terça-feira, 16 de outubro de 2018

Nesse tempo vermelho em flor...

"O União de Coimbra só passou uma época na I Divisão. E Reis foi o único jogador do clube a marcar um golo ao Benfica. Na primeira volta, em Coimbra, 4-0 para os encarnados; na segunda volta, na Luz, 6-1. Era uma equipa impressionante!

Cáspite! Como chovia em Coimbra! Uso a expressão porque vez moda. Em Coimbra sobretudo, por isso vem a propósito. Mais entre a estudantada do que entre os futricas, e por acaso são os futricas que estão aqui em causa.
Dia importantíssimo para o União. Pela primeira vez na I Divisão, recebia o Benfica. Pela primeira e última vez na I Divisão. Época de 1972-73: dia 1 de Outubro de 1972.
Por estas e por outras é que a malta da Académica costumava recitar, manhosamente:
'Se não houvesse União
Não havia II Divisão'.
Pois, pois. Mas, nesse ano, a Académica é que estava na segunda. Orgulhoso, o União representava a cidade na primeira.
Vamos aos factos, para lá da chuva.
Jogo fácil para o Benfica. Não basta ser histórico para ser complicado.
'Onze jogadores de camisola encarnada passearam classe pela relva triste (e empada) de um estádio de recordações. A dar-lhes as boas-vindas esteve o modesto União, unido e pouco mais, lento e desinspirado, de futuro inquietante ou pouco menos'.
Do futuro unionista já nos sabemos, agora que se tornou passado.
Desceu no fim do campeonato e nunca mais voltou.
Este ano, nem União nem Académica. Tristemente, não há Coimbra na I Divisão.

Pobre União...
Os jornais desancaram nessa exibição do União como se do outro lado não estivesse um Benfica fortíssimo. Ora vejam o exemplo que aqui deixo: 'A turma de Coimbra promete muitos sustos aos seus adeptos. Luís Pinto é mais lento do que as suprimidas locomotivas do ramal do Vouga, e barros, uma sombra do passado bem passado. Na frente não há quem caminhe para o golo e a meio da nau ninguém se entende'.
Justificações mais do que alargadas para o triunfo encarnado por 4-0.
Toni marcou um golo fantástico de força e colocação: devia estar a recordar-se dos tempos em que, com a camisola negra da Briosa, disputava dérbis acesos contra o União. Os outros golos foram de Jordão, Eusébio e Adolfo. Que equipa aquela, meus senhores!
Campeão fácil, mas fácil: trinta jogos, vinte e oito vitórias e dois empates, assim mesmo por extenso. Derrotas: nem uma para amostra. Golos marcados: 101; sofridos: 13.
Sabem quem ficou em segundo? Ah! Pois é! O Belenenses. E, já agora em terceiro? Pois, pois... O Vitória de Setúbal.
No dia seguinte à carga de águia de Coimbra, lá voou a águia, como era seu costume: para Luanda, para participar nas bodas de ouro do Sport Luanda e Benfica.
Chegamos a Janeiro, passou mais um ano na ampulheta dos grãos de areia das nossas vidas.
É a vez de o União de Coimbra ir à Luz, não pode esperar nada que não seja ser goleado, espancado por um adversário que vai para a sua 19.ª vitória consecutiva. Do quilé!, como diria o meu velho amigo Fernando Assis Pacheco.
Eusébio ainda ali numa fona na luta pela sua segunda Bola de Ouro.
Por isso não se estranhou: nem um minuto foi preciso para que fizesse o 1-0. Prometia uma tarde de fome, a Pantera Negra. Mas o seu apetite foi-se esgotando com o decorrer dos minutos. Ninguém o adivinhava quando, pela meia gora, bateu Melo pela segunda vez num remate tão bonito, que abriu Ooohs! De espanto na boca dos espectadores tão atentos como descontraídos.
Mas antes de Eusébio fazer o seu segundo golo da tarde, já Simões (aos 2 minutos) e Vítor Baptista (aos 20) assinavam o inevitável correctivo. O facto de Reis ter-se tornado o único jogador do União de Coimbra a marcar um golo ao Benfica na história de todos os campeonatos nacionais não evitou o 6-1. No segundo tempo, Humberto Coelho e Nené assinaram o ponto e terminaram com o desespero coimbrão.
Oito dia depois, confirmando que não havia adversários à sua altura da fronteira do Caia para dentro, o Benfica foi a Alvalade vencer por 2-1.
Vivia-se um tempo vermelho em flor!"

