quarta-feira, 1 de agosto de 2018

A propósito dos prémios de assinatura... e não só

"Ás vezes tarde, nós, simples consumidores de notícias, acabamos por descobrir que, afinal, o zero eram uns tantos milhões

Durante o defeso do futebol e joguinhos de preparação, também faço o meu defeso. Quero dizer, só volto aos jogos, quando for a doer. Assim sendo, escrevo hoje sobre a parafernália contratual dos craques. Começamos pelos prémios.

1. A palavra prémio tem muitos significados, consoante o contexto, o assunto e a ... moeda. Prémio pode significar uma compensação ou remuneração por um serviço prestado, uma galardão ou condecoração, ou uma recompensa para os vencedores de uma competição, concurso ou jogo. Ou, ainda, um pagamento para beneficiar da cobertura de um seguro ou para compensar um risco tomado. No meio ou por causa de todas estas significações surge agora, amiúde, nos defesos futebolísticos a expressão 'prémio de assinatura'. Curioso é que, até há pouco tempo, não se dizia que o atleta x tinha recebido um prémio de assinatura. Eufemisticamente, a referência era da gratuidade para o clube contratante, dizendo-se que o tal jogador x chegava 'a custo zero'.
Pois agora sabe-se que há prémios de assinatura que tornam certas transferências bem mais caras do que as que têm preço sem assinatura. Às vezes tarde, nós, simples consumidores de notícias, acabamos por descobrir que, afinal, o zero eram uns tantos milhões, ainda que o jogador destes milhões muitas vezes não venha a passar de zero.
A abocanhar parte dos ditos prémios de assinatura, vêm pais, irmãos, tios e toda a parentela a custo zero, trasvestidos de senhores agentes FIFA ou empresários de oportunidade. O rateio do prémio pode contemplar ainda ouros laboriosos comissionistas dos quatro cantos do mundo em regime offshore.

2. Esta nova nomenclatura baralha tudo. Fica-se perdido no meio de tantas parcelas de custo para o clube, entre valor do passe, prémio de assinatura, taxas de transferências, repartição de direitos de imagem, bónus e pagamentos por objectivos (estes subdivididos em possíveis, improváveis e impossíveis), compensação por formação, mecanismo de solidariedade da FIFA, prémios de fidelidade (hélas!) e - já me ia esquecendo - o valor anunciado mediaticamente como sendo o da transferência efectuada. A contabilidade, por mais rigorosa ou criativa que seja, tem dificuldade em encontrar a bitola certa da depreciação (ou valorização) do contrato e do contratado. Há, ainda, prémios leoninos (literalmente) de assinatura para quem assina depois de ter 'des-assinado', numa versão de prémio de 'infidelidade aparente', mas que serve para judiciosas declarações de amor ao clube e de garantia pública de recebimento do mesmíssimo salário!
Sobre as comissões cobradas pelos agentes de intermediação e, segundo recente relatório da UEFA, o seu valor médio percentual para as cerca de 2000 transferências entre 2004 e 2017 foi de 12,6% da transacção (em Portugal, 13%). Destas, é-nos também dito que 1/3 das transferências foram sujeitas e uma comissão mesmo superior a 20%.

