segunda-feira, 19 de novembro de 2018

As voltas que o futebol dá

"Seferovic, que era há poucos meses assobiado pelos adeptos suíços, tornou-se ontem numa espécie de herói nacional, deixando o relvado sob estrondosa ovação depois de, com um hat trick, ter destroçado a Bélgica - que é, só, a selecção número um do ranking FIFA - e apurado a Suíça para a Final Four da Liga das Nações que Portugal organizará em Junho do próximo ano - fase final para a qual, já agora, a equipa das quinas se apurou de forma brilhante. Mas voltando a Seferovic: ao avançado encarnado aconteceu, na sua selecção, aquilo que já lhe acontecera esta época no Benfica. De quase dispensado (só a possibilidade da saída de Jonas para a Arábia impediu que saísse mesmo) passou a peça importantíssima para Rui Vitória, correspondendo, há que dizê-lo, com golos e exibições positivas. Serve isto para dizer que o futebol dá, de facto, muitas voltas. E que, talvez até mais do que o talento, é acima de tudo a confiança - que só se ganha jogando e, no caso dos avançados, marcando - que determina o sucesso de um jogador (com excepção, claro, dos predestinados) em qualquer clube.
Miguel Oliveira fechou ontem a época em grande, vencendo em Valência e despedindo-se da melhor forma do Moto2. É verdade que a queda do espanhol Alex Marquez, quando liderava, foi determinante, mas não cair é, em especial nas condições em que se correu ontem, também um evidente sinal do talento do jovem piloto de Almada. Terá, em 2019, oportunidade de mostrar todas as suas qualidades no grande palco: o MotoGP. E pelo que se tme visto não nos vai desiludir."

Ricardo Quaresma, in A Bola

Cadomblé do Vata (especial Seferovic)

"Terminou da pior forma para os Benfiquistas, um fim de semana que até ao final de domingo se tinha revelado inócuo e monótono, como uma boa jornada de selecções deve ser. Depois de longas horas de bocejo desportivo, o pôr do sol domingueiro reservou aos adeptos do Glorioso, não só uma eliminação da prova maior de clubes europeus de futsal, às mãos do Sporting CP, como também 3 golos do Seferovic no jogo da Suiça. A avaliar pela ressonância de ambos os eventos nas redes sociais encarnadas, o sucesso do suíço foi o que mais dor trouxe à Nação.
Contrariar as críticas abundantes com um hat trick perfeito (pé esquerdo, pé direito e cabeça), foi uma vil demonstração de desrespeito por todos os que apoiam o Clube da Águia Altaneira, que responderam em grande forma, deixando cair sobre a proeza do Haris, um espesso véu de silêncio, ficando contudo a promessa de que o mesmo será levantado ao primeiro passe mal medido do 14 vermelho e branco contra o Arouca. A respaldar a indiferença do Terceiro Anel, aparece também a imprensa, que bem habituada a tripletes goleadores ao serviço das respectivas selecções, dos craques que semanalmente espalham categoria nos relvados nacionais, preferiu destacar a contribuição do Marega no apuramento do Mali para o CAN, num jogo contra o Gabão, onde o portista facturou a estonteante soma de... zero golos... mas foi capitão.
Felizmente, nem todos alinharam na descredibilização total da grande noite do nosso ponta de lança, atribuindo o mérito de tal brilharete ao facto de finalmente, ter encontrado no seleccionador suíço alguém que possa extrair dele toda a imensidão de talento que possui. A distância para Rui Vitória foi afinal, o principal percursor do gatilho bósnio-suíço. Scolari beneficiou do trabalho de Mourinho no FC Porto; Fernando Santos tirou dividendos da genialidade de JJ no Sporting CP; Vladimir Petkovic ganha suando as estopinhas por causa do labor de Rui Vitória de águia ao peito.
A Suiça que não desespere. Se tudo correr como planeado, em Junho será a principal candidata a vencer pela primeira vez a Liga das Nações. Para gáudio da Catedral, o arquitecto-chefe daquilo que a UEFA considerou ser "A Gritaria dos Vouchers" prepara-se para assumir as rédeas do destino de Seferovic. Sendo uma equipa que equipa de vermelho e branco, podem inclusive juntar-se à festa que se espera hollywoodesca do regresso do traidor-que-afinal-é-mesmo-um-génio-táctico-e-temos-saudades-dele-e-se-quiser-até-pode-trazer-o-pacheco-para-adjunto. Até porque se as famílias não se devem separar por dinheiro, Jorge Jesus tem 6 milhões de razões para voltar ao SL Benfica e apenas do número coincidente, nenhuma delas é um adepto."