Afonso de Melo, in O Benfica

As 'Papoilas Rubras'

"O andebol feminino surgia timidamente em Portugal, quando o Benfica se estreou na modalidade

Em Abril de 1972, o jornal O Benfica lançava o convite para que as jovens adeptas ou associadas comparecessem no pavilhão do Clube, se desejassem 'praticar uma modalidade que como muitas outras oferece vastas possibilidades se der praticada pelo sexo feminino'. Aos poucos, foi possível a formação de uma equipa de andebol, que ficou, desde logo, apelidada de 'papoilas rubras'.
A iniciativa partiu da capitã de equipa, Isabel Dolores, uma jovem que já havia praticado a modalidade. A grande vontade em voltar a jogar fê-la propor ao Benfica a constituição de uma equipa, ideia que foi prontamente aceite. De início tiveram 'sérias dificuldades em convencer as raparigas a praticarem handebol, pois era assim, a modos que, um desporto inaceitável'. Um dos grandes entraves era os pais e os próprios namorados, por este desporto estar associado a uma certa masculinidade.
Mas não cruzarem os braços e, em menos de um mês, a equipa estava pronta a participar num torneio organizado pela Associação de Andebol de Lisboa (AAL), que foi uma das primeiras iniciativas de andebol feminino em Portugal. Inscreveram-se 18 equipas, um número que demonstrou o interesse que começava a despertar pela modalidade. 'O Benfica, naturalmente, está presente. Como é hábito e timbre de uma colectividade que tem de estar sempre presente nos grandes momentos. E ninguém duvide, o aparecimento do andebol feminino em Portugal é um momento grande deste desporto'.
Treinadas por Pedro Reis, as benfiquistas tiveram a sua estreia a 14 de Maio de 1972. A primeira vitória surgia pouco dias depois, a 28 de Maio, no seu terceiro jogo para o torneio da AAL. A equipa venceu o Cabanas de Viriato com uma goleada, por 12-4. As 'encarnadas' foram 'sem dúvida superiores e «maravilharam» a claque com os seus fulminantes remates, mesmo «à Benfica»!'
O empenho das benfiquistas viria a dar frutos e, nas épocas seguintes, a modalidade ganhava novo fulgor, com a constituição de mais equipas e a participação nos campeonatos regionais. Porém, a pioneiras tiveram um duro caminho a desbravar, pois o andebol feminino só viria a consolidar-se após a revolução de 25 de Abril de 1974. A primeira prova nacional oficial, a Taça de Portugal, seria somente disputada em 1975/76.
Pode descobrir mais sobre o andebol feminino no Benfica na área 3 - Orgulho Ecléctico, do Museu Benfica - Cosme Damião."

Ana Filipa Simões, in O Benfica

Aconteceu nas distritais: árbitros e agentes da GNR foram insultados, socados e pontapeados

"As más notícias estão de volta...
No passado fim de semana, foi pintada de negro mais uma página do futebol distrital, em Portugal. Desta vez, a mancha veio do Estádio Municipal Dr. Costa Lima (na Maia), onde se disputou o SC Salgueiros/CF Oliveira Douro, da 8ª Jornada da Divisão de Elite da AF Porto.
A partida terminou com insultos, ameaças e agressões (à equipa de arbitragem e a alguns agentes das forças de segurança).
Vamos então à sequência cronológica dos acontecimentos:
1. Após contestar, de forma ofensiva e insultuosa, uma decisão do árbitro (por este entender não ter havido infracção num lance que resultou na lesão temporária de um atleta da casa), o fisioterapeuta do SC Salgueiros recebeu ordem de expulsão.
2. Insatisfeito com a decisão, acabou por dirigir-se ao árbitro da partida e, já dentro do terreno de jogo, colocou as duas mãos no seu peito, empurrando-o de forma ostensiva. A atitude foi testemunhada por todas as pessoas que estavam presentes no estádio.
3. Apesar do contacto físico ter sido evidente, o juiz do encontro entendeu que o gesto, em si, não configurava uma verdadeira "agressão física". Como tal e depois de auscultar um colega e falar com um agente policial, achou que tinha condições para prosseguir a partida. E assim fez.
4. Desde aí e até perto do apito final, tudo decorreu dentro da normalidade.
5. Quase no final do período de descontos, a equipa de Oliveira do Douro marcou o único golo do encontro, na sequência de uma jogada que motivou fortes protestos: alegaram os da casa que, no início do lance, o guarda-redes adversário tocara a bola com as mãos fora da sua área de penálti.
6. Na sequência de muita exaltação, um atleta da equipa visitada foi expulso, após exceder-se na linguagem.
7. Mal terminou o jogo (0-1), instalou-se a confusão, com a equipa de arbitragem a seguir em direcção ao túnel de acesso aos balneários. Segundo testemunhos, o referido fisioterapeuta terá dito que aquele seria o local ideal para o "acerto de contas".
8. O que supostamente aconteceu ali foi de enorme gravidade para o futebol e para o desporto português.
Então vejamos, com os devidos 'alegadamentes':
- Já na zona de acesso aos balneários, o árbitro da partida foi agredido, (alegadamente pelo massagista que antes fora expulso), com dois socos na cabeça. Ficou com uma ferida aberta e ensaguentada, visível para todos.
- Cada um dos dois árbitros assistentes - ambos muito jovens - foram também agredidos (pontapeados nas pernas), resultando daí as respetivas mazelas físicas (as marcas continuam lá e estão à vista de toda a gente).
- Dois dos oito guardas da GNR presentes no local foram, entretanto, agredidos por alguns adeptos exaltados.
- No final, os cinco (os três árbitros e os dois guardas) dirigiram-se ao Hospital de São João, no Porto, para serem examinados e tratados. As perícias posteriores, no Instituto de Medicina Legal - entretanto realizadas -, comprovarão o que tiver que ser comprovado.
9. Foi depois apresentada queixa-crime contra aqueles que (alegadamente) foram identificados como os autores das agressões: além do dito fisioterapeuta, também um treinador e um delegado ao jogo, ambos do SC Salgueiros.

