terça-feira, 30 de julho de 2019

Exemplo veio dos emigrantes

"Vieira partiu na frente, ao anunciar o novo lema do seu clube: ganhar pelo Benfica e nunca contra ninguém. Deve dar para todos perceberem...

A menos de uma semana da Supertaça, que assinala a abertura oficial da nova temporada futebolística, destaco a feliz oportunidade de um trabalho jornalístico assinado pelos enviados-especiais de A Bola aos Estados Unidos da América, Paulo Alves e Sérgio Miguel Santos, para acompanharem a participação do Benfica na International Champions Cup, que conta uma história bonita, em que os nossos emigrantes impediram que a estátua de Eusébio fosse depositada numa lixeira.
Em traços gerais, uma réplica mandada construir pelo mesmo emigrante Vítor Baptista, que ofereceu a que está no Estádio da Luz, foi inicialmente colocada no Gillette Stadium, onde se realizou o jogo de anteontem com o Milan, mas teve de ser transferida para o Estádio Lusitano, em Ludlow, pequena localidade próxima, sede do Pioneers, clube de forte influência portuguesa na região, para escapar à morte certa devido à edificação de uma zona comercial.
Os nossos compatriotas, como escreve Paulo Alves, assumiram a responsabilidade pela operação de salvamento da peça já muito mal tratada.
Dedicaram-se de corpo e alma à sua recuperação, um trabalho que implicou prolongado, minucioso e generoso empenho para perseveração da imagem de um símbolo nacional. Demorou um ano, mas a obra ficou concluída e a estátua de Eusébio continua a poder ser vista e admirada por quem vive ou por quem tiver a curiosidade de passar por Ludlow, com 20 mil habitantes, no interior do estado de Massachusetts.
Foi uma tentativa gratificante, até para memória futura. Em tempo de ódios e rancores, os portugueses da América revelaram um sólido espírito de comunhão que deve fazer corar de vergonha os dirigentes vaidosos, os intermediários sem escrúpulos ou os especialistas em comunicação reles, todos eles agarrados ao futebol por sentirem que o pasto é fértil para engordarem interesses e negócios. Porque, ao contrário do que anda por aí a dizer uma senhora, a culpa não é do futebol, mas de quem nele se alberga com más intenções, e gente dessa infiltra-se na política, onde tudo começa, como em todas as áreas da sociedade que cheirem a corrupção e lucro.

Três emigrantes, um do Benfica e dois do Sporting, em representação de muitos outros, julgo poder dizer-se, colocaram o orgulho de serem portugueses acima dos penáltis, dos árbitros e de todas as futilidades que caracterizam as discussões de café sobre um jogo fantástico e com uma força aglutinadora sem comparação em qualquer outro desporto ou actividade social.
Enquanto cidadão cumpridor das suas obrigações, que há décadas acompanha o futebol no que ele tem de bom e de mau e que dispensa a voz protectora dos salvadores da pátria, curvo-me perante a disponibilidade, a coragem e a solidariedade de quem deu um sublime exemplo daquilo que deve ser a verdadeira e pura competição: uma história de encantar contada por Alcino Pereira, adepto do Benfica, e Frederico Grelha e João Bernardo, adeptos do Sporting.

