quinta-feira, 9 de abril de 2020

Uma romaria pela Azinhaga dos Alfinentes

"Na edição da Taça de Portugal de 1970-71, o Benfica andou a acumular goleadas até à final surpreendentemente perdida para o Sporting por 1-4. Mais uma vez teve de se cruzar com um clube das colónias: o Independente de Porto Alexandre, a quem a Federação Portuguesa ofereceu casa em Marvila.

Ah! Que bela tarde na zona oriental de Lisboa, Poço do Bispo, Xabregas, Beato, Bairro da Madredeus lá mais ao alto, Marvila...
Gente aos magotes pela Azinhaga dos Alfinetes. Desta vez não era o chamado do Oriental que se ouvia, era o chamado do Benfica, que, como sabemos, às vezes parece ser uma espécie de canto de sereia, ou irresistível como o feitiço de Circe que quase enganou Ulisses.
A malta ia por ali acima, para um jogo curioso, eram sempre curiosos os encontros que traziam à Metrópole os campeões das colónias, para participarem na Taça de Portugal, desta vez coubera ao Independente de Porto Alexandre viajar até à capital do império para enfrentar o Benfica, a Federação Portuguesa de Futebol, convenhamos, não tinha grande paciência para o futebol africano, nem dava possibilidades iguais a esses clubes, fazendo-os disputar as partidas em Portugal Continental, emprestando-lhes um campo para fazerem de conta que jogavam em casa, como era agora o caso do Independente, instalado no Carlos Salema.
Não faltava entusiasmo aos angolanos que vinham lá das areias do Mamibe que chegam até ao mar, hoje em dia Porto Alexandre tem outro nome, como seria de esperar após a independência, é a cidade de Tómbua, e o Independente mediocrizou-se como tantos clubes descentralizados.
Bandeirinhas drapejando ao sopro da brisa do sul. Eusébio no banco, veja-se bem o luxo, Diamantino Costa, José Torres, Artur Jorge e Praia no quarteto ofensivo.
Como seria adivinhável, o entusiasmo angolano não chegou para incomodar demasiado os encarnados. Golo cedo de Torres, logo aos 6 minutos, 2-0 por Artur Jorge, aos 35, e eis as águias a preguiçar sob o sol de Marvila, aborrecendo os espectadores protegidos com aqueles chapelinhos cónicos de cartão e elástico para segurar ao pescoço, uns a boçejar, outros à procura do homem das queijadas e do nougat, finalmente mais alguns e recuperarem o ânimo ao perceberem que Eusébio ira entrar. Entrou mesmo, aos 63 minutos, para o lugar de Messias. A tempo de disparar duas fogachadas que provocaram uns 'ooohs!' de espanto não escutados até aí.

E na volta, houve Eusébio
Essa edição da Taça de Portugal foi das mais estranhas da história do Benfica. Nas duas primeiras rondas, jogadas a um só encontro, viu-se a braços com clubes do Barreiro. No dia 16 de Maio, desmanchou por completo o Luso por 11-0 com José Torres a somar, só à sua conta, nada menos de sete golos. Do quilé!, como diria o meu amigo e mestre Fernando Assis Pacheco. Em seguida, no dia 22, teve de ir ao Campo D. Manuel de Melo, defrontar o Barreirense, e a folia manteve-se: 7-1 com golos de Nené(2), Artur Jorge(2), Vítor Martins, Eusébio e Simões.
Era nessa jornada da competição que os «teams» das colónias entravam em liça. O Ferroviário de Lourenço Marques foi batido pelo FC Porto por 1-4, os infelizes cabo-verdianos do Mindelense levaram para assar do Sporting, com um disparatado 0-21, e só o surpreendente Independente conseguiu a proeza de eliminar o União de Coimbra, por 1-0.
Dia 4 de Junho: eis os angolanos na Luz.
Ninguém esperava outra coisa que não fosse um saco de golos.
Quando o intervalo surgiu, com apenas 1-0 para os encarnados, o povo fez sentir a sua desaprovação. Vendo bem, havia quem estivesse na expectativa de repetir o resultado do Sporting...
O problema é que, com tudo controlado os jogadores do Benfica resolveram jogar  a passo. Apesar de tudo, o toque de calcanhar de Eusébio que deixara Artur Jorge cara a cara com o golo ainda levantou alguns rabos do cimento que fervia de calor.
Osvaldo, o guarda-redes do Independente, era um saltidão. Queria abusar da elasticidade para dar nas vistas, mas, na maior parte dos lances, largava a bola e tinha de ir em busca dela como se andasse a tentar apanhar uma galinha aos ziguezagues Armandinho e Mário José deixaram os bofes em campo e saíram com a língua a rojar pelo chão, mas nada puderam fazer contra o acerto ainda que molengão de Eusébio, que, no segundo tempo, despachou serviço com 5 golos, fixando o resultado em 6-0. Pois, pois... para o Pantera Negra não havia preguiça que lhe tirasse a fome dos golos.
Nas meias-finais, o Benfica eliminou o Tirsense com uma perna às costas: 1-3 em Santo Tirso, 5-1 na Luz.
O percurso fora impressionante: 6 jogos, 6 vitórias, 34 golos marcados. Depois, no Jamor, derrota perante o Sporting por 1-4. Como se tivesse de pagar os custos de, até aí, viver um sossego supremo. Custos pagos com os juros de uma derrota muito dolorosa."

