terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Elegia para campeões da vida

"O que fizeram os homens de 1966 nunca mais teve igual. Gosto de pensar que aprendi com alguns deles, os que fizeram o favor de me ensinar. O seu destino foi o de serem vencedores da existência. A nossa obrigação é não os esquecer, jamais os esquecer!

Janeiro traz consigo uma nostalgia de Eusébio. Eusébio tinha tanto de menino e, ao mesmo tempo, a seu lado sentíamos algo de imbatível, incontrolável. As forças da natureza reuniam-se nele como uma tempestade ainda por rebentar. Explodiu no campo, tantas e tantas vezes. Trovejou relampejou, choveu sobre adversários com a potência da água que tombou do céu no dia em que o seu caixão percorreu as ruas de Lisboa e as pessoas abandonavam os cafés, as conversas, os escritórios, os empregos, as lojas, para sofrer a seu lado a intempérie, para um último gesto de adeus, para uma derradeira mão estendida para o homem que passava, impossivelmente morto, pensava eu para comigo, porque quem tinha tanta vida nunca poderia morrer.
Há uma transcendência nas imagens que recordo, a preto e branco, sei de cor frame a frame.
Quem nasceu, como eu, já nos anos 60 não teve o Mundial de Inglaterra ao vivo. Mas não viveu sem o Mundial de Inglaterra. É essa a força dos mitos.
Vi, mais tarde, os resumos, jogos inteiros. Vi e revi. E vi outra e outra vez, como se recordasse, mesmo que a minha memória não pudesse chegar tão longe.
Era Eusébio e os seus campeões da vida.
Sim. Campeões no futebol e na vida.

A força do destino
Depois, conheci-os todos. Uns melhor, outros de forma mais distante. E, à admiração, acrescentei o carinho. O respeito, esse, esteve lá sempre.
Não, nunca ninguém como eles. Tenho em mim um desígnio de Índia, e todos os anos volto ao país dos meus encantos, uma, duas, três vezes. A cada viagem não esqueço a primeira. Não a minha primeira, a primeira de todos nós. A do Vasco do Gama, intrépido batalhador dos mares, amansador de Mostrengos.
O futebol banalizou-se à medida que fomos ficando cada vez mais pesados de tempo. Surge em todo lado, a toda a hora, de todos os cantos deste planeta redondo e apenas achatado nos polos. A profissão levou-me a cinco fases finais de campeonato do mundo, mas não me fez nunca deixar de relembrar Eusébio. E José Augusto, e Coluna, e António Simões e Germano, e Hilário e Torres, e Alexandre Baptista  e Jaime Graça. E até Fernando Peres, que jogou e também já viajou para a planície da eterna saudade. Lá está: conheci-os, ouvi-os, aprendi com eles, que tivessem a suprema paciência de me ensinar. Convenço-me, se calhar erradamente, de que os entendi, de que fiquei, por causa deles, mais sábio e mais homem. De todos, cada um à sua maneira, registei o que pude.
Janeiro traz consigo uma nostalgia de Eusébio.
Traz consigo uma nostalgia dessa gente que foi à frente de todos os que a seguir vieram, desbravar um caminho sem medos, erguer o facho de uma vontade inquebrantável e lutar contra o mundo quando foi preciso vencer o mundo.
Aceitemos: nunca ninguém foi como eles, nunca ninguém fez melhor do que eles. A seu lado, compartilhando o seu tempo, ouvindo as suas histórias, escutando os seus conselhos, pude sentir, também eu, esse ânimo de viver a vida sem submissões. Porque era esse o seu segredo: um campeão nunca se submete!
Ah! Como passam os anos tão depressa e as horas tão devagar.
Os anos passaram sobre a morte do Torres e do Germano e do Eusébio e do Coluna. A nossa obrigação é recordá-los e transmiti-los. Sem nunca nos submetermos. O destino deles foi o de serem campeões, de serem sempre campeões, no futebol e na vida. O nosso é de não esquecer, de nunca esquecer, de jamais esquecer. A vida deles, como cantava o Régio, foi um vendaval que se soltou, uma onda que se alevantou, um átomo a mais que se animou. E não amaram o que é fácil.
Escrevo-os. Escrevê-los-ei sempre. É a minha forma de os juntar, a todos, no mesmo único e infinito abraço..."

Afonso de Melo, in O Benfica

A suavidade assassina do Fantasma Vermelho

"Foi um dos mais elegantes avançados que alguma vez existiram: Zoran Filipovic. Um esteta que voava, ignorando o princípio de Newton, um predador da grande área, etéreo, súbito e fatal. Tive a sorte de ser seu amigo depois do tempo em que o via ao vivo e a cores, quase todas as semanas, espalhando pétalas no caminho dos golos.

