domingo, 15 de março de 2020

Semana 1 - Tó Rique

"A UEFA sabe que tem um conjunto de questões pela frente e uma delas será, acredito, o adiamento do Europeu de futebol

1. Nós que escrevemos - e, por vezes, comentamos no espaço público - temos uma acrescida responsabilidade nestes tempos em que um vírus, em coroa, nos faz romper as nossas rotinas. Sim o que julgávamos certo tornou-se, num instante, incerto. Parece que o universo nos diz para deixarmos o eu e assumirmos que só a junção, e a verdadeira conjugação, entre o eu e o tu, permitirá o exigente nós. Este vírus, que de verdade nos mete medo, exige reciprocidade e solidariedade, sentido de comunidade e responsabilidade partilhada. E cada um de nós, em casa, deve fazer um exercício de história! Sim devemos, como sugere o Professor Miguel Monjardino, homem do coração do Atlântico (Angra do Heroísmo), fazer o nosso diário desta vivência inesperada e surpreendente. E devemos, no papel, - no meu caso - dar nota do que sentimos e do que pressentimos, do que lemos e do que recebemos, do que escutamos e do que valoramos. E tem a consciência que há notícias que valem e outras que não valem. Há notícias que retratam o que acontece e outras que falseiam a verdade. Nestes tempos dizem-se fake news para nos situarmos na realidade comunicacional em que vivemos. Nada como conhecer a verdade das notícias falsas e delimitar um plano de ataque de forma a que, perante esta crise que nos atinge e abala, elas não sejam nem uma nova droga nem sequer ajudem a construir, ainda mais, gente falsa. Sob pena das fake news nos levarem, num ápice, e com doeres lancinantes, a um mundo falso! Façamos o nosso diário e, depois, façamos, aqui, o resumo do que lemos e do que vimos, do que escutámos e do retiramos das redes sociais a que temos, directa ou indirectamente, acesso. Sabendo bem que em 1898 não havia nem Internet, nem Twitter, nem WhatsApp, nem Facebook, por exemplo. Nem televisão nem, ainda, rádio. Mas havia, nos EUA, uma disputa para o controle do quarto poder entre dois patrões de media, Joseph Pulitzer e William Hearts. Este último inventou uma guerra entre os EUA e a Espanha acerca de Cuba. E levou a que os EUA declarassem guerra a Espanha, o que levou, mais tarde, à independência de Cuba! Façamos a nossa semana 1!

2. Que é, por excelência, a semana 0 no que respeita a competições desportivas. Semana em que tudo parou. O futebol e o andebol, o basquetebol e voleibol, o hóquei e o râguebi, o futsal e o ténis, o ciclismo e o automobilismo, entre tantas e tantas modalidades, olímpicas ou não olímpicas! Sabemos, na linha do grande treinador italiano Carlo Ancelloti, que «o futebol neste momento conta zero (...) tendo em conta a tragédia que se desenvolve na frente dos nossos olhos»! E os principais dirigentes desportivos portugueses - da Federação à Liga, dos grandes aos pequenos clubes - estão a saber dar as mãos e a realçar a responsabilidade partilhada que cabe a cada um de nós. E a UEFA sabe tem um conjunto de questões que tem um conjunto de questões pela frente e uma delas será, acredito, o adiamento do Europeu de futebol. Será o Europeu de 2021 e, porventura, com uma nova calendarização de competições, como será o caso da Liga das Nações. E o que ocorre no futebol europeu será efectivo em outras modalidades, principalmente naquelas com maior relevância televisiva! Mas, mesmo aqui, a nossa atenção centra-se nas notícias, nos números que nos angustiam, na alegria dos que recuperam e na convicção que uma vacina estará mais próxima. Mas o que importa, agora, é ficar em casa. Limitar os contactos. Acreditar nas palavras de quem nos governa.

3. Há amizades que nos perturbam e impressionam. Ontem o meu amigo de há sessenta anos, o Tó Rique, médico da primeira linha no combate e este vírus, em coroa, enviou-me uma mensagem, que aqui reproduzo em parte, que me tocou profundamente: «Juízo, Fernando, Fica Em Casa. Tu és um gajote com factores de risco. Protege-se»! Ele que só trabalho no serviço de urgência do hospital da minha - nossa - cidade natal, Viseu sabe muito bem do que fala. Ele que nunca me faltou nos momentos difíceis em que os saudosos Senhores meus Pais precisaram de amparo médico e de presença pessoal. E no meio dos dramas que trata o Tó Rique teve tempo para se recordar do colega e amigo de infância e de o avisar para ter cuidado. Ficarei por casa, Tó Rique. E tu tem cuidado. Tens os teus netos a sorrir, as tuas filhas a ajudar e a tua querida Mulher a amparar já que, também ela médica, está na primeira linha deste combate, em entreajuda fraterna, a um vírus que, mesmo em coroa, não nos vai derrubar. É que nesta vida vivida quero continuar a saber que és leão e eu águia, que vimos grandes penalidades diferentes e que o VAR não nos ajuda a ultrapassarmos as cores dos nossos olhos. Como escreveu Francis Bacon «a amizade duplica as alegrias e divide as tristezas». Duplica Tó! Mas, no final e afinal, este gajote vai ter cuidado. Prometo. Na semana 1 deste vírus!"