Afonso de Melo, in O Benfica

O jogador que brilhava nos jogos internacionais

"Apesar da baixa estatura, Palmeiro agigantava-se perante equipas estrangeiras

Palmeiro ingressou no Benfica em 1953. O extremo começou por jogar pelas reservas, onde se destacou ao vencer a Taça Imprensa, merecendo a chamada à equipa de honra dos 'encarnados'. A estreia aconteceu a 25 de Dezembro desse ano, num jogo particular frente ao Independente. O nervosismo fez com que não conseguisse demonstrar todas as suas capacidades. Ainda assim, dois dias depois, voltaria a merecer a confiança do treinador Alfredo Valadas, contra o Boca Juniors. Apesar da derrota por 1-0, Palmeiro evidenciou-se e mereceu elogios por parte dos adversários: 'Magnífica equipa do Benfica. Defende-se muitíssimo bem e possui alguns elementos que me agradaram imenso, como o n.º 8 (Palmeiro)'. O jogador agarrou a titularidade e na temporada seguinte contribuiu para a conquista do Campeonato Nacional e da Taça de Portugal, a segunda dobradinha da história Clube.
Rápido, com excelente qualidade técnica, o extremo era encarado como um dos melhores jogadores jovem portugueses, cada vez mais determinante no futebol ofensivo benfiquista. Em Abril de 1956, a imprensa pedia a sua convocação à selecção nacional: 'Se o público e a crítica mandassem, já tinham incluído Palmeiro na selecção, não por mera simpatia, mas por uma questão de direito e justiça'. Poucos meses depois, o seleccionador nacional, Tavares da Silva, concedeu-lhe a primeira internacionalização. Na sua estreia, a 3 de Junho, frente à Espanha, realizou uma excelente exibição e apontou os três golos da vitória dos portugueses por 3-1. A imprensa ficou rendida: 'Palmeiro, o herói deste inesquecível encontro, no seu estilo veloz, ágil e habilidoso, foi admirável do primeiro ao último minuto, afirmando um conjunto de predicados para além do simples elogio de grande vontade e enorme apego, se traduz melhor por uma só palavra - classe'. Ribeiro dos Reis, em A Bola, sintetizou a sua prestação: 'Tirando excelente partido do afundamento do defesa direito espanhol, dobrou-o como quis e pôde caminhar frequentemente para a baliza, espalhando o pânico à sua volta'. O dia tornou-se memorável tanto para o jogador como para a sua família. Orgulhosa, a avó felicitou-o pela fantástica prestação: 'Dezenas de pessoas correram a nossa casa para nos dar os parabéns. Toda a vila vibrou de satisfação e não calculas a alegria e contentamento que deste aos teus queridos pais'.
A 19 de Setembro de 1957, assinalaria outro marco frente a equipas estrangeiras, ao tornou-se no primeiro jogador do Clube a marcar na Taça dos Clubes Campeões Europeus, frente ao Sevilha.
Saiba mais sobre este e outros jogadores do Benfica que representaram as suas selecções nacionais na área 20 - Águias-Mores do Museu Benfica - Cosme Damião."

