"Desde o último Verão que se tem voltado a falar muito do denominado Benfica Europeu. O Benfica Europeu que tem sido tão apregoado pela estrutura e que nós vemos estar cada vez mais distante.
Não é preciso perceber muito de futebol para chegar à conclusão de que o Benfica Europeu que a estrutura pretende e tanto fala não é o mesmo Benfica Europeu que nós desejamos e aquele que fez do Sport Lisboa e Benfica, um clube reconhecido no mundo inteiro e com uma dimensão à escala mundial.
Aquilo que vemos nos dias de hoje é um Benfica que procura encher os cofres e valorizar os seus próprios activos ao máximo, um Benfica que procura utilizar a Champions como uma rampa de lançamento para miúdos que por muito potencial que tenham, ainda se mostram verdes para estas andanças.
Actualmente, a política desportiva do Benfica está assente numa aposta cega na formação, política na qual se troca qualidade por potencial ao substituir uma figura de proa no plantel por um miúdo da cantera sem provas dadas na equipa principal; e na qual não se contrata um determinado jogador feito e com provas dadas para não tapar o lugar a um miúdo da mesma posição.
Quando jogadores como João Cancelo e Bernardo Silva começaram a dar-se a conhecer, foi quando se começou a falar de aposta na formação no seio dos adeptos do Benfica. Na altura, eu era um bocado céptico em relação a essa aposta na formação, pois duvidava que o Benfica fosse capaz de manter uma equipa competitiva em Portugal e lá fora apostando em jogadores sem experiência numa Primeira Liga ou em competições internacionais a mais alto nível.
Para além disso, apesar de sempre ter enaltecido a capacidade de Jorge Jesus em potenciar jogadores e espremer-lhes o seu melhor rendimento, tinha dúvidas de que o clube fosse capaz de valorizar os seus próprios jogadores da mesma forma que valorizava os jogadores recrutados através da política de prospecção que na altura vigorava no Benfica.
Ao longo dos últimos anos, verificando o exemplo do Benfica nos primeiros dois anos após a saída de Jorge Jesus e também alguns exemplos no estrangeiro, o futebol viria a mostrar que estava enganado. E isso deixou-me optimista quanto ao futuro do Benfica.
No entanto, o cenário que começou a verificar-se nos últimos dois anos é diferente. É possível construir uma equipa competitiva com uma base assente em jogadores da cantera. Mas essa aposta na formação tem de ser feita de forma gradual, com cabeça, tronco e membros, algo que não se verifica nos dias de hoje.
Mas afinal, o que é necessário para termos um Benfica Europeu? Quais é que serão os ingredientes necessários para se construir uma equipa capaz de dominar a nível interno e capaz de fazer frente aos tubarões europeus? Para começar a responder a esta pergunta, relembro aqui as declarações proferidas por Ricardo Araújo Pereira num episódio do "Governo Sombra" em 2016, após o Benfica se ter sagrado tricampeão nacional:
"No Real Madrid houve aquela coisa dos Zidanes e Pavones. (...) No Benfica tem de ser Renatos, Gaitáns e Jonas."
Após a saída de Jorge Jesus do Benfica, Ricardo Araújo Pereira assumiu imediatamente ser um crítico da mudança de política do clube, mais assente na aposta na juventude, reiterando a sua opinião em relação ao assunto um ano mais tarde, após a conquista do Tricampeonato.
Nessas declarações, Ricardo Araújo Pereira fez alusão à expressão "Zidanes e Pavones", que ficou célebre na primeira metade da última década, quando Florentino Pérez pretendia adoptar uma política desportiva na qual pretendia dosear a contratação de jogadores de topo com a aposta na formação. E defendeu que o Benfica deveria apostar numa política semelhante, adaptando a expressão para Renatos (formação), Gaitáns (prospecção) e Jonas (jogadores experientes).
Uma coisa que é necessário esclarecer antes de explicar estas três componentes é que, da mesma forma que Ricardo Araújo Pereira disse no programa que entre o Benfica e o Barcelona existe uma diferença radical, entre o Benfica e o Real Madrid também o é. Seja no Barcelona, no Real Madrid ou em qualquer outro clube de topo, só mesmo um pré-destinado consegue transitar directamente da formação para a equipa principal. Como tal, uma política de "Zidanes e Pavones" não iria resultar no Real Madrid.
Agora, começando a falar da componente dos Renatos, um clube como o Benfica não tem as ferramentas financeiras que um clube de topo tem. Por isso, a aposta na formação não deixará de ser uma realidade e o futuro também terá de passar pelo Seixal. No entanto, também é preciso entender que cada caso é um caso. Por muito potencial que um determinado jogador tenha, isso não significa que tenha a capacidade e maturidade necessárias para a assumir a titularidade no curto prazo. É preciso ter a capacidade de entender qual será o seu patamar competitivo mais adequado e fazê-lo evoluir sem queimar etapas.
