A final do Mundial

"Vai ser uma final entre o calculismo da grande França e a sagacidade da pequena Croácia. Há no ar uma nova ordem no futebol mundial...

1. Hoje em Moscovo a Croácia faz história e cria, desde já, uma nova ordem no mundo do futebol. Desde 1950 é a primeira selecção de um pequeno Estado a chegar à final de um Mundial. A Croácia, com quatro milhões de habitantes e muitos outros também numa diáspora com muita história e com muitas dores, é uma selecção acarinhada por largos milhões de adeptas e adeptos do futebol. O Uruguai, com cerca de 3,3 milhões de habitantes, chegou às finais de 1930 e 1950 e ergueu, com todo o orgulho, o troféu. A Croácia alcançou este Mundial através dos europeus play-offs e chegou à final com três prolongamentos. E com duas etapas de grandes penalidades. A Croácia, quase que  o uruguai europeu, tem Modric como capitão e maestro e tem um Rakitic o jogador que mais jogos disputou na presente época desportiva (71)! A França terá presente, bem presente, o Europeu que organizou e a derrota frente a Portugal. Também não esqueço o Mundial da Alemanha de 2006 em que Portugal conquistou o quarto lugar. Vi, sentado na bancada, Zidane marcar a grande penalidade que levou a França à final e também vi, sofrendo na bancada, a anfitriã Alemanha conquistar o terceiro lugar ao vencer-nos por 3-1. Sendo o árbitro o japonês Toru Kamikawa. E sendo esse o Mundial da cabeçada de Zidane em Materazzi que... agora seria, de imediato, sancionada pelo VAR, através das cerca de trinta câmaras que nos mostrarão quase tudo, na tarde deste domingo, a partir de Moscovo! Vai ser uma final entre o calculismo francês e a sagacidade croata. Entre a força gaulesa e a subtileza croata. Entre jovens que revolucionam, em velocidade, o futebol francês e a serenidade e a argúcia da sabedoria croata. Entre a grande França e a pequena Croácia. Mas há no ar uma nova ordem no futebol mundial...

2. Acabado o Mundial da Rússia já sabemos que o próximo Mundial do Catar se jogará entre 21 de Novembro e 18 de Dezembro. Poderá ser, desde logo, um Mundial com quarenta e oito selecções. Acredito que a ausência na Rússia da Itália e do Chile, da Holanda e dos Camarões e, também, dos EUA antecipará o alargamento desta competição para o Mundial de 2022. Como acredito que a China lutará pela organização do Mundial de 2030 com o projecto de organização conjunta da Argentina, Uruguai e Paraguai. O que sabemos é que as Ligas europeias terão que começar a preparar, e a antecipar, os seus calendários já que um Mundial no inverno europeu é bem diferente de um Mundial no verão europeu. O que sabemos é que o Mundial da Rússia foi exemplar sob o ponto de vista organizativo e que o Catar já tem construído, como bem nos ensinou o Professor Jesualdo Ferreira, um dos principais estádios do Mundial! A FIFA tem razões para sorrir. Agora é gerir a clivagem com a UEFA acerca da evolução/concretização do Mundial de clubes. Que parece uma resposta da FIFA ao retumbante êxito que é a Liga dos Campeões... da UEFA!