Agora vamos a factos. Ao que verdadeiramente importa, no meio de uma história em que, como sempre, cada um terá "a sua verdade" para contar e defender:
Facto 1 - Enorme respeito pelas duas instituições - SC Salgueiros e CF Oliveira do Douro - bem como por todos aqueles (agentes desportivos e adeptos) que se demarcaram/não se revêem neste tipo de condutas ou comportamentos.
Facto 2 - É importante não confundir a parte com o todo, tal como o é não esquecer que a presunção de inocência vale até prova em contrário.
Facto 3 - Dito isto, é absolutamente real e verdadeiramente indesmentível que, após aquele jogo, cinco intervenientes ali em serviço foram agredidos. Todos receberam tratamento hospitalar.
Facto 4 - Neste caso, é justo sublinhar que não há nada a apontar à entidade que organiza a competição (AF Porto), uma vez que a partida tinha, como era suposto ter, policiamento assegurado desde o seu início.
Facto 5 - O árbitro, seguramente bem intencionado, cometeu um erro grave: não terminou a partida no momento em que foi empurrado por aquele que foi, aos olhos de todos, o instigador do que aconteceu: o fisioterapeuta do SC Salgueiros.
Quicá surpreendido por aquela atitude inesperada, o juiz não considerou - como devia - que o gesto irresponsável daquele técnico poderia contribuir para inflamar o ambiente e ser, como foi, o rastilho para algo potencialmente mais grave.
Facto 6 - Nenhum erro de árbitros, jogadores, treinadores ou dirigentes, justifica o crime que é alguém agredir alguém.
Nenhum penálti mal assinalado, nenhum golo falhado, nenhuma substituição mal efectuada e nenhum ordenado em atraso legitimam a agressão física.
Bater não faz parte do espectáculo. É apenas a evidência do descontrolo total, da menoridade intelectual, o lado mais medonho e execrável do ser humano.
O argumento provinciano (e muito feio) de que "eles põem-se a jeito" é quase tão mau como o que sustenta que a violação de uma mulher é desculpável porque ela usa mini-saia.
Facto 7 - Apesar do esforço financeiro louvável de algumas associações de futebol/clubes (no que diz respeito à melhoria das condições segurança nos recintos desportivos), há um problema de base que só a prevenção maciça, a persistência e o tempo ajudarão a superar: a falta de educação, civismo e cultura das pessoas. De muitas pessoas.
Facto 8 - Neste caso concreto, a justiça desportiva, tal como a civil, farão (já estão a fazer) o seu trabalho. O que se espera e deseja é que este seja célere e transparente, que ilibe e limpe o bom nome de quem nada fez... e que seja absolutamente implacável e exemplarmente punitiva para quem for considerado culpado.

O plenário da Assembleia da República deverá aprovar, em breve, um diploma que promete revolucionar o combate à violência no desporto.
Até lá, fica a promessa: cada vídeo, cada imagem, cada relato fidedigno de actos violentos no desporto (no futebol em particular) serão expostos e denunciados publicamente, de todas as formas possíveis, com todos os meios disponíveis.
O que não se aprende com a prevenção, aprende-se com a humilhação. Quem vai a um recinto desportivo e, mais importante, quem é um seu actor directo, tem o dever e a responsabilidade ética, moral e social de se comportar como um ser humano.
Sem desculpas. Sem atenuantes. Sem ses nem mas. Um dia isto tem que acabar. Um dia vai acabar."