IVA's !!!

"Não se surpreenda, Dr. Pedro Proença. O futebol profissional de que Vossa Excelência faz parte, enquanto dirigente, é visto por muitas pessoas como uma actividade impulsionadora de violência, corrupção, branqueamento de capitais e evasão fiscal, jogo ilegal, associação criminosa.
O futebol profissional que Vossa Excelência dirige, tantas vezes em silêncio, incompreensível e inexplicável, é matéria de algumas das mais complexas investigações criminais em curso. Uma percepção legítima e factual sobre o futebol profissional português leva-nos a presumir que se encontra à margem da lei e dos bons costumes há décadas. Especialmente no sector da arbitragem, que Vossa Excelência tão bem conhece.
O futebol profissional, pelas práticas dos seus dirigentes e agentes mais consagrados, é inspirador de ódios e divisões na sociedade portuguesa. O futebol profissional português, nesses aspectos, é a antítese dos valores desportivos.
Equiparar o regime do IVA do futebol profissional ao de outras actividades culturais seria extremamente injusto. Seria um prémio que estes dirigentes nunca mereceriam. Antes de ser beneficiado, em termos fiscais, o futebol profissional tem de ser limpo."

Banca, o bode expiatório do Sporting

"O Sporting precisa de 30 milhões de euros. Mas não é de agora. Andou a adiar o problema até à última, mas se correr mal já tem um bode expiatório. A culpa é da banca. É mesmo?

'O Sporting não está a ter o apoio a nível de comunicação, nem de comercialização dos bancos colocadores, nomeadamente, dos três maiores bancos'. A frase é de Francisco Salgado Zenha, vice-presidente da SAD leonina que, por estes dias, está numa “luta” para encontrar 30 milhões de euros frescos para outros tantos que já passaram do prazo.
Era suposto o Sporting ter devolvido 30 milhões aos pequenos investidores em maio. Com a crise na liderança, não houve emissão. E como acontece em todas as SAD, sem nova emissão, e com a banca de torneira fechada para o futebol, não há dinheiro para pagar as dívidas antigas. O rollover ficou em risco. Solução? Adiou-se o pagamento.
Foi uma decisão sensata a de empurrar o reembolso por seis meses. Evitou-se uma crise séria para o Sporting mas também para os outros grandes do futebol nacional, Porto e Benfica. Com a liderança reestabelecida, Frederico Varandas herdou um problema que deveria ter sido a sua primeira prioridade. Mas parece que não foi.
Só no final de Outubro é que os alarmes parecem ter tocado em Alvalade. E em tempo recorde o Sporting apresentou contas, já com capitais próprios positivos, ainda que de pouco mais de 500 mil euros, entregou o prospecto à CMVM e a emissão chegou ao mercado. Ou melhor, foi para os balcões dos bancos.
Coincidência das coincidências, o Sporting não foi o único a recorrer aos pequenos investidores para obter financiamento. Num mês em que muitos já pensam nas prendas do Natal, e ainda sem o subsídio nas carteiras, também a Mota-Engil pôs nas agências uma oferta de obrigações. 
A Mota-Engil paga 4,5%, o Sporting dá mais. Paga 5,25%, sendo que, diz Salgado Zenha, esta taxa é alta porque inclui um prémio de perda de credibilidade nos últimos meses. Ora, enquanto a construtora vai bem encaminhada, e até duplica o valor da emissão para um recorde de 110 milhões de euros, o clube de Alvalade parece não estar a ter a mesma sorte.
Não há dados públicos das ordens já recebidas, mas à luz do que têm sido as declarações quer de Varandas, quer de Salgado Zenha, o resultado não está a ser muito positivo. Quase todos os dias um deles vem a público, ora incitar aos sócios que acreditem no Sporting, ora criticar a actuação dos bancos. Ou seja, se a emissão correr mal, o Sporting já tem um bode expiatório.
Mas pode o Sporting queixar-se da banca? Primeiro, não fica bem ao clube de Alvalade criticar os bancos que em tempos aceitaram renegociar a dívida da SAD, assumindo perdas. Segundo, não fica bem fazê-lo quando já anuncia que vai voltar a sentar-se à mesa com esses mesmos bancos para renegociar novamente essa mesma dívida. Terceiro, os bancos de hoje não são os mesmos de 2015. 
Quando o Sporting foi ao mercado, há pouco mais de três anos, as regras de comercialização de produtos financeiros por parte da banca eram bem diferentes. Eram menos rígidas. Agora há uma coisa chamada DMIF, que exige não só a formação de quem vende o produto, como deixando os registos de tudo o que foi dito guardados para o futuro, procurando evitar os problemas do passado. 
Ora, tendo em conta o passado recente do Sporting, estando a conversa entre quem está atrás do balcão e o potencial investidor a ser gravada, que resposta poderá dar o gestor a quem pergunta se é um bom investimento? Principalmente depois de uma resma inteira de riscos que a CMVM, bem, obrigou a SAD a colocar no prospecto? E quem se atreve a dizer que entre Sporting e Mota-Engil, o dinheiro está melhor aplicado na SAD porque paga um juro mais elevado?
Meus caros, a culpa não é dos bancos. Aos bancos até lhes interessa colocar estas obrigações já que geram muitos euros em comissões. Mas não querem, e não podem, encaixar comissões a todo o custo."