António Pinto, in O Benfica

Mensagem da capitã de futsal e médica, Inês Fernandes

"É difícil distinguir os dias desde o início desta pandemia, mas sei que há pouco mais de quatro semanas realizei o meu último treino com a equipa, e que também tinha sido o primeiro após uma paragem de duas semanas devido a lesão. Ainda não tinha sido anulada a Final Four da Taça de Portugal Feminina de Futsal, mas a decisão surgiria no dia seguinte com algum alívio da nossa parte. A nossa saúde e a de todos nós em primeiro lugar!
Desde então, a minha rotina aumentou de ritmo e acelerou. Queria agradecer a todos os benfiquistas e adeptos do desporto em geral que me mandaram mensagens pelas diversas redes sociais. Não pude responder a todos, mas estou muito grata e garanto-lhes que estou bem.
Só senti saudades do futsal ontem… quando o Facebook me relembrou do Torneio Europeu de 2018. A vida de atleta tem estado em "standby" e tem sido difícil compatibilizar a flexibilidade dos turnos e as horas de sono alteradas e descontínuas com treinos caseiros para manter a forma.
Em geral, tenho orgulho dos Portugueses! Daqueles que estão na linha da frente: forças de segurança, bombeiros, profissionais de saúde, auxiliares de limpeza e todos aqueles que mantêm o saneamento extra das nossas cidades, camionistas e motoristas dos transportes públicos, voluntários, todos os trabalhadores das superfícies comerciais e das outras indústrias que se desdobram para termos acesso ao material básico para sobreviver e vencer esta epidemia; daqueles que nos bastidores contribuem com o seu empreendedorismo e a sua solidariedade para termos cada vez mais material de protecção individual, dispositivos médicos e capacidade logística para acolher quem está doente; e daqueles que percebem que, às vezes mesmo se não pudermos fazer bem, devemos não fazer mal e permanecermos em casa a respeitar as regras de distanciamento social!!!
Tal como numa equipa em qualquer modalidade colectiva, temos de desempenhar o nosso papel com rigor para ajudar ao sucesso de todos! E tal como qualquer equipa que pretende ganhar uma prova, devemos ser consistentes no nosso trabalho e esforço!
O meu último pedido é nesse sentido, não vacilemos no nosso compromisso até ao final do mês de Abril. Se cumprirmos o distanciamento social e sairmos à rua apenas para o básico e com máscara (seja ela de tecido básico) e lavarmos as mãos frequentemente, iremos ultrapassar esta batalha com a consciência o mais tranquila possível e a sensação que só temos as mortes inevitáveis a lamentar!
Já faltou mais! Cuidem dos vossos!

Inês Fernandes"

