"A propósito do caso Michel Platini antigo presidente da UEFA detido por suspeitas de corrupção relativa à organização do Campeonato do Mundo de futebol - Qatar (2022), Poiares Maduro, antigo Ministro do XIX Governo Constitucional presidido por Passos Coelho, publicou no semanário Expresso (2019-06-22) um artigo intitulado “FIFA o Cartel de Zurique” que coloca em questão o mundo do futebol internacional. Mais recentemente, Poiares Maduro, que durante um curto período de tempo, presidiu ao Governance Committee e o Independent Review Committee da FIFA, portanto, sabe do que fala, numa entrevista ao jornal O Jogo (2019-07-12), voltou a insistir no tema afirmando que “é praticamente impossível que o futebol se consiga reformar a si próprio. Há uma lógica de cartel que não se consegue combater dentro do próprio cartel. Há uma cartelização do sistema, associada a uma enorme centralização do poder e sem escrutínio". E concluiu pela necessidade de “uma intervenção externa da União Europeia (UE) para conseguir resultados efectivos na criação de uma modalidade mais justa e competitiva”.
Infelizmente, Poiares Maduro está enganado, mas tem razão.
Está enganado na medida em que a intervenção externa dos poderes políticos no mundo do desporto trata-se de um atentado à Declaração da Salvaguarda da Independência do Desporto Federado assinada, em 1977, no âmbito do Conselho da Europa, pela generalidade dos ministros responsáveis pelo desporto dos países europeus que, no quadro do Modelo Europeu de Desporto (MED), defenderam que "um controlo estatal do desporto nacional, que limite bastante o papel a desempenhar pelos organismos desportivos dirigentes, está em contradição com os princípios básicos sobre os quais assenta a política desportiva nos países da Europa Ocidental". A grande virtude da Declaração da Salvaguarda da Independência do Desporto Federado foi a de ter estabelecido uma linha de demarcação entre as políticas públicas em matéria de desporto desenvolvidas nos países de democracia liberal e aquelas que eram processadas nos países que viviam debaixo do regime da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e seus satélites ou da República Popular da China (RPC) em que as organizações desportivas eram uma simples extensão da estrutura político-administrativa dos respectivos países. E as diferenças, no que diz respeito aos benefícios para a generalidade dos cidadãos eram abissais. Segundo Manfred Ewald ex-presidente da Federação de Desporto e Ginástica da República Democrática Alemã (RDA) de 1963 a 1988, o desporto no país tinha como missão “trabalhar para a educação de personalidades socialistas, ambiciosas de realizarem altas performances para a glória da RDA”. Em 2000, Manfred Ewald, enquanto responsável pelo programa de doping na RDA, acabou por ser julgado e condenado. Por outro lado, segundo Willi Weyer ex presidente da Federação Alemã de Desportos da República Federal da Alemanha (RFA) de 1974 a 1986, o desporto no país tinha como missão “proporcionar alegria, felicidade e libertação ao maior número possível de indivíduos”. Portanto, as opções em matéria de políticas públicas eram claras. Se nos regimes socialistas de economia estatizada os cidadãos eram o meio que devia estar ao serviço do desporto, já nos regimes democráticos de economia de mercado o desporto era o meio que devia estar ao serviço dos cidadãos.