3. O senhor Shéu Han deixou as funções de secretário técnico do Benfica. Acompanhei a sua carreira de jogador e cumprimento a sua dedicação ao Benfica desde 1970. Foram quarenta e oito anos de uma entrega única, de um exemplar profissionalismo e de uma ética marcante. Ele é, sim, um verdadeiro embaixador da ética no desporto e, em particular no futebol! Entrou no Benfica em 1970 e o seu primeiro jogo foi, salvo erro, em Outubro de 1972 frente ao Barreirense no saudoso Estádio D. Manuel de Melo. Substituiu ao 80 minutos o nosso querido amigo, também sempre presente, Toni. O Benfica ganhou por três a zero com golos de Humberto Coelho (abraço!) e Nené (outro!), que bisou. Fez 487 jogos, marcou 45 golos, conquistou nove campeonatos nacionais, seis Taças de Portugal e duas Supertaças. Envergou por vinte e quatro vezes a camisola da nossa selecção. Com a liderança conquistadora de Toni despede-se dos relvados, e em particular do velho Estádio da Luz, em Maio de 1989, e apesar do empate face ao Boavista conquista o seu último título nacional e com um avanço de sete pontos sobre o Futebol Clube do Porto. Sempre jogou no Benfica. Sempre se dedicou ao Benfica. Sempre as suas serenidade, simplicidade e sagacidade foram reconhecidas e referenciadas. Sempre foi afável e sempre foi solidário. Sempre foi tolerante e sempre foi fiel. Com ele aprendemos a grandeza do Homem e a gratidão do cidadão. Sempre o admirámos e sempre tivemos o privilégio da sua generosidade. Na palavra e no gesto. No olhar e no silêncio. Ele, o Senhor Shéu, é o exemplo vivo das palavras de Erik Geijer: «O que se faz de grande faz-se em silêncio»! Bem haja Senhor Shéu Han por todos estes anos e por todos os momentos que me (nos) proporcionou. Em todos os momentos e instantes da sua vida de jogador, dos seus tempos de treinador e de dirigente, dos seus múltiplos instantes de cidadão socialmente empenhado. Como o Rui Costa, sempre uma referência do Benfica, também digo e agradeço por «tudo aquilo que nos deste e tudo aquilo que foste para nós»! E acredito que o Benfica, a Federação, a Liga, o Sindicato dos Jogadores e, até, o afectuoso poder político não deixarão de devidamente homenagear uma vida dedicada ao futebol português.

4. O Benfica mostrou face ao Vitória de Setúbal que há talento do Seixal que se vai projectar nesta época desportiva - Gedson e João Félix, por excelência - e que fez contratações que vão proporcionar muitas noites - e finais de tarde - de reconquista. Como é o caso de Conti, de Ferreyra e de Castillo. O Benfica sabe, no seu todo, que terá, porventura, no próximo Agosto um dos meses mais importantes da sua recente história desportiva. O Benfica sabe, no seu todo, que é fundamental - a todos os níveis! - entrar a ganhar na Liga portuguesa e entrar para a fase de grupos da Liga dos Campeões. E esta pressão - sim é pressão - tem de ser assumida na sua integridade por todo o universo benfiquista. A começar, com a serenidade que os tempos exigem, por nós, adeptos. Mas com a consciência que, neste Agosto, muito se joga acerca do futuro próximo do Benfica europeu e do bem e sempre português Benfica!"

Fernando Seara, in A Bola

A bola também rola, nos B's...



PS1: Que bom é ver o Guga a jogar sem problemas...!!!

PS2: E os sub-23 também...

O caso do Valência CF

"Após pedido de decretamento de uma medida cautelar, apresentada pelo Valência CF junto do Tribunal de Justiça da União Europeia, ficou suspenso o pagamento da multa que a Comissão Europeia determinou, até que haja uma decisão definitiva relativamente a esse processo. Recordamos que aquela instância europeia decidiu pela aplicação de uma multa de cerca de 23 milhões de euros ao clube, por entender que este recebeu auxílios estadais indevidos.
A decisão que suspende o pagamento da multa é de extrema importância para o clube, dando margem para que recupere alguma estabilidade financeira. No pedido apresentado, o clube salientou que o início iminente do processo de execução para recuperação dos montantes pagos pelas entidades públicas causaria um dano económico que poderia levá-lo a ter de entrar em processo de insolvência, o que poria em risco a sua participação na Liga e nas competições europeias e prejudicaria a competitividade do clube, causando outros danos irreparáveis ou de muito difícil reparação da natureza não financeira, como os danos à imagem do clube e, acima de tudo, a possível descida de divisão de acordo com as normais aplicáveis.
Com efeito, o Tribunal de Justiça entendeu que, dado o dano grave e irreparável que poderia resultar da aplicação imediata da decisão da Comissão Europeia (na medida em que ordena a recuperação do auxílio estadal incompatível e ainda uma multa) antes do Tribunal de Justiça decidir o recurso pendente relativamente à aplicação da multa, era no interesse da boa administração da justiça ordenar a suspensão da execução da decisão da Comissão."