O Carew ator, Nelson Rodrigues e o rap dos «Bleus» (para começar)

"Plateia (n.º 1): futebol para ler, ouvir e ver

Antes de tudo, vamos às apresentações. 
Nada de muitos formalismos. Sigamos directo ao assunto:
Ora viva, caro leitor, as linhas que vai passar a ler neste espaço a cada duas semanas destinam-se a mostrar-lhe como o futebol e a cultura podem jogar no mesmo campo.
Livros, música, filmes – ficções ou documentários – séries… A cada 15 dias apresentamos-lhe sugestões para ler, ouvir e ver. Arte e cultura com uma bola lá no meio a rolar.
Haverá novidades sobre o que de mais estimulante pode conhecer acerca do futebol e do desporto como fenómeno cultural, social ou até político, mas também referências a alguns clássicos, que poderá redescobrir à boleia da actualidade.
Plateia: esta rubrica designa-se assim por ser o lugar privilegiado do público seja num estádio, numa sala de espectáculos, num cinema ou no sofá de casa.
Nesta edição número 1, começamos pela Noruega, seguimos por França e terminamos no porto seguro que é o Brasil de Nelson Rodrigues, cujas crónicas sobre futebol passaram recentemente a estar ao alcance do público português.
A viagem começa aqui. Pode, portanto, recostar-se e deixar-se levar.

Para ver: «Heimebane»
Autor: Johan Fasting
Género: série televisiva de ficção
País: Noruega
Duração: 50 minutos (x 10 episódios)
Bastaria o genérico com as imagens idílicas de Ulsteinvik e o tema instrumental de abertura para agarrar o telespectador. Porém, Heimebane vale por cada um dos 10 episódios.
A série do canal norueguês NRK1, que por estes dias foi exibida pela RTP 2 (com a designação em português «Jogar em Casa»), conta como Helena Mikkelsen, superiormente interpretada por Ane Dahl Torp, se torna na primeira mulher a treinar uma equipa masculina na primeira divisão da Noruega: o ficcionado Varg IL.
Em busca de afirmação, Helena encara sucessivos desafios: desde um balneário céptico, à resistência dos adeptos e à clara oposição do patrocinador e principal financiador do clube.
Tudo começa quando o recém-promovido Varg perde o treinador em cima do arranque da temporada e Helena ganha a vaga a Michael Ellingsen, veterano e estrela decadente da equipa, que inicialmente parecia destinado ao lugar.
Aqui que surge outro dos pontos de interesse de «Jogar em Casa»: Michael Ellingsen é John Carew! 
O ponta de lança internacional norueguês (94 jogos e 24 golos pela selecção principal) é agora actor e um dos protagonistas da série.
Depois de jogar em Inglaterra (Aston Villa, Stoke e West Ham), França (Lyon) e Espanha (Valência), Carew abraçou a sétima arte e nesta sua incursão no pequeno ecrã não se sai nada mal no papel de uma personagem que tem muito que ver com o seu percurso enquanto futebolista.
«Heimbane», criada por Johan Fasting, acaba de passar na RTP 2. A série, que estreou em março na Noruega, foi um sucesso tal que a segunda temporada já está em pré-produção.

Para ouvir: «Ramenez la coupe a la maison»
Intérprete: Vegedream
Género: Hip-hop
País: França
Duração: 4:17 minutos
Tendo de escolher um ritmo para embalar a conquista do Campeonato do Mundo pela França, a nossa opção recairia sobre a singela e quase espontânea homenagem a N’Golo Kanté.
O tema de «Les Champs Élysées», de Joe Dassin, serviu de mote a uma adaptação em modo paródia, conquistando adeptos e os próprios jogadores.
No entanto, há um tema original sobre a conquista dos «Bleus» que está a fazer furor no panorama musical gaulês.
«Ramenez La Coupe a La Maison» – «Tragam a taça para casa», em português – foi lançado no youtube três dias depois de a França ter vencido a Croácia na final do Mundial, em Moscovo, e desde então o videoclip já ultrapassou os 50 milhões de visualizações.
O tema interpretado por Vegedream, rapper de origem costa-marfinense, é, tal como a própria selecção, uma espécie de homenagem à França multicultural.
Além disso, tem a enorme vantagem de desfilar os nomes de todos os jogadores campeões do mundo pela França… E a verdade é que os próprios jogadores da selecção já o adoptaram, como é possível ver no recente jogo da selecção francesa frente à Holanda, a 9 de Setembro: em pleno Stade de France, Vegedream e os jogadores dos «Bleus» fizeram a festa ao som de «Ramenez La Coupe a La Maison».