A lição chega de longe dada por gente humilde e que tem do País e do seu futebol uma visão crítica e azeda, mas também sincera e justa. Para quem vive fora, a imagem de Portugal sobrepõe-se às questiúnculas clubistas que por cá assumem relevância excessiva e até doentia.
A população emigrante, seja em que continente for, preza a rivalidade saudável e todos acorrem quando é preciso dar apoio a outros emblemas, sem olhar a cores, porque acima de tudo está o bom nome do País. Na minha experiência profissional de décadas tive o prazer de testemunhar incontáveis situações que traduzem esse admirável sentido de entreajuda.
Lamenta-se, porém, que do lado de dentro de insista em olhar para o fenómeno de uma forma desajustada a uma sociedade moderna. Não é assim, Manuel Fernandes? Começar já a falar de árbitros e de arbitragem a propósito de nada só será entendido pelos maldispostos congénitos. Com tal mentalidade, é difícil as coisas mudarem. Porque de equilíbrio emocional, como refere, precisam mais alguns presidentes do que os árbitros, devendo exigir-se-lhes tento na língua e que se preocupem apenas com o que se passa na casa de cada qual.
Mais uma vez, Luís Filipe Vieira partiu na frente, ao anunciar o novo lema do seu clube: «Ganhar pelo Benfica, vencer pelo Benfica, festejar pelo Benfica e nunca contra ninguém». Deve dar para todos perceberem, os que quiserem, pelo menos."

Fernando Guerra, in A Bola

Adiantamentos e atrasos de vida

"O Benfica teve Beja como porta de entrada em Portugal. Já tinha sucedido, antes, com o Sporting, também em voo vindo dos Estados Unidos. Desta vez, o avião adiantou 40 minutos, coisa que está longe de ser uma raridade em voos intercontinentais, mas o que seria um tempo ganho tornou-se tempo perdido, uma incómoda espera, dentro do avião. Os serviços de estrangeiros e fronteiras vieram, entretanto, a público com um comunicado, explicando que a culpa não era dos serviços, até porque a chegada estava prevista para as 7 e 40 e os seus homens pegaram ao serviço às 7 em ponto e ainda viram as derradeiras manobras do avião a arrumar-se na pista.
Espera-se que a culpa, desta vez, não venha a recair num qualquer pobre adjunto de secretário de estado, como sucedeu nas golas inflamáveis. Aliás, o problema nem foi grave; terá sido, apenas, incómodo. Talvez não seja necessário alguém ter de pedir a demissão, sacrificado como um cordeiro de Deus. Porém, vale a pena lembrar que ainda há poucos meses havia em Portugal uma discussão política sobre para que serviria, afinal, um aeroporto em Beja. Havia, na altura, quem defendesse a importância de uma alternativa a um sobrelotado aeroporto de Lisboa, sobretudo, para voos charters. Ora o futebol tem muito força. Uma chegada, em festa, do Benfica ou do Sporting, certamente iria ajudar à tese de que o aeroporto de Beja não só deve continuar a existir, como deve ser mais utilizado. Infelizmente, uma chegada, das raras que acontecem, com falhas favorecerá a tese de que quanto mais depressa afastarem as avezinhas do Montijo, melhor. Ainda por cima fica perto do Seixal e de Alcochete..."

Vítor Serpa, in A Bola

Mais um treino...

Benfica 6 - 0 Cova da Piedade

Mais um jogo-treino, desta vez no Seixal... e aparentemente com a integração de alguns jogadores que estavam a treinar à parte (Willock... seria interessante perceber se o Kalaica também terá sido utilizado!), além do Vinicíus...