Entretanto, com a implosão da URSS e da queda do Muro de Berlim os dados do problema alteraram-se radicalmente. Os governos das democracias liberais passaram a aligeirar as suas próprias responsabilidades em matéria de políticas públicas no âmbito do desporto. E a generalidade dos dirigentes das organizações desportivas, administradas através de regimes presidencialistas sem uma real separação de poderes, quer dizer, em completa roda livre, entraram numa autêntica paranóia de conquista de resultados desportivos e de medalhas olímpicas capazes de lhes garantir o apoio dos patrocinadores; mantê-los agarrados ao poder; e alimentar a propaganda do surgente neomercantilismo que considera os países como marcas, os governos como empresas e os cidadãos como clientes. E, à semelhança daquilo que se passava nos regimes de democracia popular, os dirigentes desportivos integraram alegremente a nova oligarquia e, a partir da falsa justificação de estarem a cumprir uma missão de ordem social, sem qualquer controlo externo independente e, minimamente, credível, em prejuízo de uma visão humanista do desporto, passaram a privilegiar o rendimento, a medida, o recorde, o espectáculo, o negócio, as naturalizações ad hoc e o profissionalismo precoce e a alimentar o circo olímpico em que, sem qualquer pudor, começaram a degradar o desporto do século XXI. Quer dizer, os leninistas, trotsquistas e maoistas que puseram os mais diversos países do mundo a ferro e fogo tendo, até, ensaiado destruir o próprio Movimento Olímpico, sem alterarem uma vírgula às suas convicções e sem qualquer preconceito de ordem moral, deslocaram-se, de armas e bagagens, do lado sinistro da história para o lado das democracias liberais e, à conta do dinheiro dos contribuintes, passaram a desenvolver políticas públicas em matéria de desporto de matriz ideológica alienante. Tomaram banho, cortaram o cabelo, apararam a barba, liberalizaram o discurso e começaram a interessar-se pelo “dress code” das cerimónias burguesas da sociedade desportiva a fim de conquistarem o estatuto social que ambicionavam. O desporto democrático acabou tomado por uma chusma de dirigentes desportivos que, à semelhança daquilo que se passava nas democracias populares, perpetuam-se agarrados aos poleiros do poder através de processos eleitorais que são autênticas farsas, a saltar alegremente de poleiro em poleiro e, como se tivessem o dom da ubiquidade, a ocupar vários poleiros ao mesmo tempo. Quer dizer, embora, por caridade cristã, lhes tivessem dado o benefício da dúvida, abrindo-lhes até as portas da democracia burguesa a fim de expressarem as suas opiniões, eles nunca deixaram de, verdadeiramente, ser aquilo que sempre foram e, como tal, na posse do poder, passaram a organizar congressos, assembleias plenárias e processos eleitorais onde se deixaram de ouvir quaisquer vozes críticas. E hoje, como refere Poiares Maduro, quem quiser sobreviver tem de, resignadamente, aceitar o silêncio instituído e, sempre que necessário, defender pública e humildemente as posições autocráticas das lideranças porque, na realidade, com estatutos a determinarem a existência listas únicas para todos os órgãos sociais com os presidentes das comissões executivas acumularem a presidência das assembleias plenárias, deixou de existir uma verdadeira separação de poderes ou, sequer, das condições mínimas para uma boa e transparente governação democrática. Em resultado, a corrupção campeia no mundo do desporto onde as comissões de ética são uma anedota, os seus presidentes uns palhaços e os respetivos códigos autêntica letra morta.
Enquanto “cristão novos” abandonaram a tradicional práxis marxista da dialéctica entre o capital e o trabalho da luta de classes para, estrategicamente, adoptarem a lógica subterrânea da revolução cultural gramsciniana enquanto motor da acção política com vista à destruição da sociedade burguesa onde a prática desportiva generalizada, na sua forte componente interclassista, é um dos seus mais preciosos valores. Em alternativa a obtenção de resultados desportivos a nível internacional, mesmo de medíocre qualidade, passou a ser o mantra da acção política a fim de conseguirem o domínio psicológico das populações e aumentar o poder sobre a sociedade. Em muitos países, os sistemas desportivos encontram-se a caminho do caos total onde a conquista de títulos olímpicos e mundiais coexiste com a mais confrangedora ausência de prática desportiva de base ou até mesmo de simples programas dirigidos à generalidade das crianças e dos jovens que, por motivos económicos, não tem quaisquer condições de acesso ao desporto.
O dramático da actual situação é que, entre “o corpo ao serviço da pátria” do ditador de extrema direita Alfredo Stroessner e as “altas performances para a glória da pátria” do ditador de extrema esquerda Erich Honecker, os extremos do espectro politico-ideológico comungam de uma esquizofrenia pelas medalhas olímpicas que está a destruir o desporto social em benefício exclusivo do desporto negócio. A demagogia populista, quer de direita, quer de esquerda, já percebeu que não existe instrumento mais suave e imperceptível de domínio psicológico sobre a multidão do que a propaganda do “somos os melhores” dos resultados desportivos. A Lei da Unidade Mental das Massas cunhado por Gustave Le Bon diz-nos que a generalidade dos indivíduos está disponível para abdicar das suas características pessoais em favor do grupo onde desvanece a sua identidade singular. Acresce que permite subjugar pela ostraca as ideias dos adversários até que, na mais completa ausência de ideias, seja possível instituir a ideologia do pensamento único sob a direcção de uma nova oligarquia de especialistas da mediocridade. Nesta perspectiva, o que está a acontecer em muitos sistemas desportivos por esse mundo fora é uma nauseabunda promiscuidade entre o público e o privado, entre o social e os negócios, entre o Estado e a Sociedade em que, os próprios Comités Olímpicos Nacionais (CONs), que no passado foram agentes promotores da independência do desporto e do livre associativismo, em muitas circunstancias, hoje, subsídio-dependentes, não passam de instrumentos políticos ao serviço dos poderes instituídos quer eles sejam de direita quer de esquerda.