Perfil de um líder legalizado

"Descubro agora que o presidente eleito de uma claque de um dos maiores clubes desportivos do país tem cadastro com três condenações a um total de 18 anos de prisão efectiva, por crimes que vão da posse de arma proibida ao sequestro, passando por roubos violentos e deflagração de explosivos, sendo ainda arguido por mais um crime de associação criminosa para roubos violentos.
Fico descansado porque se trata de uma claque legalizada."

Bruno de Carvalho e a liberdade

"Os inimigos (antigos e recentes) de Bruno de Carvalho ficaram desapontados com a sua libertação na quinta-feira pelo juiz do Barreiro. Queriam que ele ficasse em prisão preventiva. E já receiam a sua absolvição em tribunal, caso vá a julgamento. Pelo contrário, os amigos do ex-presidente do Sporting lançaram foguetes e acham que o caso já está “no papo”; que isto foi a prova de que Bruno está inocente.

Uns e outros estão muito enganados. Primeiro, Bruno de Carvalho foi posto em liberdade “condicional”, isto é, teve de pagar uma caução de 70 mil euros – que não é assim tão pouco dinheiro -- e tem de se apresentar diariamente numa esquadra de polícia. Depois, o juízo que o juiz de instrução fez do seu caso será muito diferente daquele que ocorrerá na sala do tribunal.
Há, no entanto, quem pergunte: por que razão os “miúdos” que foram a Alcochete estão presos há seis meses e o “mandante” do crime foi solto? A resposta é esta: há uma diferença abissal entre os que invadiram a Academia do Sporting e os supostos responsáveis “morais” pelo assalto. Uma invasão é um facto objectivo: um indivíduo esteve ou não esteve lá. Mas uma “instigação” ou responsabilidade moral tem carácter “subjectivo” – e, por isso, é muito mais difícil de provar. Não há provas directas do seu envolvimento.
O juiz do Barreiro que pôs Bruno de Carvalho em liberdade considerou que ele preenchia todos os quesitos para ficar em prisão preventiva – perigo de fuga, alarme social, etc. – com um pequeno senão: não estava provado ter sido ele o mandante da invasão. E, sendo assim, não podia naturalmente ficar preso.
Mas na sala do Tribunal, quando Bruno for julgado (e será mesmo julgado, porque a acusação já foi deduzida), as coisas passar-se-ão de um modo completamente diferente. Os magistrados interrogarão as testemunhas, ouvirão os arguidos, pedirão esclarecimentos suplementares, cruzarão depoimentos, farão acareações, se necessário – e de tudo isso resultará uma convicção que permitirá ao juiz tirar dúvidas sobre o que realmente se passou.
Ou seja: o juiz que julgar o ex-presidente do Sporting disporá de muito mais elementos para o condenar ou absolver do que aqueles de que dispunha o juiz do Barreiro. E a sentença não terá de ser igual.
Por isso, não têm motivo uns para estarem desiludidos, nem outros para estarem eufóricos. Para já, Bruno de Carvalho está formalmente acusado pelo Ministério Público de crimes graves, inclusive terrorismo. Agora, o juiz decidirá."

