"Reli a tradução portuguesa das Edições 70 de Idéologie et rationalité dans l’histoire des sciences de la vie, conhecida obra de um conhecidíssimo autor, Georges Canguilhem, onde encontrei que, nos finais do século XVIII e, nos primeiros anos do século XIX, “uma nova situação da medicina se estabeleceu na Europa, a partir de três fenómenos: 1) o facto, simultaneamente institucional e cultural, a que Michel Foucault chamou nascimento da clínica, que instituiu uma reforma hospitalar, em Viena e em Paris, com a generalização de práticas de exploração, como a percussão (…) e a auscultação mediata (Laennec), com referência sistemática da observação dos sintomas da anatomopatologia; 2) a persistência e o desenvolvimento, na Áustria como em França, de uma atitude ponderada de cepticismo terapêutico, cujo interesse foi sublinhado pelos trabalhos de Ackernbecht; 3) o advento da fisiologia, como disciplina médica autónoma, progressivamente isenta da sua subordinação à anatomia clássica, que mal tinha começado a situar os seus problemas ao nível dos tecidos, sem supor que esses problemas em breve seriam tratados ao nível da célula, ao mesmo tempo que se procurava, na física e na química, tantos exemplos como auxílios” (pp. 53/54). Bastariam estas razões (quando outras não houvesse – e havia) para Canguilhem assim concluir: “Compreendemos agora porque é que, exactamente quando empreendeu a defesa e a ilustração da fisiologia como ciência fundadora de uma medicina verdadeiramente científica, Claude Bernard se aplicou tão arduamente em demarcar a tentativa abortada de Broussais, que pejorativamente classificou como sistema” (p. 56). José Gameiro escreveu um livro de lúcida visão crítica sobre a epistemologia da psiquiatria contemporânea, Voando sobre a psiquiatria (Edições Afrontamento, Porto, 1992). No centro de interesse desta obra, José Gameiro acentua que não é possível uma abordagem ao estudo da psiquiatria, sem uma Epistemopsiquiatria, como afinal não é possível estudar-se qualquer ciência, sem uma teoria do conhecimento científico, ou seja, sem uma epistemologia.
Quando, nos primeiros anos da década de 70 do século passado, as mais cruciantes preocupações pesavam sobre o nosso País, impunha-se à admiração dos universitários portugueses um número selecto de autores de especial saber epistemológico. Refiro-me aos portugueses Adérito Sedas Nunes, Vitorino Magalhães Godinho e Armando Castro e aos franceses Gaston Bachelard, Louis Althusser e Michel Foucault. O Prof. Armando Castro (1918-1999), catedrático da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, foi das figuras que mais vivamente encarnou a consciência da criação da filosofia que as ciências merecem. E, por sorte minha, fez de mim um dos seus inúmeros discípulos, mormente no que a Althusser se refere, deixando no meu caderno de apontamentos os primeiros assomos de uma atitude crítica, relativa à epistemologia tradicional. Não era um cultor sereno da teoria do conhecimento científico, pois que não cultivava a ciência pela ciência. As suas palavras eram norteadas por uma ideologia, mas a evolução histórica das ciências humanas (a concepção grega, a concepção patrística e medieval e a concepção moderna) e as categorias que definem o pensamento epistemológico foi com ele que, pela primeira vez, aprendi a sistematizar. Embora, repito-me, a sua epistemologia fosse, por vezes, uma ressonância sentimental das suas ideias filosófico-políticas. No entanto, as insuficiências epistémicas e, em particular, a ausência da utensilagem teórico-epistémica, que “continuam a originar muitas anfibologias e erros da parte de não poucos cientistas, quando discreteiam sobre os fundamentos filosóficos da sua própria actividade, independentemente de contribuírem validamente para o labor científico sectorial em que trabalham” (Armando Castro, Teoria do Conhecimento Científico, Instituto Piaget, 1993, p. 63)– tudo isto foi com o Prof. Armando Castro que me habituei a esclarecer, a dilucidar, a tornar mais inteligível. Não é pouco, portanto, o que lhe devo...