A sociedade pós-capitalista da valorização do conhecimento anunciada por Peter Drucker não está a acontecer no desporto. O que está a acontecer é a institucionalização de uma intolerável oligarquia suportada por ideologias extremistas tanto de esquerda quanto de direita que pretende apropriar-se da economia, da sociedade e do Estado, enquanto objectivo último do neomercantilismo que se traduz num capitalismo de Estado. E a generalidade das democracias liberais ainda não compreendeu no logro em que está a cair. A desagregação da família tradicional, a institucionalização do sexo fácil, o comércio de telemóveis baratos, a distribuição de cerveja ao preço da chuva, a liberalização do consumo de drogas, a quantidade industrial dos festivais de música, o desaparecimento dos clubes tradicionais, a presença constante na comunicação social do futebol de manhã, à tarde e à noite, estão a gerar um preocupante entorpecimento social que se traduz em assustadoras taxas de abstenção que dão oportunidades aos extremismos, tanto de direita quanto de esquerda, de se afirmarem. E este entorpecimento é alimentado com liturgias desportivas que glorificam as conquistas olímpicas e mundiais em sacrifício da generalização da prática desportiva. Liturgias conduzidas ao mais alto nível dos Estados que, para além de distraírem consciências e de alienarem cidadãos, apagam outras vitórias de diferentes sectores sociais, alimentam vaidades exacerbadas e escondem confrangedoras incompetências em matéria de desenvolvimento do desporto. Em suma, o discurso sabe ao antigamente: os velhos recusam-se a morrer e aos novos não lhes é dada a oportunidade de nascerem. E, por isso, os tempos são propícios ao surgimento de novos monstros sempre dispostos a venderem a alma ao Diabo. Nunca é demais relembrar que nas manifestações na RDA, ao tempo da queda do muro de Berlim, podia ler-se nos cartazes: “abaixo os privilégios dos artistas e desportistas”. E porquê? Porque eles eram um instrumento de entorpecimento de uma sociedade politicamente arrebanhada onde a disciplina escolar de educação física estava vocacionada para a detecção de talentos a fim do desporto produzir medalhas em quantidades industriais num país em que a generalidade da população estava arredada da prática desportiva. O problema é que o retorno desta visão ideológica está a transformar o desporto numa espécie de sociedade estado em que as organizações desportivas do vértice estratégico tanto a nível mundial quanto nacional, estão a ter uma função de fundamental significado na organização tardia do futuro previsto para 1984.
Na linha do socialismo científico, o neomercantilismo está a trazer de volta uma visão social fascista do desporto onde, do Atlântico aos Urais, o apetite burocrático pelos sistemas de controlo do doping em nome da conquista de medalhas olímpicas, é o último sinal da obsessão pelos resultados desportivos das oligarquias desportivas que tomaram conta do poder que pretendem: metamorfosear os Jogos Olímpicos numa espécie de campeonatos do mundo; reduzir a Carta Olímpica a um documento histórico sem qualquer interesse; transformar os praticantes desportivos em consumidores facciosos de espetáculos desportivos; organizar autênticas legiões estrangeiras de atletas a fim de ganharem medalhas olímpicas ao serviço das novas ideologias; subordinar os órgãos constitucionais do Estado aos seus próprios desejos.