Faro policial

"Perante determinados indivíduos, apercebemo-nos se estamos a lidar com alguém em quem possamos confiar – ou, pelo contrário, se nos encontramos perante uma pessoa falsa, capaz de burlar, de mentir, de enganar. Conheci pessoalmente Vale e Azevedo e José Sócrates, e ambos me mentiram. 

Quando Vale e Azevedo saiu da presidência do Benfica, percebi que iria ser preso. Aquilo que tinha ouvido sobre ele, as histórias que se contavam a seu respeito (que incluíam episódios de uma passagem pela política, pelo PSD, como colaborador – pouco fiel – de Balsemão), faziam supor que estávamos perante um indivíduo com poucos escrúpulos e uma personalidade de burlão.
Mais tarde, quando se começou a falar da suposta corrupção de Sócrates, escrevi que ele era «o Vale e Azevedo da política». Tratou-se de uma comparação ousada, pois Sócrates era ainda primeiro-ministro, mas certeira. Ao dizer isso, estava implicitamente a sugerir que, uma vez fora do Governo, ele viria a ser preso. E foi isso mesmo que se verificou.
Recentemente, quando Bruno de Carvalho entrou na fase de atos tresloucados, percebi que teria o mesmo destino de Sócrates e Vale e Azevedo. Ou seja, que, após sair da presidência do Sporting, viria possivelmente a ser detido. Para já saiu em liberdade, mas é muito possível que venha a ser acusado de instigação à invasão de Alcochete.
A isto se chamará ‘faro policial’. Ou seja: uma certa capacidade para antecipar os acontecimentos, através da avaliação da personalidade e do carácter das pessoas.
Perante determinados indivíduos, apercebemo-nos se estamos a lidar com alguém em quem possamos confiar – ou, pelo contrário, se nos encontramos perante uma pessoa falsa, capaz de burlar, de mentir, de enganar.
Conheci pessoalmente Vale e Azevedo e José Sócrates, e ambos me mentiram.
Certo dia, estava eu no Expresso, recebi à hora de almoço uma chamada de um familiar de Vale e Azevedo dizendo-me que este tinha elementos importantes para me fornecer. Era uma sexta-feira e o jornal fechava nesse dia. Enviei um jornalista – o João Garcia – ao seu encontro, e ele passou-lhe a cópia de um extracto bancário que provava a sua inocência em acusações que lhe eram feitas.
Eu acreditei. Entretanto, o jornalista – que era menos crente do que eu – falou a uma fonte que tinha naquele banco e lhe forneceu o extracto da conta relativo ao mesmo período. E o que se verificou? Que a cópia do extracto que Vale e Azevedo nos tinha fornecido era falsificada! Isto mostra a qualidade do homem e o seu descaramento. É escusado dizer que a notícia que saiu no dia seguinte no jornal, em vez de ilibar Vale e Azevedo, ainda o ‘enterrava’ mais.
Sobre José Sócrates, já contei mais de uma vez este episódio: num almoço a sós, no restaurante Pabe, garantiu-me que ia deixar definitivamente a política para se dedicar à vida académica, indo fazer uma pós-graduação em Inglaterra. Isto passava-se um tempo depois de ter saído do Governo, em resultado da demissão de António Guterres.
Chegado à redacção do jornal, contei o que Sócrates me dissera, para a elaboração de uma notícia. Mas aí, a jornalista que tratava do PS, a Cristina Figueiredo, diz-me, estupefacta com o que acabava de ouvir: «Director, isso é completamente mentira! Sócrates anda a fazer contactos para arregimentar gente para o apoiar na corrida à liderança do PS». O líder na altura era Ferro Rodrigues. Ora, um tempo depois Ferro cairia, e Sócrates candidatar-se-ia de facto à chefia do partido – e seria eleito. Ele tentara descaradamente enganar-me, sem necessidade nenhuma.
Não conheci Bruno de Carvalho, mas tornou-se claro a partir de certa altura que mentia constantemente, com o maior à-vontade. A sua palavra perdeu todo o valor. Às tantas, não valia a pena ligar ao que dizia, pois tanto era capaz de jurar uma coisa como o seu contrário.
Se Sócrates era ‘o Vale e Azevedo da política’, Bruno de Carvalho é ‘o Sócrates do futebol’.
E isto remete-nos para a importância da verdade. Desde pequeno que sei que, a partir do momento em que entramos pelo caminho da mentira, é difícil escolher o momento certo para parar. Uma mentira conduz a outra. E de mentira em mentira podemos ser levados à burla, à falsificação, ao crime.
Nos seres humanos, há uma coisa fundamental: o respeito das pessoas por si próprias. Quando um indivíduo mente, julga que está a enganar os outros – mas está antes do mais a enganar-se a si próprio. Porque esse caminho não o conduzirá ao sucesso mas ao descrédito. No fim da linha, nem ele se respeitará nem os outros o respeitarão.
E é isso basicamente o que une Vale e Azevedo, Sócrates e Bruno de Carvalho. Além de perderem o crédito como dirigentes e como pessoas, levaram tão longe o propósito de enganar os outros que se tornaram socialmente indesejáveis."