José Antonio Camacho | O primeiro do Renascimento

"Muito em voga, os treinadores frontais da nova era continuam sem conseguir reunir em si a integridade de outros tempos, onde a impulsividade não era desculpada com o feitio. A frontalidade e a fúria justa de José Antonio Camacho eram mais que rótulos bacocos: aglomerava o carácter e alma dos grandes, humildade de braço dado com uma dignidade sem paralelo.
No final de 2002, era precisamente de alguém assim que o SL Benfica precisava. Ele estava livre, depois das polémicas na Coreia e Japão, onde a Roja se viu vergada a uma Coreia do Sul impune e apoiada de forma descarada nos bastidores. “As minhas equipas serão sempre como eu: honradas, disciplinadas, sérias e trabalhadoras”, afirmou em princípio de carreira nos bancos, postura vincada e demonstrada no ano e meio que experienciou o Estádio da Luz.
O chamamento do clube do coração catrapiscou-o e permitiu a entrada de Trapattoni, que aproveitou as bases por si criadas para ser campeão. Voltou como D. Sebastião em 2007, mas a velha máxima de que nunca se deve voltar a um lugar onde se foi feliz prevaleceu. O clube estava de pantanas e ele nunca tolerou desorganização e interesses cruzados.
Aquele 24 de Novembro foi farrusco. A chuva que inundava a Luz não ajudava ao futebol pobre da equipa naquela terceira eliminatória da Taça. A depressão era tanta que há quem diga que os adeptos do Gondomar SC estavam em maioria. Eufóricos ficaram com o golaço de Cílio aos 10 minutos: o 0-1 manteve-se até final, fruto da impotência dos titulares e da inépcia de Jesualdo Ferreira, que viria a ser despedido ainda nesse dia.
A Chalana pediram para tomar conta enquanto se ultimavam pormenores em relação ao contrato com o novo técnico – bastou ao Pequeno Genial um jogo para descobrir em Miguel um lateral-direito de estirpe internacional, numa vitória caseira frente ao SC Braga.
Na segunda semana ao comando da equipa, José Antonio prepara-se para realizar o último derby no velhinho Alvalade. Uma exibição contundente permitiu aos encarnados uma vitória clara por 2-0, jogo que servia de premonição do que aí viria: com Camacho, o Benfica estaria sempre mais próximo de ganhar pela sua atitude.
No descalabro da demolição da antiga Luz e da necessidade de andar com a casa às costas, o treinador espanhol foi sempre o farol de competência que permitiu cumprir os objectivos e manter o clube nos mínimos olímpicos. O segundo lugar final de 2002-03 permitiu uma classificação uefeira que já não se via desde 1999-00, marcando o inicio da retoma do clube e do seu prestígio.
A consolidação da espinha dorsal daquele plantel – Moreira, Ricardo Rocha, Petit, Tiago, Geovanni, Simão e Nuno Gomes, à qual se juntou Luisão depois – foi tarefa que levou a cabo com muita dedicação e trabalho, dotando o clube de uma nova identidade que se manteria até finais da década e que permitiu os sucessos seguintes.
Se não chegou para ultrapassar a SS Lazio, na pré-eliminatória da Champions, permitiu uma caminhada digna na Taça UEFA, só bajulando aos pés do Inter de Milão nos oitavos-de-final. A equipa cumpria em solo nacional, conquistando a Taça de Portugal nesse ano e só não almejando mais dada a concorrência do FC Porto de José Mourinho.
A capacidade de trabalho com a qual José António dotou a equipa permitiram a conquista de classificações importantes em termos pontuais: 75 e 74 pontos (respectivamente) que o clube não almejava desde 1995-96 e que permitiriam conquistar o título em 2001-02, 2004-05, 2006-07, 2007-08 e 2008-09, a título de exemplo.
Com todas as dificuldades inerentes à mudança de Estádio e à desorganização total da estrutura, o treinador espanhol teve ainda que lidar com um assunto ultra-sensível como a morte de Miklos Fehér, naquela noite fria de Janeiro em Guimarães.
Teve que ser ele, enquanto líder inquestionável e, a partir daí, figura paternal de todo o staff e jogadores, a entregar a mensagem a todos. Na viagem de autocarro de regresso a Lisboa. No meio de toda a tristeza, conseguiu manter a honra e terminar a época de forma positiva, onde abundaram as demonstrações de afecto e união de todos.
O segundo lugar final, ganho em cima da meta frente ao Sporting CP de Fernando Santos já no novo Alvalade, foi a definitiva prova de superação de um grupo atingido pela tragédia. O futebol, sendo a coisa mais importante das menos importantes, serviu como catarse da tristeza profunda sentida no seio do grupo.
Como sempre, Camacho arregaçou as mangas, determinou todas as vitórias como homenagem a Miklos e puxou pelo brio dos colegas. Só com um plantel psicologicamente blindado e unido como nunca seria possível a vitória no Jamor frente a Mourinho, duas semanas antes de Gelsenkirchen e da conquista portista da Liga dos Campeões.
A competência e o estrondoso trabalho cumprido chamaram a atenção do seu clube de sempre. De Chamartín, depois de despedirem Carlos Queiroz, veio o chamamento do coração e ele optou, como todos o faríamos. Por cá ficaram as bases que alavancaram o clube rumo ao título nacional do ano seguinte e das campanhas europeias precedentes.
Trappatoni pegou no seu onze titular organizado em 4-2-3-1, deu-lhe a manha que só a experiência das principais ligas entrega e o espírito campeoníssimo da Velha Raposa permitiu a feliz conjugação de contextos nos três grandes para o triunfo final, 11 anos depois.
Em termos estatísticos, foi o pior campeão de sempre: seis empates e sete derrotas. Caricato, mas a recompensa tardia de um enorme trabalho feito. José António Camacho, como Simão, foram as figuras do rejuvenescimento do Benfica.
A amizade que o ligava a Luís Filipe Vieira serviu como bóia de salvação para o descuidado planeamento de 2007-08. Não resultou. Demitiu-se e, à saída, nos idos de Março, alegou não ter mais poder na motivação da equipa. Não quis descortinar outros motivos para a debandada. Mas, percebeu-se sempre que conflitos internos se sobrepunham aos seus valores e, assim, fez mais uma vez jus de uma das suas máximas: «Quando não me sinto bem no sítio onde estou, mudo-me»."