3. Assaz interessante é a componente de custo que está muito em moda, relacionada com pagamentos por objectivos. É uma variável objectivamente muito subjectiva, que quase sempre o tempo se encarrega de anular. Por exemplo, «o jogador custará 20 milhões mais outros 15 por objectivos». É um modo de ficcionar um montante não atingido pelo vendedor com os tais 'objectivos' para memória futura, que logo é desmemoriada. Quem normalmente a sugere é o intermidário, que esse recebe a sua prebenda certinha e se está marimbando para objectivos pós-recebimento. Quem tem de responder perante 'objectivos' (que não fixou) é o jogador. Mas este também se sente confortável. Aumentou o pecúlio mensal e sempre pode queixar-se do treinador que não o põe tanto a jogar ou o coloca em posição diferente da do anterior clube.
Há 'objectivos' para todos os gostos. Há os impensáveis 'objectivos' de ser o melhor do mundo ou da Champions, o de marcar n golos, o de ser m vezes seleccionado, o de jogar y jogos a titular ou y+z a titular e suplente. Ou seja, em regra, 'objectivos' facilmente manipuláveis pelo comprador. Enfim, a quintessência das técnicas negociais.
Ora toda esta parafernália de custos/proveitos torna algumas contratações bem mais pesadas do que nos querem fazer supor e algumas 'vendas' bem menos aliciantes do que na altura foi tornado público. Isto já não falando na engenhosa de compras ou vendas de partes de jogadores, em regime talhante de divisão do passe entre vários detentores (divisão monetária, mas não anatómica), que, na minha opinião, para bem do futebol deveriam ser erradicadas. E nem me meto pela modalidade de empréstimos com opções obrigatórias de compra (curioso, o oxímoro 'opção obrigatória'...), instrumento ainda mais opaco e sempre sujeito a mudanças de conveniência, em regime de retalho ou de varejo, ou, ainda, o de estar à experiência depois de já experimentado.
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4. Por fim, a celebérrima cláusula de rescisão, sempre inchada e raramente usada. Afinal o que significa esse limite? Manobra de negociação? Algoritmo de fantasia? As cláusulas de rescisão têm, em tese, duas funções: uma, a de maximizar o produto da alienação dos passes de jogadores; outra, a de possibilitar ao clube detentor resistir melhor ao assédio do mercado.
A inflação desmesurada dos valores descredibiliza este meio, com jogadores comprados por tuta e meia e com cláusulas de milhões e milhões.
Além disso, o critério usado para fixar as cláusulas é tão variável, quanto imprevisível e irracional. Raramente há uma verdadeira relação entre o salário do atleta e a cláusula de rescisão. E mandariam as boas regras de valorimetria de 'activos' (como agora se chamam os atletas) que o valor da cláusula fosse sendo reduzido com o tempo remanescente de idade útil do jogador.
Tenho para mim que, para o clube vendedor, a mais segura cláusula de rescisão é não haver cláusula de rescisão, ou seja, é o que muito bem se entender entre zero e infinito.
Mas não nos iludamos. Por detrás deste espectáculo grandioso para um reduzido número de talentos, sortudos e oportunistas, há o futebol dos pobres, de uma maioria que não é notícia.

O hóquei em crise
Foi com alguma nostalgia que acompanhei o Europeu de hóquei em patins realizado na vizinha Galiza. Não apenas por Portugal não ter conseguido revalidar o título - feito internacional que há muito não conseguimos fora do país - mas, sobretudo, pela irrelevância que vai assolando, a nível global, a modalidade. Pavilhão quase às moscas, selecções que mal sabiam patinar e sem quaisquer tipos de apoio (o caso da Bélgica meteu dó), jogos para entreter sem qualquer interesse, fórmula de competição que só aquece no último dia com duas de três selecções sempre presentes, em vez de um campeonato em que todos jogariam contra todos, como há foi. Até a transmissão pela televisão pública foi de uma triste vulgaridade de lugares-comuns chegando ao ponto de se referirem aspectos do jogo muito depois de nós, em casa, já os termos detectado. Parece que vai haver uma reformulação destas provas. Espero bem que seja para relançar um desporto que Portugal tanto acarinha e onde até há uma liga com alguma emoção, ainda que sofrendo do mesmo mal de 3 ou 4 equipas destacadas e o resto quase paisagem...