A liberalização da estupidez

"As redes sociais estão entupidas de lixo, que todos nós produzimos e não contribuímos para limpar. Abundam notícias falsas, que só por si são uma nova designação para as mentiras manipuladoras. 

Ainda sou do tempo em que a ignorância gerava vergonha. Por isso, sempre que escrevo algo fico com receio de ser apenas mais um idiota, que sofre do efeito Dunning-Kruger, em que o nível da minha ignorância me impede de ver realmente quão ignorante posso eventualmente estar a ser. O que me leva a suplantar esses receios é ter a certeza de que, apesar dos riscos, é uma forma legítima de aprender e testar o que supostamente penso saber.
Umberto Eco dizia, para escândalo de muitos nós, que a Internet iria dar voz aos idiotas. Na altura pareceu-me exagerado e um elitismo bafiento, porque todos poderiam aprender enquanto participavam activamente na rede, pois ficariam sujeitos à superior informação e argumentação alheia. Infelizmente essa visão optimista está cada vez mais difícil de defender.
Há uns anos prevalecia a ideia de que a Internet, e a desmaterialização da informação à escala global, daria origem a uma nova era de conhecimento generalizado, acessível a todos. As vantagens foram enormes mas, em simultâneo, surgiram novas formas de manipulação, acessíveis a todos. Obviamente que antigamente muito se produzia de manipulador, ainda que só o fizesse quem pertencesse a uma certa elite intelectual. A restante população simplesmente não podia aceder a ferramentas massivas de grande alcance comunicativo. O acesso ao conhecimento generalizou-se, mas a sua compreensão aparenta não ter acompanhado esse crescimento.
Neste momento, as redes sociais estão entupidas de lixo, que todos nós produzimos e não contribuímos para limpar. Abundam notícias falsas, que só por si são uma nova designação para as mentiras manipuladoras. O pior disto é que agora ganham força mentiras tão mal construídas que denotam o reduzido poder de crítica e informação do público a quem são dirigidas. Coisas como o nazismo não é fascismo, a terra é plana, a negação da importância da vacinação e um sem fim de idiotices apontam para uma era de estupidificação e de facilidade em promover absurdos facilmente desmontados.
A herança social trouxe-nos a liberdade que, conjugada com as tecnologias de informação e comunicação, permitem o activíssimo direccionado para o que quisermos, para o bem e para o mal. Nada nos impede de comunicar a nossa ignorância ao mundo inteiro. Não haveria problema nenhum se ninguém ligasse, mas não estão a surgir os filtros de sabedoria que esperaríamos serem produzidos pela própria comunidade, pelo menos não na escala necessária. Hoje podemos ser idiotas com orgulho, ignorantes sem receio e ser portadores de uma grande estupidez e poder em simultâneo. As elites demitiram-se ou dominam a sociedade de outro modo, mais oculto e estupidificante? Há quem diga até, como Achille Mbembe, que o humanismo já morreu. Ou que a competência também já tem os dias contados, como defende Tom Nichols. Os relativismos tendem a nivelar tudo e o domínio do politicamente correcto em tem ajudado. A qualidade e a falta dela passaram a valer o mesmo?
Estão a surgir ferramentas e aplicações para validarmos informações. Mas quem está mais sujeito a imbecilidade de algumas noticias, ou meras publicações de terceiros, irá mesmo fazer a verificação? Uma esmagadora maioria da informação é partilhada em pequenas frases e imagens, longe dos grandes textos argumentativos. Como combater isto?
Quando se definiram os modelos de democracia vigentes as sociedades eram muito menos complexas que hoje, já o dizia Norberto Bobbio. Então precisaremos de outros modelos democráticos para fazer face ao flagelo da estupidez? Estará a democracia em risco?"