O que hoje se está a verificar é que o desporto é o campo ideal para a destruição dos valores tradicionais do mundo Ocidental. Como, há muito, referiu Philipp Melanchthon (1497-1560) “tanto os Jogos Olímpicos como as Odes de Píndaro representam o “paradigma da humanidade europeia”. Por isso, para as novas oligarquias se, por um lado, é necessário esquecer Píndaro, por outro, é fundamental transformar os Jogos Olímpicos numa espécie de circo neomercantilista onde se exibem as mais estranhas excentricidades em nome dos negócios. Quer dizer, o desporto que no passado interagia com a educação e a cultura passou a interagir com o dinheiro e os negócios. E a técnica gramsciniana de programação neurolinguística do controlo psicológico, ao pretender a destruição dos valores da sociedade burguesa, encontrou nos negócios do desporto, do ensino ao alto rendimento, um espaço privilegiado de afirmação ao desencadear uma natural mudança do comportamento relativamente aos valores tradicionais da promoção do desporto cuja expressão mais visível está na obsessão em transformar o desporto num espécie desígnio nacional de tipo protofascista consubstanciado no valor comercial dos resultados desportivos que têm expressão máxima no designado Medalheiro Olímpico. A este propósito, durante a realização em Abuja na Nigéria dos VIII Jogos Africanos em 2003, Jacques Rogge, ao tempo presidente do Comité Olímpico Internacional (COI), afirmou que a organização a que presidia não via com bons olhos a naturalização de atletas por países ricos a não ser por questões sociais. As naturalizações de aviário são um dos mais eficientes procedimentos, de tipo gramsciniano, para destruir os processos de desenvolvimento do desporto de tipo burguês centrados nos interesses e na felicidade das pessoas. Porque, a melhor maneira de destruir a sociedade burguesa de cultura judaico-cristã não é a atacar os quartéis, a afrontar blindados e as polícias de choque ou a participar em manifestações mais ou menos folclóricas onde se gritam umas palavras de ordem sem qualquer significado prático. O importante é, a partir das escolas, dos clubes, das universidades, das federações desportivas e da generalidade das organizações de juventude, atacar as ideias a fim de destruir os valores porque é sobre a destruição dos valores burgueses como são os do desporto que serão construídas as ditaduras extremistas tanto à esquerda como à direita. Em consequência, o MED instituído após a II Grande Guerra Mundial a partir das ideias de Pierre de Coubertin entrou em retrocesso sob o ataque ideológico dos apaniguados da esquerda leninista, trotsquistas e maoista bem como das direitas nazista e fascista. Quer dizer, já não são os governos que podem, abusivamente, desejar intervir no desporto, são as organizações desportivas que, com pouca ou nenhuma representatividade democrática, motivadas por interesses corporativos, políticos e comerciais, acabam por se transformar em autênticos instrumentos de condicionamento político dos órgãos dos Estados chegando a instituir políticas públicas, do ponto de vista ideológico, absolutamente desastrosas. E, assim, vivemos numa situação caracterizada por um mix promíscuo em que os governos foram capturados pelo desporto e o desporto capturado pelos governos.
Hoje, o pensamento de Gramsci, enquanto instrumento de eliminação das identidades nacionais, através da alienação das populações, pela destruição dos valores, é uma das armas mais eficientes do combate ideológico dos extremismos tanto de direita quanto de esquerda. E aqueles que o fazem no âmbito do desporto nem necessitam de se preocupar com a elaboração de programas em conformidade com as suas tentações totalitários. Basta-lhes deixarem que as democracias liberais e sociais democratas, a partir dos seus dirigentes, completamente ignorantes, subjugados pelas vitórias partidárias eleitorais a qualquer custo e totalmente alienados pelas medalhas olímpicas, desenvolvam os seus próprios programas de acordo com os modelos das democracias populares que, ao serviço do neomercantilismo, começaram a adoptar a partir de meados dos anos noventa.
Não sejamos ingénuos. O futebol é, tão só, o sintoma mais visível de um problema muito maior que está a colocar em causa os valores da civilização ocidental e a provocar a degradação social através dos grandes espectáculos desportivos onde as hordas de apaniguados, tal como já aconteceu no passado, um dia, serão sacrificadas.
Por isso, infelizmente, Poiares Maduro está enganado, mas tem razão.
Está enganado porque não se pode aceitar de bom agrado uma intervenção política externa e supranacional no mundo das organizações desportivas, todavia tem razão na medida em que, perante o estado de degradação ético-moral em que o desporto está a entrar, é a única maneira de controlar e disciplinar aqueles que, movidos por interesses inaceitáveis e através de procedimentos de democraticidade mais do que duvidosa, açambarcaram o poder.
Poiares Maduro é um especialista em Direito Constitucional e em Direito da União Europeia. Por isso, à margem dos poderes e dos interesses corporativos instituídos de legitimidade mais do que duvidosa, no quadro dos Direitos do Homem e dos princípios políticos, sociais e económicos que regem a União Europeia, talvez seja tempo de promover o surgimento de um grupo de trabalho de composição diversificada e independente que, para além dos inaceitáveis corporativismos e interesses hegemónicos do COI, da FIFA e da generalidade das Federações Internacionais, elabore um documento que promova uma ampla discussão tendo como objectivo o reajustamento do Modelo Europeu de Desporto às novas circunstâncias e desafios colocados pela sociedade globalizada da 3ª vaga."