Passo, agora, a palavra ao escritor português Gonçalo M. Tavares, donde cai, continuamente, o jorro de luz da genialidade: “Conheço um batalhão de gente humaníssima e com este lema bem no centro da sua cachaporra: tudo o que o rodeia e ele não entende é imbecil e portanto desnecessário. Só preciso daquilo que entendo, poderia ser o lema da multidão humana, com a ilusão de ter uma cabeça auto-sustentada. Gosto destes à distância. Ou muito próximos, mas com um vidro no meio” (JL, 2019/4/9). De um génio passo agora ao amor intellectualis Dei, não de Espinoza, mas de Eduardo Lourenço: “A ideia de que um autor do passado, Goethe por exemplo, é inactual, pode num certo sentido defender-se, mesmo para os espíritos que não pretendem afectar com isso o valor intemporal, intrínseco da obra. Goethe seria inactual, exactamente no sentido em que é inactual tudo o que não exprime o que é específico do tempo em que estamos. A sua inactualidade seria do tipo de inactualidade dum coche de D. João V, em relação a um Cadillac” (Eduardo Lourenço, Obras Completas, 1, Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012, p. 52). Inactual parece tudo o que é velho, tudo o que as televisões e as redes sociais não repetem. Esquece este “batalhão de gente humaníssima” e de incontroversa atualidade que a cultura se faz também do concurso indispensável de “grandes contemporâneos”, como Platão, Aristóteles, Galileu, Descartes, Newton, Kant, Hegel, Darwin, Marx, Claude Bernard, Pasteur, Freud, etc., etc. e de uma relação dialéctica intensa “cultura científica-humanidades”, que exige nas ciências um “suplemento de alma” e nas humanidades uma iniludível prática científica. Ou seja, tanto num caso como noutro, interdisciplinaridade. A Profª. Olga Pombo declara, lucidamente: “Passando do nível das palavras ao nível das ideias (…), verificamos que a interdisciplinaridade é um conceito que invocamos, sempre que nos confrontamos com os limites do nosso território de conhecimento, sempre que topamos com uma nova disciplina cujo lugar não está ainda traçado no grande mapa dos saberes, sempre que nos defrontamos com um daqueles problemas imensos cujo princípio de solução sabemos exigir o concurso de múltiplas e diferentes perspectivas” (Coord. Carlos Pimenta, Interdisciplinaridade, Humanismo, Universidade, Campo das Letras, Porto, p. 100).
A interdisciplinaridade anima-se num tríplice protesto: rejeitando um saber fragmentado, dividido, em migalhas; recusando o conformismo das situações adquiridas; não aceitando o divórcio crescente, entre as várias disciplinas universitárias, que dividem e subdividem “esquizofrenicamente” o paradigma científico que justifica uma faculdade, ou um ensino superior. Múltipla pela diversidade dos seus métodos, qualquer ciência é una pelos objectivos que procura. Nas ciências hermenêutico-humanas, o que se estuda é a “condição humana”, cuja complexidade exige a interdisciplinaridade. E, com a interdisciplinaridade, um discurso crítico. A ciência à luz da filosofia e a filosofia sob uma perspectiva científica ensinam uma à outra que todo o conhecimento imediato é abstracto. Digamos doutro modo: todo o conhecimento imediato envolve o reconhecimento do caráter ilusório das conclusões apressadas, proclamadas pela falta de estudo e de reflexão. A existência da interdisciplinaridade resulta do facto de a disciplinaridade não abranger a complexidade do real. Nenhuma disciplina satisfaz, sem um rigoroso trabalho interdisciplinar, a própria aplicação profissional das teorias que se estudam, ao longo da licenciatura. A interacção entre as disciplinas, que constituem o currículo, esclarece e precisa o paradigma que fundamenta a prática científica de uma Escola. Quando alguns “homens do futebol” (e já de muitos mereci o seu convívio) me dizem, por vezes, a rematar as conversas: “Atenção, no futebol é assim…” – não atingem o sentido parcial e limitado do que afirmam. Qualquer visão unidisciplinar reduz um “objecto de estudo” a bem pouco. Se bem penso, errou Piaget, ao percepcionar o progresso científico na evolução exclusivamente interna das ciências: o progresso acontece mais por interdisciplinaridade do que por disciplinaridade. Um departamento de futebol, num futebol de alta (ou altíssima) competição, assim o prova, sem margem para dúvidas. É evidente que o líder deve ser um “homem do futebol” mas, em relação dialéctica, com um sem número doutras ciências, para além da Ciência da Motricidade Humana.
