"Lembro, amiudadas vezes (e com alguma vaidade) que, nas minhas aulas, no INEF, no ISEF, na FMH, aconselhava os alunos à leitura dos grandes escritores portugueses, tais como a Sophia, o Torga, o Régio, o Herberto Helder, o Abelaira, o José Cardoso Pires, o António Lobo Antunes, o Saramago, o Manuel da Fonseca, o Fernando Namora, o Orlando da Costa, etc., etc. E dizia-lhes mesmo que nunca entenderiam o desporto, se não acompanhassem o estudo do treino desportivo e da sociologia do desporto e da antropologia do desporto e da epistemologia da motricidade humana, sem uma visita reflexiva à obra destes autores.
Hoje, lembraria outros romancistas e poetas, como é evidente. O José Tolentino Mendonça, o Gonçalo M. Tavares, o Afonso Cruz, o Miguel Real, o Mário de Carvalho, o Miguel Sousa Tavares são os nomes que, imediatamente, me ocorrem. Quando digo que não há remates, há pessoas que rematam, que não há fintas, há pessoas que fintam, que não há jogos, há pessoas que jogam – eu pretendo afirmar que nos encontramos no âmbito das ciências humanas, onde se estuda o “facto humano, em situação de desporto” e portanto os sentimentos, as emoções, o “vivido” também. Trabalhava eu, durante a década de 60, no C.F.”Os Belenenses” e mesmo com nulo conhecimento do treino desportivo (hoje sei um pouquinho mais, graças às lições que recebi, principalmente do David Monge da Silva e dos treinadores José Maria Pedroto e Jorge Jesus e José Mourinho) rapidamente concluí que o treino desportivo de alguns treinadores pouco tinha de científico pois que, para eles, no estudo do humano, só o quantitativo, o objectivo contavam. Nunca esquecerei o meu primeiro encontro com José Maria Pedroto, num Congresso de Medicina Desportivo, quando, por entre o rumor de vozes de uma “pausa para café”, ele me questionou: “ Por que diz que o treino desportivo está errado?”. E assim nasceu uma amizade que muito me honra… hoje e sempre! Ainda há poucos dias, o Jorge Jesus me repetia o que já me disse tantas vezes: “Nunca aprendi futebol consigo mas quando um dia me disse “não há jogos, há pessoas que jogam” ensinou-me o fundamento de tudo aquilo que eu faço como treinador”. O meu querido Jorge Jesus que muitas vezes acaricio, como se de um filho meu se tratasse…
No livro A Europa Ao Espelho de Portugal, o seu autor, José Eduardo Franco, entre os nomes maiores do pensamento português, deu merecido relevo a Manuel Antunes e a Eduardo Lourenço. Há muitos anos venho dizendo que o desporto é o fenómeno cultural de maior magia no mundo contemporâneo e, fundamentado em Arnold Gehlen, mormente na tradução, para castelhano (Ediciones Sígueme, Salamanca) do seu livro Der Mensche, vou repetindo que o Homem (e a Mulher) é um ser práxico; que é um ser carente, “en efecto, morfologicamente, el hombre, en contraposición a los mamíferos superiores, está determinado por la carência que en cada caso hay que explicar en su sentido biológico exacto como no-adaptación, no-especialización, primitivismo, es decir: no-evolucionado (…); e, por isso, um ser que nunca está terminado”. Para mim, porque é um ser demasiadas vezes mergulhado na consciência e neblina da sua incompletude, visando sempre a transcendência, em fome e sede permanentes do Absoluto. No entanto, há que não esquecê-lo: “o valor do espírito, de que falava Valéry, está em baixa, destronado pelo consumo e pela cultura mediática do divertimento. O que é que se verifica? 36% dos adultos, com mais de 15 anos, nunca lêem jornais, 38% nunca lêem um livro e cada vez é mais reduzido o número de jovens, mas também de menos jovens, que lêem mais de um livro por trimestre. O que é verdadeiro até entre os licenciados (…). O capitalismo e o hedonismo consumista afastaram a cultura literária e artística do seu lugar eminentíssimo. Desde então, o fútil tem valor de cultura (…). A noção de declínio do valor da cultura é sem dúvida verdadeira, pelo menos no que diz respeito às humanidades, à literatura e à filosofia (…). Os debates de ideias e entre escolas adversas, as posições e as controvérsias filosóficas viram a sua aura diminuir e o seu poder de fascinar e influenciar e fascinar enfraqueceram rapidamente. Já não há “ismos”, já não há grandes figuras carismáticas e há cada vez menos pensadores influentes” (Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, A Cultura-Mundo: resposta a uma sociedade desorientada, Edições 70, Lisboa, 2010, p. 127).