Superação

"Existem imagens que valem mais do que mil palavras. Imagens que falam por si sobre a entrega, a dedicação, a ambição e espírito de equipa quando se trabalha para uma vitória. João Vítor Oliveira voou literalmente para a vitória. O momento do seu mergulho sobre a linha da meta que garantiu o triunfo dos 110 metros barreiras ficará para sempre na memória de quem assistiu. Um momento icónico e único que importa dar a conhecer e registar e que expressa bem o que é a mística do Benfica. A garra, a luta e o poder de superação num momento mágico de luta entre dois atletas que tudo deram em prol das suas equipas.
A vencedores e vencidos, o mesmo respeito quando se defende desta maneira as suas camisolas.
Foi um dos momentos fortes deste fim de semana, em que a equipa masculina de atletismo do Sport Lisboa e Benfica conquistou o 9.º título consecutivo no Campeonato Nacional de Clubes. Aquilo que, à primeira vista, poderia parecer (para alguns adeptos da modalidade) um resultado fácil, não o foi porque também há muita competitividade entre os adversários. Foi mais um triunfo que se justifica pela estratégia e organização, espírito de grupo, elevada atitude competitiva e forte aposta na qualidade da prata da casa.
O segundo lugar da equipa feminina merece também o reconhecimento de todos, num grupo em que perto de 80% das atletas são provenientes da formação e em que Marta Pen foi a referência.
Há um extenso lote de atletas habilitados para representar o Clube (um grande plantel, se preferir) e todos se sagraram campeões nacionais. Destaque, ainda assim, para aqueles que constituíram este ano a equipa efectiva em pista, garantindo novamente ao SL Benfica a presença na Taça dos Clubes Campeões Europeus do próximo ano.
Para eles um justo reconhecimento e o reafirmar de uma estratégia em que a principal aposta passa pela formação, ficando o registo de uma equipa com média de idades a rondar os 24 anos e em que perto de 60% tem caminho feito nos escalões jovens do Benfica.
É este, também, o sucesso do ecletismo. Um sentimento comum de competir e de sentir, com ambição, mas respeito por todos. À Benfica! Uma mística especial que, também no Atletismo, há muito é vivenciada numa modalidade que veste de águia ao peito há 112 anos.
Apesar do bom nível competitivo da prova e da melhoria substancial que se tem notado, por exemplo, na divulgação dos resultados, com actualização quase imediata na página da Federação Portuguesa de Atletismo, nota final para a necessidade de rever e melhorar alguns aspectos. Estes campeonatos, até pelo nível dos atletas em pista, merecem mais promoção e atracção do público para assistir ao vivo. São os próprios atletas mais habituados à elite internacional a alertar: em provas deste nível, exige-se naturalmente maior rigor técnico no registo de marcas e no ajuizamento.
Uma aposta ainda mais forte na formação de juízes, não apenas no aspecto técnico, levará a uma maior credibilização da modalidade e do espectáculo que esta é capaz de proporcionar. Neste como noutros desportos, não pode haver decisões por estatuto ou cor de camisola: ou é nulo ou não é nulo, ou é linha ou não é linha, ou se marcha ou se corre...
Sendo certo que os responsáveis desta Federação têm feito um esforço no desenvolvimento da modalidade — sempre uma das mais carismáticas dos Jogos Olímpicos —, sem nunca esquecer o trabalho e o investimento que é feito pelos clubes, espera-se também que seja reequacionada, por exemplo, a opção deste ano, por uma sessão nocturna que levou a primeira jornada de uma primeira divisão a terminar bem perto das 23h00."

As cabecinhas pensadoras do Seixal

"Uma surpreendente jogada de reposição de bola entre Vlachodimos e Ruben Dias no último jogo do Benfica frente ao Milan gerou uma discussão global nos últimos dias e deu enormes créditos aos laboratórios encarnados, apesar do resultado aparentemente pífio da iniciativa.
As cabecinhas pensadoras do Seixal tiveram boa intenção: toque do guarda-redes, devolução de cabeça pelo defesa e rápida reposição à mão para um lateral em corrida de contra-ataque, ultrapassando pela surpresa a primeira barreira do adversário.
Fica por saber, por enquanto, se o Benfica procura ressuscitar as reposições de bola longas, a que deixara de recorrer desde a saída de Ederson e que também caiu em desuso na generalidade das grandes equipas mundiais, devido à baixa percentagem de sucesso: apenas 30 a 35 por cento dos pontapés de baliza compridos não terminam em posse do adversário. Como, de resto, aconteceu com esta experiência, com Grimaldo a perder a bola e a não conseguir dar sequência ao lançamento do guarda-redes.
Assim, o resultado prático deste movimento, tendo jogadores com qualidade técnica para o executar em segurança tão perto da baliza, será completamente diferente, subvertendo a intenção do Benfica. A devolução ao guarda-redes dentro da grande área vai proporcionar-lhe cerca de 20 segundos de passividade, entre o agarrar, deixar-se cair, levantar-se, passear na área e finalmente repor a bola, sendo propício à “queima” de tempo nas fases finais dos jogos...
Ou seja: o que parecia um inteligente movimento de ataque terá muito mais aplicação como movimento defensivo e de anti-jogo.
Foi por isto, aliás, que muitos acharam imediatamente que se tratava de um lance à margem da lei e que o próprio árbitro americano terá advertido para não se repetir naquele jogo. E que, muito provavelmente, na próxima revisão, o International Board acabará por ilegalizá-lo com uma norma excepcional."