Marta Vieira da Cruz, in A Bola

Dominar as atenções

"Uma equipa dominadora, é o que Rui Vitória deseja do Benfica 2018/19. Uma pretensão que está de acordo com a grandeza do clube e a dimensão dos jogadores que tem. Ser dominador é mais do que ser controlador. Obriga a uma óptima organização e a uma grande capacidade física. A esse patamar o Benfica obviamente ainda não chegou – trabalha para isso –, mas já se percebeu que o sistema terá um papel determinante.
O Benfica da 1.ª parte com o V. Setúbal esteve mais próximo daquilo que Vitória pretende, muito por mérito de um onze em que as peças encaixaram melhor e também pela agressividade de Jonas e Ferreyra no ataque à bola na primeira linha de pressão. Essa tem de ser condição primeira para ser dominador: ganhar a posse de bola e ser contundente com ela.
Enquanto não atingir esse nível de excelência, há quem domine... as atenções. Ontem, foi o caso de Ferreyra (já se estreou a marcar), mas sobretudo de Gedson. O miúdo de 19 anos encheu o campo e justificou a dupla aposta de Rui Vitória. Para continuar? Para já, promete e muito.
Duas notas finais: a ‘fome de bola’ que os adeptos já têm e a agressividade excessiva dos sadinos. É o estilo de Lito, mas se não o temperar, então o Vitória corre o risco de não terminar muitos jogos com 11 em campo."

À falta de melhor

"O Mundial só se despede amanhã - que nos perdoe Gianni Infantino, mas dizer que este está a ser o melhor de sempre é um exagero que só encontra explicação na necessidade do presidente da FIFA ser simpático para os russos, que, é verdade, superaram as baixas expectativas a nível organizativo - mas por cá, fruto da eliminação demasiado precoce de Portugal e enquanto esperamos pelo regresso do futebol a sério, vamos procurando algum entusiasmo nos jogos de preparação, na tentativa de ali encontrar um vislumbre do que poderão ser as equipas portuguesas na próxima época. É, invariavelmente, uma tarefa inglória, em especial nesta fase tão embrionária, em que os treinadores querem (e bem) dar minutos a todos, mesmo a quem ficará sempre de fora na hora da inevitável triagem.
Falemos um pouco do Benfica, dos grandes aquele que, fruto da obrigatoriedade de disputar duas eliminatórias para chegar aos milhões da Champions, está em fase mais adiantada da preparação. Haverá, talvez, razões para os adeptos se entusiasmarem com Ferreyra e Castillo. Ou com Gedson e João Félix. Mas há ainda, como é normal, mais perguntas do que respostas. A começar, claro, pela táctica com que a águia irá atacar esta temporada. Vitória tem chutado a questão para canto e vai oscilando entre o 4x3x3 e o 4x4x2. Nada contra, embora seja evidente que, mais cedo do que tarde pela urgência de ter a equipa pronta em breve, a escolha se tornará clara. Ainda assim, se tivéssemos de apostar colocaríamos a cruzinha no 4x4x2. Sim, Jonas já mostrou que a história de não render em 4x3x3 era mito, mas este ano há Ferreyra, investimento demasiado elevado para ficar de fora. Este Benfica, como está de momento, parece talhado para dois avançados. A táctica que, no fundo, melhores resultados lhe trouxe nos últimos anos..."

Ricardo Quaresma, in A Bola

FIFA pede para filmarem apenas as mulheres gordas e feias

"É irónica esta preocupação da FIFA com o sexismo, visto que não tem qualquer tipo de problema em escolher como organizadores dos seus maiores eventos países que têm no seu cadastro uma série de crimes de discriminação.