Era uma vez...

"Era uma vez um turista norte-americano, que visitava Israel. Era um homem de espírito, um observador e deixou o que viu, em rápidos apontamentos. Subiu serras talhadas a pique sobre o deserto; percorreu quilómetros, para compreender o ódio de cinza e crepúsculo, que divide os árabes e israelitas; passeou por jardins com flores vermelhas como lábios húmidos; e, por fim, numa hora doirada de fim da tarde, visitou um sábio que lhe disseram ser pessoa de simpatia e fraternidade inigualáveis e com uma rara intuição para descobrir a solução dos mais graves problemas da vida. Entrou na casa do sábio e nem um móvel, nem um quadro, nem uma cadeira, nem uma garrafa de água lobrigou. O sábio, para além do que vestia, parecia viver sem mais nada. “Mestre, como consegue viver só com a túnica que o cobre?”. Solenemente, exclamou o sábio: “Mas você também está diante de mim, sem mais nada, para além da roupa que o veste”.
E o turista insistiu: “Assim é, mas eu sou um turista, estou aqui de passagem”. E o sábio, com energia e com ritmo: “E eu também”. De facto, todos estamos, neste mundo, como o turista norte-americano – de passagem. Albert Camus, saciado, fatigado de pensar concluiu que a vida era um absurdo e que o absurdo se vencia, como Sìsifo, num trabalho inútil e cansativo. Nietzsche e Gide atribuíram à “morte de Deus” a plena realização do ser humano. Sartre e Camus (que não dispensava o seu futebol, entre amigos) não se imobilizaram nos valores de Gide e Nietzsche e duvidaram da “plena realização”, neste mundo, do ser humano, com ou sem Deus. Não lhe resta senão a ingénua sinceridade de dar sentido ao sem sentido da vida, de se imaginar afinal um Sísifo feliz. Recordo o Edgar Morin de O Paradigma Perdido: o ser humano é fundamentalmente um ser imaginante…
Mas que a função imaginante do sujeito não nos leve a uma realidade ficcionalizada. A presença de Alireza Rabbani, iraniano de 34 anos, “que irá reforçar a Unidade de Performance Desportiva, que está a ser introduzida, por Frederico Varandas, presidente do Sporting” é de uma actualidade indiscutível, desde que se não pense que o futebolista é um “homem-máquina”. O melhor futebolista não é o que corre mais, mas o que verdadeiramente sabe jogar futebol. O pianista, antes de um concerto, toca piano, não anda às voltas ao piano, sob pena de não preparar adequadamente o concerto. Também o ingresso, no Sporting, do Dr. João Pedro Araújo, especialista em Medicina Física e Reabilitação, como novo médico de equipa do Sporting Clube de Portugal, significa que há indiscutível rigor científico no departamento médico dos “leões”.
O Dr. João Pedro Araújo apresenta uma bem fundamentada experiência profissional, que nunca é demais realçar. Mas que não se esqueça o seguinte: “se tomarmos como exemplo a Medicina, verificamos que, nos últimos cem anos, se passou do estudo da anatomia descritiva ao da biologia celular e à imunologia. Ao querermos estudar o saber actual da Medicina e as regras epistemológicas que lhe dão sentido, não iremos analisar as metodologias da investigação anatómica do século XIX, mas sim debruçarmo-nos sobre a estrutura do pensar na actual investigação do nosso sistema imunológico. O objecto central da medicina mantém-se inalterado (prevenir, tratar as doenças e prolongar a vida) mas mudou radicalmente o núcleo central do estudo, que pode contribuir para que a sua finalidade se cumpra” (José Gameiro, Voando sobre a Psiquiatria, Edições Afrontamento, Porto, 1992, pp. 31/32). Na Medicina, hoje (se bem penso) não há doenças, há doentes. E o doente é corpo-mente-sentimentos-emoções -desejos-natureza-sociedade-cultura (e muito mais que o mistério, que o ser humano é, não permite que ainda se veja). E é sistémica a metodologia que pode observá-lo e estudá-lo.