A crise dos clubes

"Caso a actual situação se mantenha e os clubes e as sociedades desportivas comecem a registar quebras acentuadas de pelo menos 40% da sua facturação poderão recorrer ao regime do lay-off simplificado

Em virtude da suspensão das competições, e da recente decisão tomada por alguns clubes em recorrer ao regime do lay-off simplificado, questiona-se se é lícito aos clubes e sociedades desportivas recorrerem à aplicação desse regime, aprovado pelo decreto-lei n.º 10-G/2020, de 26 de Março, designadamente à redução temporária dos períodos normais de trabalho ou à suspensão dos contratos de trabalho.
Ora, o lay-off simplificado destina-se a “empregadores de natureza privada”, noção na qual se enquadram quer clubes, enquanto associações, quer sociedades desportivas (na forma de SAD ou SDUQ), enquanto sociedades comerciais.
O regime do lay-off simplificado verifica-se em situações de crise empresarial, designadamente por uma de três vias:
(i) encerramento total ou parcial da empresa ou estabelecimento, decorrente de disposição legal ou administrativa;
(ii) paragem total ou parcial da actividade da empresa ou estabelecimento que resulte da interrupção das cadeias de abastecimento globais, ou da suspensão ou cancelamento de encomendas;
e (iii) quebra abrupta e acentuada de, pelo menos, 40 % da facturação no período de trinta dias anterior ao do pedido, com referência à média mensal dos dois meses anteriores a esse período, ou face ao período homólogo do ano anterior ou, ainda, para quem tenha iniciado a actividade há menos de 12 meses, à média desse período.
Estando certos de que estes requisitos são alternativos, e não cumulativos, basta que se verifique uma das situações anteriormente descritas para se considerar que existe “situação de crise empresarial”. 
Assim, torna-se necessário saber se o clube ou a sociedade desportiva que participe em competição desportiva, objecto de decisão administrativa de suspensão ou conclusão antecipada, se encontra em situação de crise empresarial para efeitos de acesso às medidas de apoio à manutenção da actividade das empresas.
Os clubes que, publicamente, já assumiram a intenção de avançar para o lay-off, invocaram o encerramento da empresa para esse fim. Contudo, parece-me que o fizeram indevidamente. Para essa análise, entendo que devem ser chamados à colação os seguintes argumentos:
1. O lay-off pressupõe sempre um impacto financeiro negativo significativo, que coloque em causa a viabilidade financeira do clube ou da sociedade desportiva e faça perigar os postos de trabalho existentes. Assim sendo, a suspensão das competições deve originar algum tipo de afectação ou impacto financeiro relevante e que sustente e justifique, por si só, a existência de uma real situação de crise empresarial. Esse impacto financeiro negativo tem de ser presente, actual, e não hipotético ou potencial, dado o carácter imediatista a que subjaz ao regime de lay-off, que é o de assegurar a viabilidade da empresa e manutenção dos postos de trabalho existentes.
2. Não decorre da leitura da definição de crise empresarial, prevista nas alíneas do n.º1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º10-G/2020, que para se aferir o encerramento total ou parcial de uma empresa, nos tenhamos de socorrer do critério financeiro da quebra abrupta da facturação. Aliás, se tal fosse critério, seria exigível para os casos de encerramento total ou parcial a apresentação de certidão do contabilista certificado da empresa que ateste esse impacto financeiro, o que não acontece por força do n.º 2 do artigo 4.º do mesmo diploma, in fine. Contudo, não nos podemos afastar da ideia original e da teleologia que sustenta a figura do lay-off, que consiste em permitir temporariamente ao empregador suspender os contratos de trabalho ou reduzir os períodos normais de trabalho, pela verificação de motivos que tenham afectado a actividade normal da empresa e desde que essas medidas sejam indispensáveis para assegurar a sua viabilidade e a manutenção de postos de trabalho existentes.
3. A Liga e a Federação Portuguesa de Futebol, assumindo o carácter exemplar da medida, ordenaram a suspensão dos campeonatos profissionais no dia 12 de Março. Quer isto dizer, em primeiro lugar, que estamos perante uma suspensão de actividade e não de um encerramento da empresa; e em segundo lugar, que a suspensão não resultou de uma decisão governamental, mas sim de uma decisão autónoma e voluntária da Liga e da Federação, que antecipou a posterior decisão governamental.
4. O Decreto n.º 2-B/2020 refere, no seu artigo 9.º. que “são encerradas as instalações e estabelecimentos referidos no anexo I ao presente decreto”, nas quais se incluem os estádios. Poderíamos daqui retirar que, estando os estádios encerrados, os clubes e as sociedades desportivas ficariam obrigados a encerrar a sua actividade. Contudo, de acordo com o n.º 3 do referido anexo, esse encerramento não se aplica às instalações desportivas destinadas à actividade dos praticantes desportivos profissionais e de alto rendimento, em contexto de treino, o que permite que os clubes e as sociedades desportivas realizem, pelo menos, uma parte da sua actividade, mantendo os respectivos centros de treino abertos para essa finalidade.
Face ao exposto, parece-me claro que o recurso ao encerramento da empresa, pelos clubes e sociedades desportivas, para sustentar a crise empresarial, fica de todo afastado, em virtude de poderem continuar a fomentar o desenvolvimento de actividades relacionadas com a prática desportiva profissionalizada, bem como pelo facto de manterem as principais fontes de receitas próprias, tal como acontece com as receitas provenientes dos contratos de patrocínio, dos direitos de transmissão e das transferências de jogadores.
Todavia, caso esta situação se mantenha e os clubes e as sociedades desportivas comecem a registar quebras acentuadas de receita, como por exemplo pelo cancelamento dos contratos anteriormente referidos, pela ausência de prémios de qualificação ou pela redução da bilhética, poderão recorrer ao regime do lay-off simplificado, desde que exista uma quebra abrupta e acentuada de, pelo menos, 40 % da sua facturação."