Enfim, enleados e manipulados pela sociedade de mercado, para os homens e as mulheres hodiernos o fútil, o ordinário, as citações de acervo comum já são cultura. O Padre Manuel Antunes, manifestando algum fascínio pela crítica de Herbert Marcuse à “sociedade unidimensional” e ao “homem unidimensional”, visíveis (no seu tempo e hoje ainda) no marxismo coletivista e no capitalismo sem freios; descortinando em Heidegger, Hegel, Marx e Freud os mestres onde Marcuse bebia, como em fluvial e límpida correnteza - abunda, com Marcuse, na convicção de que o nosso tempo é fruto da “razão tecnológica”, que outros valores não tem que satisfazer os mais naturais e profundos instintos do ser humano. E, por isso, donde nasceu “um homem que terá em Orfeu e em Narciso, profundamente reinterpretados, os seus grandes mitos e os seus grandes símbolos (…). Um homem que não terá complexos, nem de culpa, nem rigorosamente de superioridade, uma vez que tudo lhe será permitido sem esforço, como sem esforço tudo lhe será oferecido sem luta, sem vontade de poder, sem tensão. Um homem a quem Eros assistirá solícito em todas as situações e que, por isso mesmo, poderá brincar com o Logos a seu bel-prazer”. Mas, “que pensar (observa Manuel Antunes) de uma tal filosofia, na sua parte positiva ou, se se quiser, na sua mensagem? Que ela se reduz a uma antropologia e que esta contém não pouco de mitologia” (Manuel Antunes, “Occasionalia” – homens e ideias de ontem e de hoje, Multinova, Lisboa, 1980, pp. 533/534). Uma utopia, de facto, desenhada ao sol dos filósofos europeus acima citados e portanto com a dialéctica (embora de sinais diferentes) de Hegel e Marx e do pan-sexualismo de Freud, intemporal e permanente. Mas uma utopia sem o Absoluto. Não um Absoluto, para falarmos d’Ele, mas um Absoluto, para falarmos de nós. Sem o Absoluto não passamos, de facto, de uma besta sadia, de um cadáver adiado que procria, usando as palavras e as ideias de Fernando Pessoa.