Contraluz
- Título: Portugal campeão europeu sub-19
Magnífica conquista de Hélio Sousa e dos seus jovens seleccionados. Embora confesse alguma confusão com tantas categorias de sub's (dantes a este torneio chamava-se europeu de juniores), há ali grandes promessas de carreiras. E a selecção até se deu ao 'luxo' de não ter precisado do consurso de João Félix, Gedson Fernandes, Rafael Leão ou Diogo Dalot. Pena que meia-dúzia dos campeões já estejam a jogar fora de Portugal...
Sorteio: Fenerbahçe
Tem-se dito que o sorteio foi madrasto para o Benfica, calhando-lhe os turcos. Talvez tenha sido, mas a escolha não era fácil e, às vezes, o Benfica dá-se pior com aparentes facilidades. Só não se compreende que o 'cabeça-de-série' jogue o 2.º jogo fora de casa.
Atitude rara: «Jogar um Mundial é um prazer, um sonho que se torna realidade. Há dinheiro em jogo, mas eu não me importo! Eu não jogo por isso»
Disse o jovem francês campeão do mundo Mbappé que afirmou, ainda, não ser necessário pagarem-lhe para jogar pela sua selecção e que os seus prémios servirão para causas sociais ou humanitárias.
Comparação: o golo de Grimaldo...
...  no jogo contra a Juventus, na marcação de um livre soberbamente apontado. Se tivesse sido Ronaldo, as televisões andariam a repeti-lo vezes sem conta e os superlativos superlativizados não chegariam..."

Bagão Félix, in A Bola

Milagre italiano? Milagre não é...

"Não é por acaso que a Itália é uma das maiores potências do futebol mundial. Os transalpinos sempre tiveram uma ideia muito clara do que era preciso fazer para manter vivo o clacio, quer através da adopção de políticas adultas, que visaram o progresso da modalidade e do negócio, quer também recorrendo à dura lex, sed lex quando foi preciso meter ordem na casa, nomeadamente nos anos do Totonero e do Calciocaos. Para que se tenha uma ideia do que vale o futebol italiano, bastará dizer que a nível de clubes venceram por doze vezes a Liga/Taça dos Campeões (Portugal tem quatro); por nove vezes a Liga Europa/Taça UEFA/TCF (Portugal tem duas); e por sete vezes a Taça das Taças (Portugal tem uma). No âmbito da selecção principal, Itália tem um título europeu (como Portugal) e sagrou-se quatro vezes campeão do Mundo (Portugal tenta...).
É verdade que na última década houve algum atraso dos clubes italianos, que demoraram a reagir ao ataque das ligas espanhola e inglesa, que monopolizaram os melhores jogadores e também à exemplar organização dos alemães, que mantêm cheios os estádios da Bundesliga. Porém, aquilo a que assistimos hoje é ao regresso pujante da Itália do futebol. Começaram por meter na ordem as tribos mais violentos das claques, passaram, depois, à fase da renegociação dos direitos televisivos e, com os estádios mais pacificados e os cofres mais cheios, abalançaram-se a contratações mais ousadas, de que CR7 é o expoente máximo. Infelizmente, por cá continuam demasiado ténues os sinais de uma defesa da indústria do futebol e os principais clubes continuam entretidos em guerras de alecrim e manjerona."

José Manuel Delgado, in A Bola

Da hipocrisia...