Da América à América com América pelo meio...

"A presença do Benfica no Troféu Charles Miller de 1955 foi marcante na expressão do nome do Clube no Brasil. Seis equipas jogando todas contra todas. Não deu para ganhar, mas foi um jogo dos encarnados, no Maracanã, que atraiu maior números de espectadores: mais de 100 mil!

O Benfica está na América, do Norte, e eu aproveito para ir a um dia em que o Benfica estava na América, do Sul, para jogar contra o América, do Rio. Rio de Janeiro, como está bem de ver.
Ora, isto passou-se em Julho de 1955. Dia 3 de Julho.
Eram aqueles tempos nos quais as digressões do Benfica começaram a tornar-se famosas. Dias e dias e dias a fio longe de Portugal, Férias, para que vos quero. Mas o nome da águia era grande e ia sendo chamado um pouco de toda a parte.
Agora anda o Benfica pelos Estados Unidos.
Então, andava o Benfica pelo Brasil.
O América venceu, no Maracanã, os encarnados por 4-2. Um calor daqueles, sufocantes, próprio de ananases como dizia o divino Eça.
Uma sede incomensurável: os jogadores portugueses sempre a correrem para o banco à procura das garrafas de água, prestes a caírem para o lado de desidratação.
Mas, vamos lá ver: nada de desculpas batatas. Otto Glória, o treinador, conhecia bem o ambiente em que jogava. Reconheça-se, em primeiro lugar, mérito ao adversário, que ganhou bem segunda rezam as crónicas.
Depois, pela ordem natural estabelecida, fala-se dos méritos benfiquistas. Que os houve. Costumo dizer que a história dos grandes clubes está também ela, assente em grandes derrotas. E pode sair-se de campo orgulhoso após uma derrota. Como foi o caso.
Até ao ponto mais alto da coragem
A primeira parte do encontro foi equilibrada e terminou equilibrada: 1-1. Alarcon marcou para o América, Caiado empatou para o Benfica, as coisas decorriam para cá e para lá, golpe e contra-golpe, o publico parecia feliz.
Um periódico brasileiro trouxe à estampa: 'O Benfica foi, durante muito tempo, à força de coração e de aprego à luta, de enorme abnegação, uma verdadeira ameaça para o prestígio do futebol de Santa Cruz. Não surpreende, pois, que os americanos, neste momento a melhor equipa do Rio de Janeiro, hajam redobrado de vontade, pondo em equação, no relvado do Maracanã, toda a sua classe de futebol artístico e prestigioso'.
Ora, portanto, o Benfica punha estes americanos, do sul, americanos-brasileiros, em sentido.
Leónidas fez o 2-1. O Benfica respondeu de imediato e empatou. A meia hora do fim, tudo muito tem-te-não-caias.
Ainda por cima, tal como acontece agora na América (do Norte); disputavam ambas as equipas um torneio bem alargado, Querem ver? Corinthians, América (RJ), Flamengo, Palmeiras, Peñarol e Benfica. Jogando todos contra todos. Chamaram-lhe Troféu Charles Miller.
O Benfica tinha perdido (0-1) com o Flamengo, na jornada inicial. Depois 2-0 ao Peñarol e 2-1 ao Palmeiras.
É altura de o América arrancar um esforço final. Os benfiquistas estão demasiado cansados para responderem. Coluna, que se exibira de forma extraordinária nos confrontos anteriores, estava estranhamente apático. Tal como Costa Pereira, que facilitou muito nos dois golos finais do América.
Depois, nova derrota, frente ao Corinthians. Um quarto lugar final atrás de Corinthians, América e Flamengo.
E um registo para a história de um torneio que ficou guardado para sempre na memória dos brasileiros: foi precisamente o América - Benfica o jogo que chamou mais gente às bancadas. 87.689 pagantes estiveram no Maracãna para uma assistência total de mais de 100 mil pessoas.
É assim, com passadas gigantescas como esta, que se afirmam os nomes incontornáveis do futebol do mundo. Às vezes, mesmo à custa de derrotas...
O Benfica saía do Maracãna de peito enfunado. Sob os aplausos estralejantes de um público encantado."