Para ler: «Brasil em campo»
Autor: Nelson Rodrigues
Editora: Tinta da China
Género: Crónica
País: Brasil
Páginas: 200
Esta última escolha é de um «óbvio ululante»: Nelson Rodrigues é «o» cronista. Pela sua pena, cada jogo era um acontecimento literário.
A sugestão é tanto mais obrigatória desde que, para nosso contentamento, em Julho último a editora Tinta da China publicou pela primeira vez em Portugal uma compilação das crónicas do escritor, jornalista e dramaturgo.
Sonia Rodrigues, filha e biógrafa, faz em «Brasil em Campo» uma selecção de mais de 70 crónicas publicadas ao longo de cerca de 20 anos – entre meados das décadas de 1950 e 1970 – no Jornal dos Sports, em O Globo e em Manchete Esportiva ou então retiradas de colectâneas, apenas publicadas do outro lado do Atlântico, como «À Sombra das Chuteiras Imortais».
No prefácio, o cronista Marcos Caetano dá o mote para as páginas que se seguem com reflexões sobre os anos dourados do futebol brasileiro de Pelé e Garrincha:
«Muito já foi dito sobre o virtuosismo das crónicas do Nelson, embora alguns dos seus biógrafos insistam na tese de que ele não entendia nada de futebol, o que é uma enorme injustiça. Para mim, Nelson não era um cronista que pouco entendia de futebol. Ele era justamente o que mais entendia. […] Gostar de futebol apenas como jogo é tão limitante como gostar de música pelo ruído ou de pintura por conta das cores. Imaginar que o futebol se resume à táctica é como crer que o melhor psicólogo é aquele que mais conhece a fisiologia do cérebro. Nelson era sem dúvida um psicólogo que entendia bastante sobre o funcionamento do cérebro. Mas, acima de tudo, ele era capaz de vasculhar as mais profundas entranhas da personalidade e os mais recônditos escaninhos da alma. E é por isso que ninguém jamais entendeu tanto de futebol quanto ele.»
Genial como ele só, Nelson Rodrigues já havia resumido tudo numa só frase: «Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola.»
A obra de 200 páginas custa 17,90 euros e está à venda nas livrarias de todo o país."