“Parece ter chegado o momento de clarificar nosso vocabulário. Com efeito, ele coloca um grave problema às relações interdisciplinares, quer porque não dispomos ainda dos conceitos necessários para exprimir o pensamento, quer porque utilizamos vocábulos com este objectivo primeiro certas palavras-chaves. Portanto, convém que eliminemos certas ambiguidades, envolvendo nossas palavras-chaves” (Hilton Japiassu, Interdisciplinaridade e patologia do saber, Imago, Rio de Janeiro, 1993, p. 71). Ambíguidades, como as que encontramos nas expressões “Actividade Física” e “Educação Física” e “Preparação Física”, como se, no ser humano se pudesse trabalhar o físico, sem o psíquico, ou o psíquico, sem o físico. Estas ambiguidades tomaram uma tal amplitude que já nada significam. “As teorias, como os homens, têm dois tipos de existência: empírica e mítica. Ao invés do que é costume admitir, é a segunda quem estrutura e torna consistente a primeira. Sem essa mitificação do empírico, isto é, sem a aquisição por parte de um facto, um homem ou uma ideia da capacidade de servir de emblema, símbolo ou suporte de experiências genéricas da humanidade, coisa alguma deixaria na memória humana um traço mais duradouro que o da sombra na água. A bem dizer, seria mesmo inevocável o simples facto de poder ser evocada, significando já que o símbolo se sobrepôs ao facto” (Eduardo Lourenço, op. cit., p. 229). Na Educação Física, por exemplo, também o símbolo se sobrepõe ao facto, visto que a Educação Física nasce ao mesmo tempo que o “homem-máquina” e com este objectivo primeiro: que, pela ginástica, o corpo humano se assemelhe a uma máquina, pois que não há, outra maneira de “ter saúde”. Kant assim define ginástica: “é a educação daquilo que, no homem, é natureza”. A Motricidade Humana, como eu a penso, rejeita, portanto, o racionalismo, na Educação Física e na Medicina, por esta razão muito simples: porque, no ser humano, não podem considerar-se isoladamente o físico e o psíquico e não há actividade intelectual sem um suporte neuronal. É o homem todo (a mulher toda) que age, que se movimenta. Não é a minha mão que dá uma estalada, sou eu que dou uma estalada, não é o pé do jogador que faz o golo, mas o jogador na sua integralidade, na sua complexidade.
Na reedição de 1970 de La Rebelion de las Massas, Ortega y Gasset (Revista de Occidente, Madrid) escreve: “Dantes, os homens podiam facilmente definir-se em ignorantes e sábios. Mas o especialista não pode ser subsumido por nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio porque ignora formalmente tudo quanto não entra na sua especialidade; mas também não é um ignorante porque é um “homem de ciência” e conhece muito bem a pequeníssima parcela do universo em que trabalha. Teremos de dizer que é um sábio-ignorante (coisa extremamente grave) pois significa que é um senhor que se comportará, em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem, na sua especialidade é um sábio” (pp. 173-174). O fascínio dos fisiólogos do cérebro, pela sua especialidade, é perfeitamente compreensível. Com o cérebro humano, a evolução atingiu a sua mais nítida e insuperável perfeição. É a estrutura mais complexa que se conhece, no universo inteiro, diante da qual um computador, por mais complicado que seja, ainda parece bastante simples. Nesta “massa cinzenta”, trabalham mais de dez biliões de células cerebrais, com o auxílio de milhares de biliões de conexões e ligações condutoras. No entanto, estes processos cerebrais são tanto o resultado da evolução neuro-cerebral e das disposições genéticas quanto da linguagem, do trabalho e da cultura. Não pode estudar-se, hoje, a neurologia, a psiquiatria, digo mesmo: qualquer especialidade médica, sem o contributo da filosofia, da sociologia, da antropologia, da teologia, etc., etc. “Tal como os filósofos e os teólogos se deveriam abrir à investigação biológica do cérebro, assim o deveriam fazer os investigadores do cérebro, em relação às questões da filosofia e da teologia” (Hans Kung, O princípio de todas as coisas, Edições 70, 2011, p. 189). Isto mesmo o acentuaram, ao longo das suas vidas de médicos notáveis e, notáveis também hermeneutas da cultura, os Professores João Lobo Antunes e o suíço Jean Starobinski, ambos há pouco falecidos. A propósito ainda de Jean Starobinski, ele era professor Faculdade de Letras e da Faculdade de Medicina da Universidade de Genebra e doutorado em Letras e em Medicina. É verdade, hoje, não há saber, sem a necessária interdisciplinaridade."