Afonso de Melo, in O Benfica

Uma muralha chamada Bento

"No final da Taça de Portugal 1982/83, o guardião 'encarnado' foi a estrela da partida

Na antevisão de um grande jogo, as principais previsões prendem-se com quem serão os autores dos golos, e por quanto se irá ganhar. Este é um dos muitos casos que evidencia a diferença de tratamento entre os jogadores de campo e o guarda-redes, tantas vezes esquecido. É o futebolista que acompanha a partida de longe, sozinho, 'também chamado de portero, guarda-metas, arqueiro, guardião ou goalkeeper, mas poderia muito bem ser chamado de mártir, vítima, saco de pancadas, eterno penitente ou favorito das bofetadas. Dizem que onde ele pisa, nunca mais cresce a relva. (...) Carrega nas costas o número um. Primeiro a receber? Primeiro a pagar. O guarda-redes tem sempre a culpa. E, se não tem paga do mesmo jeito'.
Contudo, há jogadores que ocupam essa posição e ainda assim se tornam, verdadeiras lendas. Manuel Bento faz parte dessa lista restrita. Tinha qualidades exímias, que faziam com que fosse um dos melhores na sua posição. Com excelentes reflexos, enorme coragem e uma elasticidade soberba, transmitia segurança não só aos companheiros de equipa como aos adeptos benfiquistas. Na final da Taça de Portugal 1082/83, demonstrou todas essas qualidades, assinalando uma exibição memorável.
Num jogo envolto em polémica, em que o outro finalista, o FC Porto, insistiu que o encontro se realizasse no seu estádio, levando a que a partida fosse disputada apenas em Agosto, o Benfica, a jogar em casa do rival, não ficou condicionado pelo ambiente. Aos 20 minutos, Carlos Manuel inaugurou o marcador com um potente remate. O resultado permaneceria assim até final do encontro. A vantagem foi dada pelo médio, mas a vitória foi garantida por Bento: 'saltou a muralha da entrega, da renúncia, do conformismo. O seu exemplo, defendendo tudo o que era tratável mais o que poderia ser fatal, impulsionou os colegas'. A imprensa foi unânime a classificar o guarda-redes 'não só a figura mais saliente do Benfica, como a maior figura do jogo. O seu nome ficará indelevelmente ligado a mais esta «Taça» conquistada pelo grande clube da Luz (...) Agilidade felina. Garras de tigre. Impressionante a sua confiança a sair dos postes e a dominar os lances'. Ainda mais admirável era manter intactas estas características aos 34 anos. Bento jogaria mais nove épocas de 'águia ao peito'.
Saiba mais sobre este fenomenal guarda-redes na área 23 - Inesquecíveis do Museu Benfica - Cosme Damião."

António Pinto, in O Benfica

Logo ali, por detrás da capela...