Voltemos a Manuel Antunes, desta feita ao seu livro Repensar Portugal (Multinova, Lisboa, 1979): “A Europa é o continente da universalidade, pela sua ciência, a sua técnica, a sua cultura. A Europa é o único continente que, tendo tido tantas experiências de divisão conflitual, quase mortais, poderá, graças à sua unificação, a todos ou a quase todos os níveis, constituir para os outros continentes divididos experiência válida de como se pode chegar à unidade” (p. 59). Mas Portugal, com os Descobrimentos, não o podemos esquecer, abriu as portas ao processo de unificação da Terra inteira. E, hoje, com o fim das colónias portuguesas, o nosso “velho” pioneirismo permite-nos uma experiência de universalidade que (passe a imodéstia) mais ninguém tem, no mundo todo. “Donde, a importância decisiva de o renascimento de Portugal adquirir um sentido novo. O padre Manuel Antunes almeja que esse sentido novo seja consubstanciado no exercício de um papel de mediação internacional não apenas em proveito do povo lusitano, mas para a humanidade mais larga, a começar pelos povos de expressão portuguesa, antiga ou recente” (José Eduardo Franco, A Europa ao Espelho de Portugal, Temas e Debates-Círculo de Leitores, Lisboa, 2019, p. 248). E, com a criação de um “mundo português” maior e melhor do que o mundo português de Salazar, uma utopia nova renasce, com a redefinição de Portugal livre e democrata, mas também como mediador para um tempo que se deseja nascituro. Eduardo Lourenço, em livro que, por si só, deveria garantir ao seu autor o convite para professor catedrático de uma licenciatura em Filosofia (refiro-me ao livro de Miguel Real, Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa, editado pela Quidnovi, em 2008), definiu-se como heterodoxo e, a partir de um tempo em que ser heterodoxo “significava mais a afirmação da coragem de recusar e contestar as duas ortodoxias dominantes (o catolicismo dogmático de Gonçalves Cerejeira e o comunismo dogmático de Álvaro Cunhal) do que prestar um conteúdo argumentativo concreto à sua posição” (p. 19). Afinal, trinta anos depois, “o lema político erguido por Mário Soares, em 1975, na Alameda da Fonte Luminosa, em Lisboa, A Europa Connosco, constituiu a expressão social concreta do triunfo da heterodoxia” (p. 19).
José Eduardo Franco, no livro A Europa ao Espelho de Portugal, apresenta, no seu entender, as duas fases do pensamento de Eduardo Lourenço, sobre a Europa: na primeira fase, “mitifica, glorifica e endeusa” a Europa, para concluir que dela nos encontramos lamentavelmente distanciados; na segunda fase, “a Europa é e torna-se cada vez mais o nosso grande paradoxo histórico: se foi e parece ainda ter de ser uma tábua de salvação. Emblema do nosso progresso e do orgulho de fazermos parte de um clube de oásis herdeiros das Luzes acendidas há três séculos, é também a nossa cruz e o nosso aguilhão, que nos oprimem e impedem de guiar livremente o nosso destino e fazer as nossas escolhas. O Tempo dirá quem falará mais alto!” (p. 283). Tornemos a Eduardo Lourenço: “Este olhar de Portugal como Europa, não enxergando nada diante dele que valha a pena – salvo uma América que se prepara para ser o Império Romano que a Europa não tem a força de sonhar – não é apenas a utopia de uma poeta apto como ninguém para apreender a ausência da realidade do que chamamos Mundo e História, enquanto espera uma cada vez mais improvável vinda de Godot, mas o mito mesmo de uma cultura que a nossa Poesia glosará sem fim, o mito sebastianista que não tem, em suma, outro conteúdo que não o regresso sem fim de Portugal ao seu estatuto onírico de olhar-mundo que foi outrora, por conta da Europa e de ninguém”(pp. 263/264). Por isso, acrescenta José Eduardo Franco, “a carência de mitificação necessária para concitar afectividade e emoção pela Europa como um todo é um dos aspectos estruturantes da fragilidade europeia actual” (p. 265). Faltam-nos mitos a pensar e a liderar a Europa; falta-nos uma constante presença numa séria reflexão sobre os acontecimentos, desde a política ao desporto; faltam-nos Mestres profissionais da aprendizagem e não do ensino. É preciso saber pensar e aprender a aprender – que não são problemas apenas técnicos, pois que se trata da formação de um sujeito capaz de criar a sua própria história. Repito uma frase muito minha: o desporto é o fenómeno cultural de maior magia, no mundo contemporâneo. Quero eu dizer: os desportistas muito terão a aprender com o padre Manuel Antunes, Eduardo Lourenço, Miguel Real, José Eduardo Franco e alguns mais. Para um desporto novo - este é o primeiro passo!"