Para além da formação e da prospecção, também existem certas oportunidades de mercado que o Benfica pode e deve aproveitar. A aposta em "Jonas" como Ricardo Araújo Pereira se referiu, resume-se a contratar jogadores que já têm uma certa experiência e provas dadas no futebol europeu, mas que por um ou por outro motivo, se encontram desacreditados ou desvalorizados no mercado .Foi nessas circunstâncias que chegaram ao Benfica jogadores como Aimar, Saviola, Júlio César e Jonas. A experiência destes jogadores também pode ser uma mais-valia para o balneário.
Quis deixar a componente da prospecção (Gaitáns) para último lugar porque é algo que deve ser explicado com maior detalhe. Tradicionalmente, os grandes clubes nacionais faziam uma forte aposta no mercado sul-americano, no qual o Benfica recrutou muitos jogadores que viriam a deixar a sua marca de águia ao peito.
No entanto, ao longo desta década, o mercado sul-americano foi-se tornando cada vez mais caro e concorrido, tornando-se num mercado cada vez mais difícil de apostar. Com isto, é necessário mudar a política de recrutamento e apostar noutros mercados mais "alternativos".
Um dos motivos pelo qual o futebol europeu está mais competitivo, é porque estão a aparecer cada vez mais equipas de campeonatos periféricos a deixar a sua marca nas competições europeias. Clubes como o RB Salzburg, o KRC Genk, o Estrela Vermelha e o Slavia de Praga têm conseguido competir na Europa e bater o pé aos tubarões graças a uma boa política desportiva, assente na prospecção e valorização de jovens talentos e na prática de um futebol positivo que valoriza o jogo e o jogador.
Estes clubes apostam muito na prospecção de jovens jogadores em mercados com pouca visibilidade a preços acessíveis, que posteriormente se transferem para clubes e/ou campeonatos de topo por bons preços. Vou deixar aqui alguns exemplos de jogadores que foram contratados no âmbito dessa política:
Alfredo Morelos - do HJK Helsínquia para o FC Rangers por 1 milhão de euros
Sander Berge - do Valerenga para o KRC Genk por 800 mil euros
Giorgi Chakvetdze - do Dínamo Tbilisi para o KAA Gent por 750 mil euros
Petr Sevcik - do Slovan Liberec para o Slavia de Praga por 900 mil euros
Lovro Majer - do NK Lokomotiva para o Dínamo Zagreb por 2,5 milhões de euros
Ianis Hagi - do Vitorul Constanta para o KRC Genk por 6 milhões de euros
Daichi Kamada - do Sagan Tosu para o Eintracht Frankfurt por 750 mil euros.
O Benfica claramente tem condições para seguir uma política de prospecção deste género. Para isso, precisa de voltar a apostar forte no scouting em vez de agir tanto sob a influência dos empresários.
São estes os ingredientes necessários para se construir um Benfica capaz de lutar em todas as frentes, capaz de dominar internamente e de ser competitivo contra os tubarões Europeus. Mas ainda há uma coisa a esclarecer: se tivéssemos coberto todas as lacunas no plantel no mercado de Verão, teríamos já um Benfica Europeu? Não. Um Benfica Europeu não se constrói de um ano para o outro. É preciso que esta política desportiva estabilize e que a equipa ganhe experiência, entrosamento, raízes e estabilidade.
Por exemplo, no jogo da primeira jornada contra o RB Leipzig na Luz, jogámos com uma linha defensiva na qual, o jogador mais velho (Grimaldo) tinha apenas 23 anos. Para termos um Benfica Europeu, é necessário que estes quatro jogadores permaneçam no clube por mais 3/4 anos no mínimo, ou, na melhor das hipóteses, que sejam substituídos por jogadores de igual valia.
Na época passada, a comunicação do Benfica tanto enalteceu a prestação do Ajax na Champions com base na sua cantera, mas a verdade é que o clube holandês, para além de ter uma filosofia formativa que dura há décadas, também aposta na prospecção, como são os casos de David Neres, Lisandro Martínez, Edson Alvarez e Razvan Marin; e também aposta em jogadores feitos, tais como, Dusan Tadic, Daley Blind e Quincy Promes.
É esta a política desportiva que o Benfica deve adoptar para ter condições para chegar longe na Champions. Tem de encontrar um ponto de equilíbrio entre as três vertentes, estabelecendo uma política fiável, eficiente e menos movida por interesses externos."