Vem aí o dilúvio?

"No caso português, cortadas as suas principais fontes de alimentação, receitas televisivas e bilhética, os clubes portugueses, não só os principais, viram-se agora para o céu à espera do milagre que nunca irá surgir.

Por arrastamento da crise que o país e o mundo atravessam, e que toca toda a sociedade, o futebol caminha inexoravelmente para um beco de difícil saída. É verdade que só no futuro poderá ser feita a avaliação dos estragos causados por momentos tão perturbadores como aqueles que todos vivemos. 
No entanto, é já possível olhar para um panorama desolador, para o qual os responsáveis nacionais, europeus e mundiais vão ter muita dificuldade em encontrar uma saída.
No caso português, cortadas as suas principais fontes de alimentação, receitas televisivas e bilhética, os clubes portugueses, não só os principais, viram-se agora para o céu à espera do milagre que nunca irá surgir.
O ter andado durante muitos anos a navegar ao sabor das ondas, sem necessidade de manobras radicais, deixa o futebol nas mãos do acaso.
E o acaso nunca foi, nem bom aliado nem bom conselheiro. Os dirigentes têm agora sonos mais breves e passam noites a imaginar mecanismos para sair de uma situação que também a eles vai arrastar para as proximidades do abismo: fica aí por se saber em que direcção será dado o seu próximo passo.
A maior prova da desorientação que invadiu os responsáveis fica à vista quando os ouvimos fazer previsões sobre as medidas que hão-de ser tomadas no imediato.
Em boa verdade ninguém se entende: basta recordar o que disseram o presidente da Liga de Portugal, o presidente da UEFA e outros parceiros internacionais.
Para quem assiste ao desfile de factos que confirmam o perigo que envolve o futebol mundial não sobram muitas dúvidas: o futebol, nos seus mais variados aspectos, nunca mais será como até aqui e, no imediato, a reatamento das competições é ainda miragem, que não vai passar disso nos meses mais próximos. 
Não vale a pena remar contra a maré: como o conhecemos, o futebol poderá ter acabado.
Será por isso necessário buscar novas fórmulas, mas certamente com outros protagonistas, mais adaptados às circunstâncias que vai gerar."

Todos os dias nos roubam um gesto

"Todos os dias vamos ficando mais longe de nós próprios porque também somos feitos dos outros. E cada um de nós é uma arma.