"Aquilo que o Bera-Bera mais inveja no Recreio é que pode ter tido Eusébio mas nunca teve um Pelé, e branco como o nosso

Alma é Águeda. Foi o Manuel Alegre que lhe chamou assim e fez muito bem. Alma pode vir aí pendurada num qualquer singular, mas não há nada de mais colectivo. Sobretudo para quem é de Águeda, do sangue e da infância. Para quem é da alma. Eu, por exemplo, sou de Águeda há mais de trezentos anos. E só o sangue consegue explicá-lo.
Logo no início do segundo capítulo o Zamora já tinha defendido um penálti e o Neca Pereira mandou um biqueiro de cerca de trinta metros: «A bola, diziam, porque, como se sabe, eu não vi, bateu na barra e transpôs a linha de golo. Isto era o que dizia toda a gente menos o meu pai. Ná, a bola não entrou». Mas que houve confusão, houve. «Durante muito tempo, em Alma, não se discutiu senão a pancadaria no comício e a invasão do campo de São Cristóvão a poucos minutos do fim do jogo entre o Beira-Rio e o Vista Alegre». O Vista Alegre até podia ser o Vista Alegre. O Beira-Rio era o Recreio. O campo de São Cristóvão era o campo de São Sebastião, como está bem de ver. Como está bem de ver para quem é de Águeda, claro! Ou de Alma, como é o caso. Por isso a gente sabe que o Zamora também não era o Zamora: era o Salamanca.
O Beira-Rio não era o Águeda porque, para nós, em Águeda, nunca houve o Águeda. Houve sempre o Recreio. O Recreio das camisolas grenás e dos calções azuis que um dia chegou à I Divisão e recebeu o Benfica com o campo cortado e as pessoas sentadas no pelado, junto às laterais, com guardas-republicanos a cavalo, sobre as linhas de cal, como se fossem guarda-costas dos fiscais. A malta gritava: «Tira o cavalo da frente! Deixa-me ver a bola!». E muitos não sabiam se se estavam mesmo a referir ao cavalo se estavam a chamar besta ao guarda republicano que já tinha as orelhas a arder tanto como as do árbitro que era o Carlos Valente e do qual fui amigo.
Mas isto foi no Redolho, ou no Sardão, se quiserem, não no São Sebastião que, entretanto, já servia para que lhe nascesse em cima o mamarracho da Câmara Municipal, estragando a Venda Nova que sempre foi antiga até que, na altura de ser antiga, como agora, passou a ser nova com tanto prédio mal enjorcado a nascer esquina sim esquina não.
O campo de São Sebastião era do meu bisavô Afonso, o Grande Afonso, aquele que tinha sempre a porta de casa aberta para quem fosse de Águeda, ou de Alma, e gostava de repetir que Águeda era terra de gente de bem, que «Águeda era o Mundo», mas Águeda foi mudando, a alma também, ficou uma Alma com pouca alma, uma Alma que sobrevive ainda dentro de alguns que têm Águeda nas veias, acima e abaixo na corrente da infância que, mais cedo ou mais tarde, vai parar ao coração.
Há dois dias, o Rui Mónica, que é agora o presidente do Recreio, cujo pai também lá jogou - era o Rui Rodrigues, não o Rui Rodrigues, mas o nosso Rui Rodrigues - disse-me para ir a Águeda, ver a apresentação da equipa, um Recreio de Águeda-Beira-Mar, que calhou hoje mesmo, sábado, e é aquele jogo que todos os aguedenses gostam de ganhar porque o Beira-Mar, para nós, será sempre o Bera-Bera, assim um clube armado ao fino, que já andava na II Divisão quando o Águeda foçava nas Distritais. O problema é que o Bera-Bera nunca teve jogadores tão históricos como o Fanfas, o Pinto Gaião, o Febras, o Benga ou o Lelé que, assim, todos juntos, podiam dar um romance do Machado de Assis. Mas daquilo que o Bera-Bera mais inveja no Recreio é não ter tido Pelé.
Toda a gente sabe que, lá no Mário Duarte, que era, por sua vez, tio-avô do Manuel Alegre - afinal Aveiro e Águeda não ficam assim tão longe - e foi guarda-redes e fundador do Belenenses, jogou o Eusébio, o Eusébio autêntico, o meu querido Eusébio com o qual dividi tantas e tantas conversas que dariam um livro e acabaram por dar dois, mas pouca a gente sabe, fora de Águeda, que no Recreio jogou o Pelé, aliás o Carlos Eduardo, por extenso Pelé. Vendo bem, o Pelé também não era Pelé, era Edson Arantes do Nascimento, e o nosso Pelé, o de Águeda, além do divino atrevimento de se chamar Pelé ainda tinha o descaramento esplêndido de não ser crioulo como o moço de Três Corações, mas tão branco como qualquer natural de Ois da Ribeira, de Assequins, da Mourisca ou da Alagoa.
Por isso, hoje, quando entrarem no campo que fugiu, depois de 1974, de junto da capela de São Cristóvão, que é a capela de São Sebastião, para passar para a beira-rio, não longe das desaparecidas piscinas do Sport Algés e Águeda, os jogadores do Bera-Bera sabem que, mesmo ganhando, sairão sempre derrotados. Porque o Recreio é o clube de Alma. E o Manel nunca nos deixará esquecer.
- Equipa de merda - disse.
Eu não gostei.
- Podem não jogar nada, mas são os nossos.
- Tens razão. Não jogam nada, mas são os nossos."