Zoran Filipovic esteve na Luz, e cada regresso dele à Luz é sempre boa notícia.
Para mim e para a malta dos Olivais-Sul que passava a vida em redor do futebol desde meados dos ano-70, houve poucos jogadores como Filipovic.
Era um esteta. Jogador bonito, dizia-se.
Um miúdo lá do bairro atrapalhava-se com o nome quando gritava os seus golos: 'Filipobiti!'
A gente ria-se, mas o assunto era sério. Muito sério.
O tempo passou, e tornei-me amigo do Filipovic, como também fiquei amigo do Humberto Coelho, do Pietra, do Veloso, dos Bastos Lopes (I e II), do Chalana, do Shéu, do Nené, do Carlos Manuel, do José Luís, do Bento, do Alves, enfim, de toda essa equipa maravilhosa que devolveu o Benfica às glórias europeias e disputou aquela final fantástica com o Anderlecht, a dois jogos.
Alguns deles amigos fortes. Amigos de conversas infinitas.
Uns dez anos depois da final da Taça UEFA, o Benfica viajou para São Paulo. Um torneio da Parmalat, o patrocinador da altura.
Viagem triste. Derrotas feias.
Eu estava lá como enviado-especial de A Bola. O Filipovic também. Era um dos adjuntos de Artur Jorge. Outro amigo antigo.
Ficávamos a falar, à noite, no hotel que ficava na Av. 9 de Julho, perto do edifício da Família Mancini e da estação de Anhangabáu. E ele contava histórias da sua vida em Titograd, no Montenegro, e dos seus jogos no Estrela Vermelha, no Brugge e no Benfica.
Em seguida eu partia para as madrugadas do bairro do Bixiga e para as festas de Nossa Senhora de Aquiropita e para os bares de chorinho até nascer o sol.

Desafiando a lei da gravidade
Nasci num tempo que já não me permitiu ver a forma como José Águas desafiava o princípio de Newton. Recusava-se a aceitar que matéria atraísse matéria na razão directa das massas e no inverso do quadrado das distâncias. Por isso voava. Voava para golos perfeitos que guardei na lembrança das repetições de imagens a preto e branco.
Filipovic foi, para mim, a cores e ao vivo.
Também ele embirrava com a gravidade e deixava-se planar à espera da bola alta, sobre a cabeça dos defesas, um fantasma vermelho, suave, rápido, fatal.
Poucos alguma vez tiveram a elegância de Zoran Filipovic.
Lembro-me de golos e de golos e de golos. Os dois à Roma, no Estádio Olímpico. Assassino silencioso. Os romanos engolindo em silêncio a sua frustração, os passes precisos de João Alves, as fugas em contracurva do Chalana, as linhas rectas do José Luís. Era tudo bonito. E prático.
Sven-Goran Eriksson, outro bom amigo e Toni, meu velho irmão lá de Mogofores, ambos nós bairradinos.
Havia uma ideia. E sobre essa ideia havia a realidade. Uma das mais belas realidades que jamais se vestiram de encarnado.
Filipovic no meio de um ataque frenético, mistura de habilidades e contundência, sereno senhor da grande área na qual revolteava como se ele sozinho fosse um bando de andorinhas apontadas ao sul das balizas.
Ah! Poucos conseguiram ser tão etéreos. E tão letais ao mesmo tempo. Aquele nome afiado: Zoran. Zoran, O Magnífico, como se saído de um livro de Salgari, Corsário Vermelho ou coisa que o valha, companheiro de Sandokan, o Tigre da Malásia, senhor da Ilha de Mompracem.
Filipovic não se esquece. É impossível esquecer a sua passada importante, o seu remate de espadachim, o seu voo imponente ao encontro da bola, a mágica senhora das paixões. Se os golos são sempre bonitos, os dele eram ainda mais bonitos. Ficam para sempre pendurados como quadros de um pintor valioso na parede branca da minha memória."

Afonso de Melo, in A Bola

O espírito do Benfica num verdadeiro 'sportsman'

"Cosme Damião: dirigente, capitão, árbitro, jogador de futebol, hóquei em campo, atleta de lançamento do peso... e remador.