A FIFA aconselhou os canais de televisão para que deixassem de focar raparigas que possam ser consideradas atraentes durante as transmissões televisivas dos jogos do Mundial de Futebol 2018. Por outras palavras, a FIFA pede para que filmem só as feias e gordas. É irónica esta preocupação da FIFA com o sexismo, visto que não tem qualquer tipo de problema em escolher como organizadores dos seus maiores eventos países que têm no seu cadastro uma série de crimes de discriminação, seja contra mulheres, homossexuais, negros ou outro grupo de pessoas. Quando a Arábia Saudita acolher um torneio de futebol não haverá este problema, já que as mulheres serão obrigadas a usar burkas nos estádios, tornando impossível perceber se são atraentes ou não, a não ser em casos de estrabismo. Ser estrábico deve ser mau, mas num país em que tens de usar burka deve ser ainda pior. Pensem nisso quando acharem que a vossa vida vos está a correr mal.
Ora bem, focar a realização em mulheres atraentes é sexismo? Talvez. É assim tão mau apreciar-se mulheres pela sua beleza exterior? Não me parece, apenas as feias acharão isso de mau tom. As mulheres não partilham fotografias dos jogadores de futebol, exaltando as suas qualidades físicas e não futebolísticas? Será isso também uma forma de sexismo? Claro que não, a discriminação só tem um sentido que cuja origem é sempre o homem branco heterossexual, todos sabemos. É mais sexista um realizador focar o decote de uma jovem que foi vestida para o estádio a ver se conseguia fama – como aconteceu com a Larissa Riquelme, aficionada do Paraguai sempre encalorada e que guardava o telemóvel numa espécie de bolsa marsupial no meio dos seios – ou é mais sexista uma mulher que nem sabe o que é um fora-de-jogo ver uma partida de futebol só para apreciar as pernas do Ronaldo? Não sei a resposta, estou só a fazer perguntas.
Falando na Larissa, são várias as mulheres que ficaram conhecidas por irem ao estádio e terem a atenção das lentes, algumas tornaram-se modelos e conseguiram contratos com marcas. Esta luta desmesurada em prol de uma suposta igualdade está a tirar trabalho e independência a estas mulheres. É tudo muito confuso. É feminista quem quer acabar com as meninas que entregam medalhas na volta à França ou é feminista quem acha que as mulheres podem ter trabalhos em que apenas usam o corpo e a imagem para ganhar dinheiro? Não sei a resposta, estou só a fazer perguntas.
Perceberia esta luta da FIFA se as mulheres em causa, que foram destacadas na realização, se tivessem queixado. Claro que as mulheres se podem vestir como quiserem sem se preocuparem em serem objectificadas, não é isso que está em causa, mas estaremos a mentir se dissermos que todos nós, homens e mulheres, não gostamos de ser objectivados de vez em quando e apreciados pelos nossos atributos físicos. Em breve, as modelos não poderão ser atraentes. Nas transmissões dos desfiles da Victoria Secret é aconselhável que apenas filmem as invejosas feias que estão na assistência e não as modelos. O mundo vive das aparências e a culpa é de todos, é lidar com isso em vez de sermos hipócritas e acharmos que isto vai mudar alguma coisa.
O grande problema é que com estas novas guidelines, sempre que aparecer uma mulher na imagem, podemos assumir que o realizador achou que ela não era atraente o suficiente e que, por isso, poderia ser filmada. Algo que era um elogio e que podia subir o ego, é agora, potencialmente, devastador. Se partimos do princípio que todas as mulheres filmadas apenas o foram devido ao seu nível de beleza, pode o realizador focar crianças do sexo feminino ou isso poderá ser considerado pedofilia? E as minorias? É preciso haver quotas? Tem o realizador de andar à procura de um branco vestido com a camisola da Nigéria ou de um negro vestido com a camisola da Suécia? É tudo muito confuso. Atenção que não digo que focar a câmara nas mulheres bonitas não possa ser considerado sexismo, mas não é com este tipo de conselhos que o sexismo diminui no mundo, especialmente quando temos um mundial feito na Rússia, país que no ano passado aprovou uma lei que descriminaliza alguns actos de violência doméstica, onde passam a ser considerados crime, apenas se existirem ferimentos graves, que obriguem vítima a ir ao hospital ou a faltar ao trabalho. A FIFA e as preocupações hipócritas a que sempre nos habituou; proibir países que praticam crimes de ódio e que discriminam grupos de pessoas de participar ou acolher os eventos da FIFA é que talvez mudasse alguma coisa, mas depois perdia-se dinheiro e coisa e era chato."