Saudades do Barcelona, do Artur Jorge e do José Mourinho

"Quando, em plena década de 60 do século passado, o paradigma clássico dominava o conhecimento das pessoas e das coisas, parecia certo e seguro que uma ordem causal e mecânica explicava o funcionamento dos homens (e das mulheres), das sociedades, do universo. E, porque mecânica e causal, tanto mais exata quanto mais quantificada e medida e matematizada e considerando inútil, ou erro de monta, o estudo da desordem e do caos, na observação de uma organização qualquer. “As ideias claras e distintas” de Descartes ressoavam no paradigma clássico. E também certezas, análises, determinismo e disjunção (é preciso separar, para conhecer). Naqueles longínquos anos, a lógica de um jogo de futebol eliminava as relações entre os elementos de um todo, a estrutura interna de uma totalidade, dispensava o pensamento que relaciona, o pensamento complexo. Se amealhasse as frases mais sérias dos treinadores de futebol, entre elas lá encontraria: “Para já, ainda nos encontramos a treinar a defesa. Sofremos muitos golos. Só mais tarde poderemos ocupar-nos do ataque”. Como se o ataque e a defesa não integrassem a mesma totalidade, a mesma complexidade. Outros, julgando-se mais informados, mais actualizados, afirmavam convictamente: “O futebolista é um atleta. Sem qualidades físicas, não é possível praticar um desporto de alto nível. A preparação física está antes e acima de qualquer treino técnico e táctico”. No nosso País, os mais respeitados mestres do treino daquele tempo escreviam e repetiam (o David Monge da Silva, para mim o pioneiro do treino desportivo hodierno, no nosso País, ainda frequentava a licenciatura em Educação Física e Desporto, no INEF): “É no âmbito da fisiologia aplicada, fisiologia do trabalho muscular e fisiologia do exercício que a metodologia do treino desportivo tem a sua fundamentação científica”. Descartes (1596-1650), se vivo fosse, diria o mesmo…
Foi nas equipas do Artur Jorge, José Mourinho e no Barça do Pep Guardiola que melhor senti que o gesto desportivo, para ser eficaz, não poderia reduzir-se aos seus aspectos biológico e mecânico. Como se sabe, a visão weberiana da ciência integra-se num longo e conflituante processo de “desencantamento do mundo”. Segundo Max Weber, a ciência, hoje, “varre da realidade cósmica e humana todo o halo sagrado, místico e mágico, recorrendo ao cálculo matemático, à pesquisa, aos pressupostos e aos imperativos da lógica” (Artur Morão, Introdução a Max Weber, A Política Como Vocação – A Ciência Como Vocação, Book Builders, 2017, p. 2). O treino desportivo foi assim “coisificado” e “objectivizado”, através de metodologias que quantificam e mensuram e dando ao desprezo as metodologias qualitativas, esquecendo (e asfixiando) portanto a complexidade do real, a complexidade do social e humano. Poderia dobar, aqui, imagens sobre imagens, acerca dos treinos de futebol do Belenenses a que assisti, no Estádio das Salésias e no Estádio do Restelo e onde acção e interacção, relação e inter-relação, função e funcionamento se consideravam como elementos do treino que mutuamente se excluíam. O estabelecimento de fronteiras disciplinares justifica-se inteiramente, desde que o jogador não deixe de estudar-se como uma totalidade (ou seja, ele e a sua circunstância) e se torne visível, sem margem para discussões, que o treino é de futebol e não de atletismo, ou de ginástica. Mas uma totalidade humana, onde o físico, o biológico e o antropossociológico dialeticamente se relacionem, sejam portanto interdependentes, num todo homogéneo e unitário. Não arredo os olhos de uma célebre frase de Menotti: “O mais importante num futebolista não é a preparação física, mas que aprenda a jogar futebol”. E remato com as próprias palavras deste argentino: ”Nadie juega mejor el fútbol porque sea mejor fisicamente”.
O dualismo cartesiano perpetua-se ainda num “estilo de jogo”, que obriga o jogador a renunciar à sua singularidade, à sua originalidade, à sua criatividade. Há, quase sempre, no jogador profissional, motivado pelo ambiente que o rodeia, uma fome de vitória, um instinto competitivo imparável, a velas pandas, sem porto de ancoragem. O treinador e os seus adjuntos aparecem, demasiadas vezes, como uma oligarquia do saber, de incoercível, indiscutível lucidez e fazendo dos jogadores simples reflexos, meros repetidores e espectadores das suas convicções, onde há pouco estudo e pouco respeito pelo que os jogadores têm e são. Ora, repito-me: não há jogos, há pessoas que jogam. Que o mesmo é dizer: é o jogador o principal protagonista de um jogo de futebol. Alguns treinadores, no entanto, com invulgar empenho autopromocional, não deixam de revelar as suas ideias como descobertas insuspeitadas, esquecendo as suas principais funções na equipa: ajudar o jogador a ser o que pode ser; ajudar o jogador a sentir-se o principal responsável pelo resultado final do jogo. O Jorge Araújo, um treinador de basquetebol de talento ímpar, numa das suas múltiplas viagens aos Estado Unidos da América, estranhou que um seu colega norte-americano utilizasse um método de treino, “a bola no nariz” e, por isso, o questionou: “Que é isso de atirar bolas ao nariz dos jogadores?”. Lépido, o treinador norte-americano respondeu-lhe: “No final da época passada, no jogo que decidia quem seria campeão, a quatro segundos do final, com posse de bola e a ganhar por um ponto, um jogador da nossa equipa, enquanto trocávamos passes esperando que o jogo acabasse, levou com a bola no nariz. Em vez de assegurar primeiro a posse da bola, deixou escapar a bola que, de imediato, foi agarrada por um adversário, que aproveitou para fazer um cesto, derrotando-nos numa situação que não deveria ter acontecido. A partir desse momento, decidi criar este exercício, treinando assim os nossos jogadores para este tipo de situação. Poderei perder campeonatos por muitas outras razões, mas asseguro-te que dificilmente será por um jogador da nossa equipa levar com uma bola no nariz” (Jorge Araújo, Tudo se treina, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa. 2014, pp. 15/16).