Pelo respeito, pela tolerância, pela ética, pelo Desporto na sua essência

"Melhorar as condições dos espectáculos desportivos deve ser um desígnio de todos, mas é assumidamente um objectivo desta nova Autoridade, num esforço contínuo e conjunto.

Assinalou-se no passado dia 22 de Julho, em Viseu, a cerimónia de inauguração das instalações da Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto (APCVD). Esta efeméride marca o culminar de um primeiro estádio de desenvolvimento de um novo serviço central da administração directa do Estado, criado de raiz, depois de meses de intenso trabalho de diagnóstico, planeamento, recrutamento e selecção de recursos humanos, aprovisionamento de bens e serviços, organização de metodologias de trabalho, enfim, todo um trabalho essencial à criação das fundações sólidas que qualquer obra necessita.
A presença de tantas personalidades da área do desporto, a par de várias entidades dos domínios público e privado, foi um claro sinal de união e de compreensão dos riscos em torno de uma temática que teima em estar na ordem do dia. Foi também demonstradora da importância de uma missão que, juntos, temos pela frente, da urgência em agir perante uma realidade que se torna mais densa e complexa, que se entranha, que se apodera de algo de inestimável valor social, educacional e formativo como o Desporto. Falamos, como perceberão, dos fenómenos de violência, racismo, xenofobia e outras formas de intolerância em espectáculos desportivos de natureza profissional ou amadora, mas também de fenómenos criminais mais organizados, que se infiltram e legitimam a sua base de poder em torno das manifestações desportivas.
A instalação da sede desta nova Autoridade fora da grande área metropolitana de Lisboa, justificando-se por objectivos de descentralização administrativa, encontra na vibrante cidade de Viseu (e na excelente capacidade de acolher das gentes beirãs) um adequado contexto e ecossistema para desenvolver a sua acção. A aquisição de ferramentas tecnológicas de automatização de processos, de colaboração e de comunicação em rede, essenciais nos dias de hoje, facilmente mitigam a distância da capital, ao mesmo tempo que nos permitem evitar elevados custos patrimoniais associados ao seu mercado imobiliário.
Hoje, com as traves mestras erigidas e com as suas próprias instalações, a Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto tem condições para dar os seus primeiros passos de forma sustentada, demonstrando paulatinamente a mais valia que pode representar, pretendendo assumir-se como uma entidade:
1. Especializada e credível, orientada por princípios de imparcialidade e isenção;
2. Dotada de espírito de missão na protecção do desporto e dos valores que lhe são inerentes;
3. Consequente e célere na sua acção sancionatória em ilícitos contraordenacionais;
4. Potenciadora de uma estratégia coordenada de exclusão dos comportamentos de risco dos recintos desportivos;
5. Força motriz de uma permanente ação de diagnóstico e adequação do modelo nacional aos desígnios da nova Convenção Europeia (a Convenção de Saint-Denis).
A APCVD terá de pautar a sua intervenção por duas vertentes distintas. A primeira constituir-se-á como uma ação construtiva e profilática, trabalhando em parceria com os demais parceiros no sentido de promover a capacitação e partilha de boas práticas, visando elevar os padrões globais dos três pilares defendidos na Convenção de Saint-Denis: a) proteção; b) segurança; c) hospitalidade e qualidade dos serviços.