E, de repente, o mostrengo, imundo e grosso, veio querer o que é nosso, e tirou-nos carinhos, e abraços e beijos e afagos. A cada dia que passa, rouba-nos um gesto; a cada hora que passa, obriga-nos a ficarmos mais longe. Já há gente que vive na mesma casa e não se toca. Já há sorrisos embaciados que deixaram de brilhar. Já não me deixam, tonto de ternura, pousar os lábios na testa suave dos meus pais. Tiraram-nos a companhia dos filhos e dos irmãos; mandaram-nos ser estranhos dos nossos amigos; e esquivos e desconfiados, temerosos e brutos de uma rudeza desconsolada.
O mostrengo veio lá do fim do mar numa noite de breu e sujou de sombras o céu que hoje não tem nuvens. Céu incompleto de quem perdeu a liberdade. Céu exclusivo de pássaros e inacessível aos sonhos imediatos, porque o torcionário mudou as regras do tempo e deixou-nos apenas a esperança que ele passe depressa o suficiente para que certas coisas não fiquem definitivamente por fazer.
Olho a rua e não passa gente. E quando passa, passa sozinha, porque o mostrengo veio dessa morada onde ninguém o via mudar, também, a regra das distâncias. Vejo-os fugirem uns dos outros com medo uns dos outros e com medo de si próprios. O mostrengo à roda da nau rodou três vezes e anunciou, chiando com a voz das cavernas que não desvenda, que cada um terá de carregar aos ombros a ameaça da morte alheia e quer fazer de nós assassinos silenciosos, anónimos e inevitáveis. Voou sobre toda a gente com a maldição presa nas garras de sermos condutores da nau da morte e não há homem do leme que possa retirar das nossas mãos esse toque destruidor que não escolhe vítimas. Cada um de nós é, hoje, uma arma pronta a disparar. Cada um de nós é uma arma capaz de matar os que mais amamos. Cada um de nós está armadilhado por um mal que veio dos tectos negros do fim do mundo. E mandam-nos apenas estar parados.
Lembro-me de uma noite triste de chuva em Liverpool. Acho que tinha, como agora, um nó na garganta de uma ausência súbita, daquelas ausências que se tornam infinitas por mais que a gente faça por mantê-las vivas num lugar qualquer cá dentro ao qual têm direito. Porque nada tinha para fazer, caminhei por Kemlyn Road, protegendo-me inutilmente nos beirais, um rio ancho de água e homens e mulheres e meninos, ignorando as cordas molhadas do céu, unidos em vozes ora roucas, ora desafinadas, ora infantis:
«When you walk through a storm
Hold your head up high
And don’t be afraid of the dark».
E não, ninguém tinha medo da tempestade com os seus trovões volta e meia, como de costume atrasados em relação aos raios. Ninguém tinha medo da noite que ficara escura de uma escuridão sem nome. À medida que os passos se aproximavam de Anfield e ficávamos cada vez mais juntos, a amálgama de corações ia batendo ao ritmo das palavras:
«Walk on through the wind
Walk on through the rain
Though your dreams be tossed and blown».
E não, ninguém tinha medo do vento nem da chuva, não havia força da natureza que dobrasse a vontade de todos os que gritavam alto o seu direito à liberdade sem receios, à sua vida sem intervalos.
Houve o estádio e houve o jogo. Houve a colectiva conjunção de vontades, fisicamente exibida, coisa que agora deixou de haver._Mas houve, sobretudo, um aviso. Uma faca enfiada entre a terceira e quarta costela de um inimigo infame, que se esconde, incógnito, na cobardia. Não, não éramos muitos nessa noite de Anfield: éramos um só. E um eco prolongou-se pela noite. E um eco prolongou-se-me pela vida:
«Walk on, walk on
With hope in your heart
And you’ll never walk alone
You’ll never walk alone
Walk on, walk on
With hope in your heart
And you’ll never walk alone
You’ll never walk alone!».
Por vezes, a resistência não passa de uma palavra. Por vezes a luta não passa de uma música como a que Richard Rodgers e Oscar Hammerstein I compuseram para um musical chamado Carousel, em 1945, e ficou cravada no coração de Anfield.
Por vezes, no meio da solidão, é preciso encontrar um ânimo simples como o de Fernando Lopes Graça: «Não fiques para trás, ò companheiro!».
O mostrengo veio rodando nas trevas do fim do mundo para pôr um fim ao nosso mundo. Todos os dias, ele e a sua maldade, nos roubam um gesto. Todos os dias fico com os braços cansados dos abraços que não dou. Todos os dias quero rodear os meus filhos de afecto e oferecer aos meus pais um trejeito de carinho. Todos os dias tenho saudades do que venho deixando de ser. Todos os dias me perco, mesmo sabendo qual é o caminho. Todos os dias vamos ficando mais vazios porque a distância mata de forma lenta e cruel. Todos os dias estamos mais longe de nós mesmos porque somos, também, feitos dos outros. Alguns já ficaram irremediavelmente para trás. Mas, que importa? 
«Chegarão no nosso brado
Porque nenhum de nós anda sozinho
E até mortos vão ao nosso lado»."