Nos inícios do século XX, o desporto caracteriza-se pela sua diversidade e espírito cooperativo. Destacavam-se, no protagonismo deste momento histórico, os chamados 'sportsman', os homens de desporto, que cultivaram a preocupação pelo cuidado do corpo e recorrente prática desportiva. O Benfica teve homens desse calibre, destacando-se Félix Bermudes e Cosme Damião. Este último foi  e ainda é o símbolo e figura principal da história do Benfica!
Falar sobre Cosme Damião assim pode parecer redundante, mas nunca é demais lembrar o papel que este homem teve no desporto português, tendo praticado quase todas as modalidades disponíveis à época!
Não aceitava que qualquer um praticasse desporto, especialmente o futebol, sem os 'conhecimentos elementares' das regras e a prática constante desde certa idade para se formarem como 'jogadores completos', pelas suas próprias palavras.
Este espírito que o caracterizou espelhou-se quando em 25 de Julho de 1915, competindo pela Taça Azambuja em remo, Cosme Damião integrou a tripulação do Club Naval de Lisboa como voga, o remador que vai na frente a marcar o ritmo.
A competição conheceu, nesse ano, a sua segunda edição. A prova surgiu de uma pacificação entre o Club Naval e a Associação Naval de Lisboa, vencedora da 1.ª edição, em 1913, num período em que se retomava o gosto pelos desportos aquáticos.
Ambas as equipas disponibilizaram dois dos melhores vapores lisbonenses para acolher sócios e respectivas famílias para um 'encantador passeio', ao mesmo tempo que assistiam 'à renhida luta entre as duas tripulações'. Dias antes da prova, já os bilhetes estavam esgotados!
Um grande cerimonial preencheu o programa: 'lançaram-se foguetes e a Filarmónica Azambujense executou algumas musicas' à chegada. 'Muitas senhoras em garridas toilettes' foram 'passear para a floresta' enquanto a regata decorria. Nas embarcações, houve baile, acompanhado por música tocada por bandas contratadas para o efeito. No regresso, 'foram levantados muitos vivas ao povo da Azambuja', que retribuiu com efusivos acenos.
Acabou por ser uma bonita e imponente demonstração de respeito e de boa interacção desportiva, que resultou na vitória da tripulação de Cosme Damião.
Pode ficar a saber mais sobre esta inigualável figura na área 18 - 'E Pluribus Unum' do Museu Benfica - Cosme Damião."

Pedro S. Amorim, in O Benfica

Os benfiquistas que apaixonaram o Brasil

"Depois de terem conquistado Portugal, deslumbraram o Brasil


Rivais em Moçambique, Costa Pereira, guarda-redes do Ferroviário, e Coluna, avançado do Desportivo, tornaram-se colegas no Benfica. Contratados em 1954, demonstraram rapidamente a sua enorme qualidade, assumiram-se como indiscutíveis no 'onze' benfiquista e contribuíram para a conquista do Campeonato Nacional e da Taça de Portugal. Se como adversários eram bons, juntos pareciam imparáveis!
A 14 de Junho de 1955, o Benfica partiu para o Brasil para participar no Torneio Charles Miller. Os 'encarnados' iriam defrontar os melhores clubes brasileiros e o campeão do Uruguai, o Penñarol. A qualidade dos 'canarinhos' levou o próprio jornal do Clube a ter algumas reservas: 'não vamos, evidentemente, surpreender os desportivas brasileiros, (...) nem estremecer os montes do Pão do Açúcar ou as pedras do Maracanã'.

Contudo, a recepção eufórica por parte dos brasileiros parece ter contagiado os benfiquistas. Na primeira partida, frente ao Flamengo, apesar da derrota por 1-0, a boa prestação dos 'encarnados' encantou os adeptos que se despediram do 'rectângulo em verdadeira apoteose'. Costa Pereira, que nem tinha começado bem a partida, convenceu com defesas brilhantes tanto a imprensa como o próprio Freitas Pauliche, treinador dos 'rubro negros', que o considerou 'um estupendo guardião que, indubitavelmente teria lugar na turma nacional do Brasil!'. Mas a estrela do encontro foi Coluna, que 'sobressaiu a grande altura, sendo alvo das atenções gerais'.  O médio, 'à medida que decorria o jogo, agigantava-se no «gramado», sempre na brecha e cada vez mais notado pelo público»'.
Os dois jogadores confirmaram as boas indicações na partida seguinte, frente ao Peñarol, com Coluna a abrir o marcador e Costa Pereira a manter a sua baliza incólume, na vitória por 2-0. O triunfo deixou as bancadas do Maracanã em êxtase, 'febrilmente, agitaram-se bandeiras de Portugal e do Benfica, que acompanhavam o coro tradicional, que a «torcida» não precisou de aprender: Ben-Fi-Ca! Ben-Fi-Ca! Ben-Fi-Ca!'. O jornal do Clube declararia: 'o Maracanã estremeceu'.
Fascinados com a qualidade do 'Monstro Sagrado', um 'periódico inseriu em toda a primeira página o busto de Colua, artisticamente desenhado'. O Benfica viria a vencer mais uma partida, frente ao Palmeiras, e a classificar-se em 4.º lugar. A imprensa considerou que o sucesso do torneio se deveu ao talento dos 'encarnados', com Coluna e Costa Pereira em primeiro plano, mobilizando milhares de adeptos a assistir às partidas. Depois de triunfarem em Portugal, de deixarem os brasileiros radiantes, ficariam com a Europa aos seus pés. Saiba mais sobre estes dois brilhantes futebolistas na área 23 - Inesquecíveis do Museu Benfica - Cosme Damião."

António Pinto, in O Benfica