Trabalhei durante treze meses, no departamento de futebol profissional do S.L.Benfica. sob a orientação do “mister” Jorge Jesus e depressa cheguei à conclusão que o futebol deveria pensar-se de forma diferente. Sintetizo as conclusões a que cheguei e podem contribuir, na modéstia do que sou e tenho, à elaboração de uma epistemologia do treino desportivo:
1. O “Erro de Descartes”, visível na separação irredutível, entre as ciências naturais e as ciências humanas. O especialista, o hiperespecialista e a pulverização do saber.
2. A multidimensionalidade do ser humano (e das coisas) e portanto a importância das relações, das ligações, das associações.
3. O método da complexidade, onde tudo tem a ver com tudo e que portanto se opõe à separação ordem-desordem, sujeito-objecto, corpo-alma, homem-mulher, rico-pobre, senhor-servo, ciências naturais-ciências humanas. Gaston Bachelard avisava: “Não existe o simples, existe o simplificado”. 
4. É pelo paradigma que se visiona o método. O futebol, como motricidade humana, como movimento intencional da transcendência do ser humano, tem necessariamente um método: o da complexidade. E portanto no futebol (como em qualquer outra modalidade desportiva) porque sujeito à imprevisibilidade, à liberdade do jogador, não há leis, mas “constantes tendenciais”.
5. O paradigma cartesiano e o paradigma emergente. A fragmentação dos elementos de um todo, de um sistema, significa não só a sua separação como a perda, nos elementos, das suas propriedades. Um extraordinário jogador, sem os seus colegas de equipa, perde grande parte das suas invulgares qualidades. Messi é explícito, em entrevista ao El Mundo Deportivo: “Foi a equipa que me fez bom jogador”.
6. Não esqueço o que José Maria Pedroto me ensinava: “Diz-me como atacas, dir-te-ei como defendes; diz-me como defendes, dir-te ei como atacas”. Segundo o pensamento complexo, tudo é sistema, se funcionar como totalidade organizada.
7. As “constantes tendenciais” do mundo humano são bem distintas da lógica das tácticas e de muitas das ordens idealizadas pelo treinador. Por isso, o treinador deve saber questionar e… questionar-se!
8. Uma equipa personaliza-se, quando a constituem sujeitos livres e libertadores e solidários e não sujeitos repetidores e normalizados e egocêntricos.
9. É pela comunicação, designadamente pela linguagem, que se descobre a intersubjetividade e que todos somos a parte de um todo. Iniesta é um “homem”, segundo declaram aqueles que o acompanham, na mais exacta e generosa acepção do termo. Afirmava-se, quando representava o Barça, que ele tinha o jogo do seu Clube, nas veias. De facto, o todo deve brilhar, em cada uma das partes.
10. Nada menos fiável do que uma “verdade” que não se transforma, que não muda… à luz de determinados princípios, de valores de incontroverso significado humanista!
Nas equipas de José Mourinho, do Artur Jorge e no Barcelona de Pep Guardiola, que beneficiava da colaboração, entre outros de talento ímpar, de Messi, Iniesta e de Xavi, eram evidentes estes princípios. E certamente outros que não distingo dos baixios dos meus limites. Se não laboro em erro, o Barça de Guardiola e o Porto do José Mourinho e do Artur Jorge e o Inter de Mourinho mereceram dos mais exigentes críticos os mais sentidos aplausos. Numa equipa de futebol, a originalidade deverá significar a existência de uma teoria fundante. O paradigma da complexidade parece-me, hoje, a teoria fundante mais adequada ao futebol em que vivemos, com o princípio sistémico ou organizacional, pois que a organização faz nascer, em cada um dos jogadores, novas qualidades; o princípio hologramático, que o mesmo é dizer: as partes estão no todo e o todo está nas partes; o princípio recursivo, “que nos permite reconhecer os processos, onde os produtos e os efeitos são necessários à sua produção e à sua causação” (Edgar Morin); o princípio dialógico “que permite reconhecer os fenómenos onde é preciso ligar termos antagónicos, ou mesmo contraditórios, para apreender a sua realidade” (Edgar Morin); um sistema é organizacionalmente fechado mas aberto, ao nível da informação, e portanto um treinador deverá ser fiel aos grandes objectivos do clube que serve e procurar, sem cansaço, uma informação rigorosa e constante; o determinismo e o indeterminismo coexistem, ou seja, na complexidade, lógicas de tipos diversos dialogam e complementam-se. Porque venho escrevendo, há muitos anos, que “a prática é mais importante do que a teoria e a teoria só tem valor se for a teoria de uma determinada prática”, mais vale quem aprende fazendo do que aquele que aprende memorizando. E em termos lapidares dou por findo o meu artigo de hoje."