O último negócio de uma era

"Nas próximas décadas não se vislumbra como poderá um clube português contratar um internacional alemão, de 24 anos, ao Borussia Dortmund, aguardemos, pois, que Weigl se expresse na plenitude do seu futebol

Não tem a magia instantânea dos grandes artistas, que encantam plateias a agitam a indústria. Apresenta-se com rosto de cidadão qualquer e a expressão feliz de um jovem igual a tantos, em campo é silenciosa, discreto e, em menos de dez minutos, identificamo-lo como jogador despreocupado com o exterior, que não pensa em protagonismo e age, em exclusivo, em função da equipa. O papel que lhe cabe na peça não é decifrado ou mesmo valorizado automaticamente; o seu futebol não contém elementos criativos comuns aos génios, porque recusa fintas, habilidades e demais truques que retirou, ainda menino, do reportório que lhe definiu o estilo. Weigl é, assim, um operário especializado, cumpridor de todas as tarefas que lhe são atribuídas, e um funcionário superior, com técnica cristalina e profundo conhecimento táctico, que serve para manter a equipa em funcionamento, segundo princípios acordados previamente como treinador.
A maior dificuldade para um jogador com características tão especiais é o tempo que leva a acomodar-se no lar a conhecer os cantos à casa; em causa não está só a decoração, o estilo, a mobília e as regras gerais do funcionamento do lar; não é só ter a noção de onde fica a sala, o escritório, os quartos ou a cozinha, é saber quais são os armários onde estão roupa e loiças ou as gavetas que guardam a correspondência e os cofres que escondem as joias. Esse processo é complexo; moroso de assimilar e mais ainda de conjugar com o meio em que está inserido, até porque se trata de uma relação com dois sentidos - quem já habitava na casa tem de sentir-se confortável com a inclusão de um novo hóspede tão ilustre e influente na manobra colectiva.
Weigl tem a vantagem de dominar todo o terreno, conhecer as regas de circulação e acção em cada parcela por onde passa, bem como se procurar o caminho em sintonia com os outros e assim encontrar as respostas que o jogo pode. Para expressar o máximo do talento, precisa de uma equipa à volta, que lhe dê soluções para o início da criação e não a obrigue a concentrar-se na procura da bola.
Sendo um jogador evoluído e multifuncional, só atinge o máximo quando conjuga raciocínio, segurança, liderança, equilíbrio, risco e aventura. É tão responsável e zeloso a gerir o que tem para fazer que parece diminuir-se quando reparte determinadas tarefas - pode ser como Redondo, que se queixava, quando lhe colocavam um companheiro ao lado, de que lhe tapavam um olho. Weigl sublinha a importância de valores como inteligência, eficácia e simplicidade; movimenta-se em bicos de pés pelos corredores do poder (o centro do terreno), com uma autoridade clara e ao mesmo tempo discreta e silenciosa. É um médio que recusa a superficialidade do adorno e transporta uma austeridade técnica que não encanta, mas cumpre as necessidades da sua muito exigente intervenção no jogo.
Quando lhe chega aos pés, a bola não espera receber juras de amor, mas tem a certeza de que será bem tratada, vai descansar pouco, viajar depressa (joga a um/dois toques) e ter um destino seguro, Weigl recusa todos os manuais de etiqueta; não tem jeito para ser solene, intenção de ser brilhante, muito menos preocupações com a avaliação exterior. Nunca se agitará, levemente que seja, quando quiserem reduzi-lo a um número descomunal para o meio (20 milhões) e houver quem não encontre relação entre o que joga e a grandeza que não lhe atribuem. Mesmo considerando essa desfasamento, Weigl personifica o último grande e surpreendente negócio de uma era no futebol português. Nas próximas décadas não se vislumbra como poderá um clube português contratar um internacional alemão, de 24 anos, ao Borussia Dortmund. Aguardemos, então, para que possa expressar-se na plenitude do que tem para oferecer."

Rui Dias, in Record