Da leitura do Dr. José Gameiro se infere (o Dr. José Gameiro é um prestigiado médico psiquiatra e pessoa de amplo e arejado civismo) que são vários os analisadores epistémicos que atravessam a psiquiatria. Não serão tantos, nas outras especialidades médicas, onde é mais fácil o consenso, mas qualquer modesto epistemologista, como eu, que não sou médico, nem portanto algum dia beneficiei de qualquer prática clínica, depressa chegará à conclusão que, para um sistema complexo, deve corresponder uma metodologia complexa. Quando escrevo (há meio século) que “o Desporto é o fenómeno cultural de maior magia no mundo contemporâneo”, veja-se como é complexo o trabalho do especialista em Medicina do Desporto, tendo em conta a complexidade humana, onde cabe a contextualização do Desporto de Altos Rendimentos, tantas vezes inquinada de uma irracionalidade assustadora e do mais exagerado economicismo. Sem dispensar a ciência, mas só com ela, não há progresso desportivo, sem um epistema sistémico, onde o que é mais autenticamente humano se pesquise, se organize e se respeite.
Dizia o Adorno, no Minima Moralia, que “hoje a tarefa da arte é trazer o caos para a ordem”. Ora, se o “potencial crítico” da Arte é grande, não é menor o “potencial crítico” do Desporto e da Dança e do Jogo Desportivo (três exemplos, entre outros). Miguel de Unamuno (1864-1936), no seu livro Del Sentimiento Trágico de la Vida, adianta que é um “homem de carne e osso” que faz a História. E isto sem a necessidade de submeter-se a princípios envelhecidos, ou a metafísicas do tempo do “Teorema de Pitágoras” ou do “Princípio de Arquimedes”. Para Unamuno, este era o princípio básico, bem anti-cartesiano: “Penso, logo não existo”. Mas próximo, bem próximo da frase cortante de Kierkegaard: “A existência é uma rocha contra a qual naufraga o pensamento puro”.
É um “homem de carne e osso” que faz a História? O Desporto assim o prova. Com vontade, porém, de transcendência, que o mesmo é dizer: sentindo o “ainda não” de Ernst Bloch, e portanto com inquietude, insatisfação e esperança. Faço um parêntese, para lembrar que as ideias de Bloch, para além de reduzidos círculos intelectuais, são poucos os estudiosos que as conhecem, no nosso País. De facto, nenhum ser humano se sente plenamente realizado, no “aqui e agora” que vive. Pessoas, com a alegria de viver a estourar-lhes das bochechas, são cada vez menos. E, com uma jovialidade hospitaleira, menos ainda são. Em ruas coalhadas de letreiros luminosos, não faltam os embuçados que se destacam de um desvão. Há que fazer um mundo novo, que me permita que eu seja novo também. Perguntaram a Ernst Bloch: “Quem és tu’”. E ele: “Sou, mas ainda não me possuo”. Não resta a cada um de nós senão sermos um “não” que busca realizar-se. Vou tentar, agora, traduzir, para o senso comum, as tarefas em que Foucault tentou realizar-se, como pensador: Que práticas discursivas posso dizer, no mundo que me rodeia? Posso estabelecer alguma relação entre o que digo e o que faço? Depois de mim, o mundo ficará inalteravelmente o mesmo?... Que pode o Dr. Frederico Varandas dizer, no meio das ruínas em que alguns, que se autoproclamam sportinguistas, deixaram o Sporting? Por muito que me pese neste ponto, não acompanho muito à letra os que não descobrem graves descuidos em antigos dirigentes deste grande clube, que eu aprendi a admirar, quando, rapaz ainda, via jogar os “cinco violinos”. Era uma vez um Clube que, durante a década de 40, podia apresentar uma das melhores equipas de futebol europeias. O futebol ainda não conhecera nem Rinus Michels, nem Cruyff, nem Rijkaard, nem Van Gaal, nem Guardiola, nem José Mourinho, treinadores inapagáveis, na história do futebol. Mas conheceu, depois. outros deuses que, nas Academias, foram cuspidos e agredidos. Onde está o progresso no futebol? O ser humano é aquele animal louco, cuja loucura inventou um certo futebol…"