"As pinturas rupestres de mãos, impressões positivas ou negativas, datadas entre 28 e 40 mil anos, quer sejam as mais antigas as de La Pasiega, de Chauvet ou da ilha de Sulawesi, transformaram o ser humano em espectador. O desporto transformou esse mesmo ser humano em espectador-consumidor.
Hannah Arendt dizia-nos que a excelência – areté – necessitava da presença dos outros, de um público formal. Em 1936 já Hitler tinha percebido isso ao fazer transportar a tocha olímpica de Olímpia para Berlim, quando a televisão dava os seus primeiros passos na divulgação das imagens de uns Jogos Olímpicos…
Mas os atletas também perceberam que a existência desse público formal poderia servir para passar as suas mensagens. Tommie Smith e John Carlos, ao fazerem a saudação típica dos Black Panthers no pódio, foram talvez dos primeiros a demonstrarem isso nos Jogos Olímpicos de 1968, no México. 
Recentemente, no mundial de futebol, na partida entre a Suíça e a Sérvia, que a primeira venceu por 2-1, Xherdan Shaquiri e Granit Xhaka, autores dos golos da Suíça, comemoraram os mesmos fazendo um gesto, com as mãos cruzadas, aludindo à águia de duas cabeças da Albânia. Disse-se que provocaram os adeptos sérvios… Contextualizemos: Xhaka é filho de pais albaneses de origem kosovar ao passo que Shaqiri é mesmo kosovar… e sabemos que a Sérvia não reconhece a independência do Kosovo.
A FIFA, solícita, abriu um inquérito e multou os dois jogadores suíços em 8,7 mil euros. Curioso a FIFA também sancionar jogadores que chamem «macaco» a um adversário considerando isso racismo e não sancionar um jogador por injuriar a mãe de um árbitro ou de um adversário porque esses termos fazem parte da linguagem do futebol… Hipocrisia ponto um!
Em 1999 a Nike pagou 500 mil dólares à União Ciclista Internacional para encobrir uma análise positiva de Lance Armstrong… (veja-se Albergotti, R. & O'Connell, V., 2014, “Lance Armstrong – o ciclista”, Alfragide, Livros D'Hoje). No entanto, a mesma Nike, em Outubro de 2012, ano em que Armstrong perde os seus 7 títulos do Tour, emite um comunicado onde expressa ter sido enganada por Armstrong durante mais de uma década e que a mesma “não tolera o uso de drogas ilegais que melhorem o desempenho desportivo”. Hipocrisia ponto dois!
E se o desporto criou o espectador-consumidor, a entrada da publicidade em jogo neste levou a alterações profundas no espectáculo. O que significa alterações profundas no desporto.
Antes da era Armstrong, alguém na Europa conhecia os US Postal? Ou deles tinha ouvido falar? Não, foi ele que lhes deu visibilidade, foi ele que os publicitou durante todos os anos em que os carregou às costas. Mas o Estado norte-americano pretende reaver de Lance Armstrong – como se só ele fosse patrocinado e não toda a equipa – a quantia de 85 milhões de euros por sentir-se defraudado pelo patrocínio abonado pelos US Postal entre 2000 e 2004… com juros referentes a 13 anos… Hipocrisia ponto três!
Se o consumo do desporto pelo espectador e a publicidade provocaram mutações no desporto, a intromissão da política no mesmo maior alteração veio a provocar. O atentado ocorrido nos J. O. de Munique, em 1972, e os boicotes aos J. O. de 1980, em Moscovo, e aos de 1984, em Los Angeles, são provas macro disso (não nos ocuparemos das provas micro por agora). Actualmente, muitos desportistas, principalmente de futebol americano, nos Estados Unidos, ajoelham-se durante a entoação do seu hino como forma de protesto em relação às políticas daquele país. Donald Trump já se pronunciou: “a primeira vez que se ajoelharem devem ser expulsos do jogo, à segunda devem ser proibidos de jogar durante a temporada e ficar sem salário”. Aguardemos os próximos capítulos… para vermos a força da política sobre o desporto ou a capacidade do mesmo resistir à intromissão da mesma.
“Uma vozearia rebentara no solar. Voltaram para trás a toda a pressa e tornaram a espreitar pela janela. Sim, eclodira uma violenta altercação. Havia gritos, murros na mesa, olhares ferozes de desconfiança, desmentidos irados. A origem do tumulto parecia residir no facto de Napoleão e o Sr. Bonifácio terem jogado simultaneamente dois ases de espadas.
Doze vozes gritavam, furiosas, e todas se assemelhavam. Era agora evidente o que sucedera aos rostos dos porcos. Os animais diante da janela olhavam dos porcos para os homens, dos homens para os porcos, e novamente dos porcos para os homens: mas era já impossível distingui-los uns dos outros.” Assim termina George Orwell o seu «A Quinta dos Animais». Assim se encontra o desporto… refém do espectador-consumidor, da publicidade, da política e da hipocrisia."