Fernando Seara, in A Bola

O nosso medo e o medo dos outros

"Saúde e política. Recordo uma frase de Demóstenes para os Atenienses: «Em vez de vos aguardar prefiro salvar-vos».

1. E episódio do basquetebolista da NBA que há poucos dias troçou do excesso de receios dos outros e da comunidade, tocando ostensivamente com a mão na mesma em todos os microfones dos jornalistas ali presentes e simulando tossir para cima de objectos e pessoas, é revelador de um fenómeno que ainda há poucos dias estava em movimento. Não havia apenas o desvalorizar da ameaça do Covid-19, mas também um desrespeito pelo medo dos outros.
Em situações de doenças contagiosas não estamos num combate um contra um. Não é uma luta de boxe ou de karaté, não é: doença de um lado e doente do outro - doente, claro, ajudado pela incrível medicina. Não é disso que se trata agora, com o Covid-19. Estamos num tipo de combate bem diferente.
Nas doenças contagiosas a luta é de todos contra a doença; não é um duelo privado. Ninguém pode individualmente vencer uma doença contagiosa. E daí este desrespeito pelos medos dos outros ser absolutamente inaceitável. Um herói só é herói quando coloca, exclusivamente, a sua vida em risco por amor a outra pessoa ou a uma ideia qualquer (e podemos sempre discutir, de acordo com as condições e contexto, se o que se faz é um acto heróico ou apenas uma tontice vaidosa). Mas ser herói não é, em situação alguma, pôr em risco os outros. Um acto que não tem em conta os outros, nunca poderá ser heróico. É simplesmente não civilizado, não civil. Não se trata já de uma questão de gentileza ou sequer de educação: um acto que troça com o medo da comunidade, ou que troça apenas de um só individuo, é um acto mais ou menos reles.
O medo é individual e, para cada situação ameaçadora, define diferentes comportamentos e atitudes. Calibrar o medo e as acções dos outros pelo meu medo (maior ou menor) ou pelas minhas acções é partir do princípio de que o mundo sou eu, eu, eu eu, eu.
Este euísmo, nestes dias de urgência e cuidado com o outro, é absolutamente tonto.
Se não respeitamos o medo do outro, vamos respeitar o quê? Tantos discursos sobre a identidade e este também exige ser feito: cada pessoa tem direito aos seus medos; cada pessoa tem direito a poder definir uma intensidade, maior ou menor, do seu medo, das suas precauções. Eu respeito a tua saúde e a tua doença. E ainda, antes disso: eu respeito o teu medo - frase que tem de ser dita e repetida.

2. Saúde mental, sim, e saúde física; saúde dos órgãos e também saúde do pensamento e não apenas dos órgãos do pensamento. Pensar saudavelmente.
Ernst Junger, um filósofo alemão, escreveu em O Passo na Floresta: «Já vimos gente, a quem os médicos abanaram a cabeça, recobrar a saúde, mas nunca alguém que tivesse renunciado a si próprio».
A saúde sim, em certos casos, como resultado de uma firmeza. Mas outros, infelizmente, não há firmeza que seja suficiente. A firmeza, a vontade e o carácter por vezes lutam contra uma biologia má e rápida demais nessa forma de exercer a maldade. O Covid-19 como exemplo disso: junta velocidade e violência sobre o organismo humano. De facto, está em movimento o ataque de um vírus que contorna as defesas médicas de prevenção e resposta. Mas pensar, neste caso do Covid-19, nas duas forças - vontade e medicina: as duas juntas têm tornado as doenças maiores da História em doenças, com o tempo, menos agressivas. É isso que todos desejamos. Mas, para já, não se trata da História e do grande tempo, mas sim da urgência, do dia pareceu tão grande.
Desejo a todos os que fazem este jornal, de forma tão delicada, e a todos os leitores, boa saúde no recato possível e sereno. Que os nossos amigos, familiares, pais e avós continuem firmes.

3. Saúde e política. Recordo uma frase de Demóstenes para os Atenienses: «Em vez de vos agradar prefiro salvar-nos»."

Gonçalo M. Tavares, in A Bola