim, tenho um ginásio em casa. Deixo os filhos no colégio, vou buscá-los, dar de comer, levar outra vez para o colégio e buscá-los novamente para estar com eles em casa ou sair e levar ao parque. Estou a fazer o dever de pai, mas também já tenho um curso de monitor porque adoro crianças e tenho um sonho agora para cumprir que é treinar miúdos, formar miúdos. Esse é o meu objetivo neste momento. Fazer um curso para treinar crianças.
Onde é que ganhou mais dinheiro?
No Betis e no Palermo.
Onde é que investiu o seu dinheiro, em imobiliário, em algum negócio?
Em imobiliário. Sou o tipo de pessoa que pensa que para um negócio tens que estar lá tu. Se não estás, não vai correr bem.
Tem tatuagens.
Muitas [risos]
Qual foi a primeira que fez?
A primeira foi o nome da minha mãe.
E quais são as mais importantes que tem neste momento?
As caras dos meus filhos.
Acredita em Deus?
Sim. Já passei por muitas dificuldades e houve um tempo em que deixei de acreditar. Mas sou fiel, acredito em Deus.
Superstições?
Disso nem tanto.
Qual foi maior extravagância que fez só porque sim, porque podia fazer?
Comprar dois carros em seis meses [risos]. Um M6 e um Porsche Cayenne. Mas já os vendi.
Que outros desportos é que segue ou pratica?
Sinceramente sempre fui focado só no futebol. De vez em quando vejo basquetebol mas o futebol sempre foi o centro da atenção.
Tem alguma coisa que goste muito de fazer, fora do futebol?
Quando estou sozinho, gosto de estar tranquilo a ver videoclipes de música.
Que género de música é que gosta?
Hip hop, kizomba, trash.
Qual foi a maior alegria e a maior frustração da sua carreira?
Foram tantas, mas talvez o único título que ganhei, a Taça do Chipre, num momento muito importante para mim. A maior frustração é não ter ido a nenhuma competição oficial pela selecção. Fiz seis jogos mas foram todos de preparação. Fui chamado umas 13 vezes mas só joguei, salvo erro, seis jogos.
A sua mãe continua em Portugal?
Não, a minha mãe vive comigo desde que me separei.
Vai continuar a viver em Espanha?
É assim, não vou mentir, gosto de Espanha, gosto da qualidade de vida aqui e, à parte disso tudo, tenho os meus filhos aqui, prefiro não sair daqui [risos].
Como está a viver esta situação do novo coronavírus?
Em Espanha os números são assustadores.
Está uma situação muito complicada, há muitos casos, as pessoas estão assustadas mas tentamos entreter os putos da melhor forma em casa.
O que tem sido mais difícil de gerir?
Entretê-los. Tens de improvisar sempre coisas para fazeres com eles. Como sou uma pessoa muito caseira, a mim não me afecta tanto, e o que faço não é nenhum sacrifício, porque gosto de estar com os meus filhos, gosto de vê-los felizes.
Algum deles joga futebol?
Sim, o Angel.
Revê-se nele?
Sim, em algumas coisas, porque ele desde pequenino que adora futebol e não é por ser meu filho, mas parece que tem alguns dons. E todos os dias joga comigo, levo-o para os treinos... Sinto-me muito orgulhoso.
Tem ou teve alguma alcunha?
Alguns chamavam-me Chita por ser um animal muito rápido [risos]. E havia um treinador, o meu primeiro treinador no Betis, que me chamava títere [risos], que aqui em Espanha é um mono, um macaquinho [risos]. Era na brincadeira.
Não tem uma história caricata que possa partilhar?
Tenho uma história de quando cheguei a Portugal, que é muito engraçada. Quando estava no Vilanovense, passava algumas dificuldades, porque o clube não nos pagava. Não tínhamos dinheiro e em casa era um caos, porque uns roubavam comida dos outros no frigorífico [risos] e nos últimos três meses em que lá estivemos, em que eu vivia com os meus colegas de equipa, não tínhamos nem água, nem luz.
Então como é que faziam?
É isso que vou explicar. Para tomar banho, era complicado, tomávamos banho no clube, mas e o resto em casa? A nossa sorte é que vivíamos no Jardim Soares dos Reis, em Vila Nova de Gaia, e perto do nosso apartamento havia uma fonte com água. Quando nós queríamos ir à casa de banho, à noite [risos], pegávamos em baldes e íamos buscar água lá, à fonte [risos]. Os que ficavam em casa, ficavam na varanda, e quando nos viam com os baldes para atravessar a estrada diziam alto: "Olha, eles vão buscar água para deitar na sanita". Agora imagine a gente a correr rápido com o balde, para ninguém nos ver [risos]. Recordamos sempre esta história quando nos encontramos. Por isso valorizo muito tudo o que tenho e os meus filhos, porque não foi nada fácil tudo o que passei. A vida não é nada fácil."