Kant e Freud explicam o desporto...

"O Código de Ética Desportiva (2014, Lisboa, IPDJ) diz-nos que “o Espírito Desportivo deve ser vivido por todos os agentes, elementos-chave no exemplo a dar aos mais jovens. Deve ser concretizado dentro e fora da competição desportiva, devendo nortear a sua prática e constituir a ‘espinha dorsal’ da mesma.”
Entende-se assim o espírito desportivo como algo não só inerente aos intervenientes directos no «jogo» mas também em relação a todos os envolventes.
Os associados dos clubes pagam as suas quotas, os espectadores compram o seu bilhete e enchem os estádios - aplaudem, gritam, pululam… e, por vezes, insultam (insultam-se) ou agridem (agridem-se). Os competidores, cumprindo as regras ou não, procuram alcançar sempre a vitória - por vezes utilizando instrumentalmente meios ilícitos. Os dirigentes gerem as organizações para as quais foram eleitos com métodos e estratégias diferentes uns dos outros – uns mais válidos, outros nem tanto. Os árbitros… os treinadores… a análise poderia ser extensa!
Tudo isto será uma questão de educação? Uma questão de cultura? Uma questão de ética? Uma questão de “espírito desportivo”?
Bem… quando se prevarica não é de certeza uma questão de “espírito desportivo” – ou talvez seja… mas mais de falta dele. Ao evocar-se o espírito desportivo seria bom reflectir-se se na docência existe um “espírito pedagógico”, se na medicina existe um “espírito médico”, se na arquitectura existe um ”espírito artístico”… e por aí fora. A existirem são muito menos evocados.
Em obra recente (“O desporto debaixo de fogo – entre valores e perversidades”, Lisboa, Prime Books) demonstrei a bivalência do desporto… urge agora debruçarmo-nos um pouco sobre as origens (algumas) dessa mesma bivalência.
Com Kant (2003, “Pedagogia”, Madrid, Akal Ediciones) aprendemos que “a educação é o problema maior e mais difícil que pode ser proposto ao homem”. A educação visa formar indivíduos autónomos, emancipados e com uma identidade própria de modo a adaptarem-se a uma sociedade, a uma cultura, onde se inserem, mas apresenta-nos uma antinomia: “como cultivar a liberdade pela coacção?” – pergunta-nos Kant. E é este mesmo filósofo que nos diz que a educação concilia, através de uma legítima coacção, “a submissão [do indivíduo] com a faculdade de servir-se da sua vontade”. 
É através deste antagonismo que se forma o ser humano, construindo-se um indivíduo com propensões altruístas e sociáveis mas simultaneamente com tendências egoístas e desintegradoras. Resume Kant numa outra obra esta ideia a um termo: “insociável-sociabilidade”…
Mais recentemente António Damásio (2017, “A Estranha Ordem das Coisas”, Lisboa, Círculo de Leitores) deixou-nos a ideia que o comportamento altruísta é passível de ser treinado e praticado na sociedade. Mas diz-nos também que existe a alternativa contrária. Não há garantias que sendo treinado e praticado na sociedade resulte sempre, “mas existe como recurso humano consciente, presente através da educação”.
Encarando-se o desporto como um meio educacional durante os períodos de iniciação e de formação, também o mesmo não consegue fugir a esta antinomia. Os valores que se pretendem inculcar no jovem praticante, tais como a cooperação, a amizade, a tolerância, a justiça ou a equidade esbarram com o individualismo, o egoísmo, a tentação da vitória a qualquer preço, a competição exacerbada. 
Foi Kant que nos mostrou que a educação se torna no uso livre da razão moral dependendo dela que o indivíduo saiba utilizar a sua vontade pessoal e agir livremente. Mas a antinomia presente naquela leva a que a coacção passe a ser uma auto-coacção conduzindo o indivíduo a agir livremente mas em conformidade com o dever, ou seja, resistindo a tendências menos civilizacionais.
Encontramos o mesmo tipo de raciocínio em Freud (1997, “O Mal-Estar na Civilização”, Rio do Janeiro, Imago): “as duas premências, a que se volta para a felicidade pessoal e a que se dirige para a união com os outros seres humanos, devem lutar entre si em todo o indivíduo, e assim também os dois processos de desenvolvimento, o individual e o cultural, têm de colocar-se numa oposição hostil um com o outro e disputar-se mutuamente a posse do terreno”.
Nestes dois autores – o filósofo e o psicanalista – verificamos que é através de uma adaptação cultural que o homem acede à humanidade na sua plenitude (não se trata tanto de discutir o inato e o adquirido), tanto na sua evolução filogénica como ontogénica. Essa adaptação cultural pressupõe no indivíduo tendências altruístas e sociabilizantes mas também egoísta e desintegradoras. Vale a pena demorarmo-nos um pouco mais numa outra obra de Freud (1997, “O Futuro de uma Ilusão”, Rio do Janeiro, Imago): “(…) cada indivíduo é virtualmente um inimigo da civilização, apesar de ter que reconhecer o seu geral interesse humano. Dá-se, com efeito, o facto singular de que os homens, não obstante, ser-lhes impossível existir no isolamento, sentem como um peso intolerável os sacrifícios que a civilização lhes impõe para tornar possível a vida em comum. Assim, pois, a cultura há-de ser defendida contra o indivíduo, e a esta defesa respondem todos os seus mandamentos, organizações e instituições.”
A ética do desporto, cada vez mais ventilada diariamente, tem conseguido dar ao desporto um outro rumo? Pensamos que não e até Freud ao analisar o mal-estar na civilização já dizia que a ética deveria ser considerada como uma tentativa terapêutica… A presença de comportamentos exemplares no desporto tal como a existência de comportamentos reprováveis é uma realidade porque “tanto em nós como nos demais, encontramos sempre lado a lado uma solicitude pelos outros e motivos egoístas” (MacIntyre, A., 2006, “Historia de la ética”, Barcelona, Paidós). Tal como a velha história contada pelos índios sobre os dois lobos dentro de nós… E quando o neto pergunta “– Qual o lobo que vence?” o velho índio responde: “– Aquele que tu alimentas!”"