A segunda vertente baseia-se especificamente no desenvolvimento de uma estratégia de exclusão de comportamentos de risco, o que passará pela aplicação de medidas de interdição de acesso a recintos desportivos. Estas medidas de interdição, um reconhecido fator de sucesso do modelo inglês de prevenção da violência nos espectáculos desportivos (as denominadas banning orders), podem ser aplicadas pela APCVD no âmbito dos processos contraordenacionais (em ilícitos de mera ordenação social), mas também pelos Tribunais, no âmbito de processos judiciais (ilícitos criminais) e, finalmente, pelos próprios organizadores e promotores desportivos, no âmbito disciplinar.
Importa ter em conta, contudo, que esta nova autoridade não deverá ser vista como uma panaceia, um antibiótico isolado cujo sucesso da toma se manifesta nos dias seguintes, mas antes como parte de um conjunto de intervenientes e de medidas necessárias para alterar o contexto actual.
Dependeremos da capacidade de desenvolver um trabalho de cooperação, de fortalecimento de parcerias, da promoção de uma intervenção múltipla, concertada e capacitadora dos diversos intervenientes: autoridades judiciárias e órgãos de polícia criminal, forças de segurança, autoridades de protecção civil e emergência, organizadores e promotores das competições (federações, ligas e clubes), dirigentes e demais agentes desportivos, órgãos de comunicação social, adeptos do desporto. 
Melhorar as condições dos espectáculos desportivos nas áreas da protecção, da segurança, da hospitalidade e qualidade dos serviços deve ser um desígnio de todos, mas é assumidamente um objectivo desta nova Autoridade, num esforço contínuo e conjunto.
Em contraciclo com o escrutínio imediatista de alguns públicos, a Autoridade necessitará de espaço e de tempo de afirmação. Em regra, mudanças sólidas e consequentes, sobre realidades complexas, não são visíveis de um dia para o outro. Não deveremos, ainda assim, menosprezar o poder transformador de plantar uma semente.
A propósito da celebração de mais uma edição do “Dia Internacional Nélson Mandela”, no passado dia 18 de Julho, data do seu aniversário, julgamos relevante relembrar um excerto do discurso de Mandela na cerimónia de atribuição dos prémios Laureus, no ano 2000, que nos estimula a reflectir sobre a dimensão mais alargada do desporto, tantas vezes esquecida:
“O Desporto tem o poder de mudar o mundo. Tem o poder de inspirar. Tem o poder de unir as pessoas de uma forma que poucas outras coisas podem fazer. Fala aos jovens numa linguagem que eles entendem. O desporto pode criar esperança onde outrora só havia desespero. É mais poderoso do que os governos na destruição de barreiras raciais. O desporto ri na cara de todos os tipos de discriminação.”
Quase 20 anos depois, estas declarações continuam a manter vivo o carácter do seu autor. 
Independentemente da sua condição profissional, amadora ou até escolar, é esta a verdadeira essência e identidade do Desporto. É assim que o devemos preservar, não o deixando servir de veículo de promoção de ódios e de outros sentimentos nocivos que corroem o tecido social, a capacidade de cooperar e coexistir pacificamente em comunidade, com tolerância e respeito pelo próximo. 
Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto, “pelo respeito, pela tolerância, pela ética, pelo Desporto na sua essência”.
Vamos trabalhar juntos?"