O problema das gajas boas

"Irão interdita estádios às mulheres, FIFA quer que TV deixem de procurar as sexy no público. Qual é a diferença?

No dia 20 de Junho, mulheres puderam, pela primeira vez em 38 anos, entrar num estádio de futebol no Irão, para assistir à transmissão do jogo da selecção nacional com a da Espanha. Em maio, activistas feministas tinham-se fotografado num estádio usando bigode e barba, e em Março 35 foram detidas por tentar assistir a um jogo. No início do mundial, uma adepta iraniana tinha apelado à FIFA para que pressionasse o país no sentido de acabar com uma proibição que até a Arábia Saudita levantou no ano passado. O presidente da organização disse que havia sinais do regime iraniano nesse sentido - e, de facto, seguiu-se a autorização para assistir à transmissão.
O motivo alegado para a proibição é o mesmo que preside à imposição do véu e da roupa "não reveladora" para as mulheres no espaço público: protegê-las daquilo que se considera ser o "natural comportamento masculino", que no clima de excitação dos jogos implicará, do ponto de vista das autoridades religiosas, o perigo de serem molestadas com linguagem "imprópria" e outros tipos de assédio. Ou seja, para os imãs iranianos - como para as autoridades religiosas que, inclusive em países ocidentais como Itália ou Croácia, as obrigam a "cobrir-se" quando entram num templo para não "desviar a atenção dos homens para pensamentos pecaminosos" - as mulheres existem como projecção do olhar e vontade dos homens, como seres-para-os-homens, ou, para usar um antigo jargão feminista inteiramente adequado, objectos do desejo masculino.
Apesar da obviedade disto, não faltou quem, nas reacções à iniciativa da FIFA de admoestar os operadores televisivos por insistirem em planos de "mulheres atraentes" no público dos jogos, asseverasse que "daqui a pouco obrigam-nas a usar burqa." É normal: perceber o contínuo entre a proibição iraniana e a obsessão das TV com aquilo a que tantas vezes ouvimos os comentadores apelidar de "caras bonitas" implica ser capaz de tomar consciência de que o estatuto da mulher visto como "natural" é uma construção a partir da perspectiva masculina. E de tal modo será difícil perceber isso que entre as palermices que logo se disseminaram sobre a iniciativa da FIFA, estão, além do demagógico uso das palavras "proibição" e "censura" pelos media (a FIFA não proibiu nada, limitou-se a recomendar), pérolas como "agora só podem filmar mulheres feias, é?" ou "querem proibir as mulheres bonitas".
Aparentemente, quem diz e até escreve estas coisas em colunas de jornal não consegue olhar para os planos de público dos jogos de futebol (ou das touradas, outro clássico) e ver que o critério usado para focar homens e mulheres é radicalmente diferente: eles ou são protagonistas do espectáculo (jogadores, árbitros, equipa técnica) ou adeptos especialmente "enfeitados", patuscos ou emocionados. Ou seja, focados como sujeitos de acção.
Nenhum homem é filmado nas bancadas apenas por ser "bonito"; e mesmo quanto aos jogadores nunca há, nos estádios, planos apertados das respectivas nádegas, peitorais ou abdómen, ou seja, nunca os vimos serem focados como objectos sexuais - mesmo se é óbvio que para a maioria das pessoas, mulheres e homens (homo ou hetero), os craques são símbolos sexuais. Isso seria, considerarão decerto os realizadores, "degradante", "desrespeitador", quiçá "ordinário". Em contrapartida, as imagens de mulheres e de partes de corpos de mulheres são uma constante tão naturalizada que a Getty Images publicou, a 25 de Junho, uma colectânea de fotos "das fãs mais quentes do mundial" anunciando-a num tuite com o texto "futebol é conhecido como o jogo mais belo e isso inclui as suas fãs. Vejam as fotos das mais sexy." A agência acabaria por apagar o tuite e as imagens, pedindo desculpa, após acusações de sexismo e misoginia.
Como os organizadores da Volta à Espanha em bicicleta, que anunciaram o ano passado o fim das "raparigas do pódio", e a Fórmula 1, que fez o mesmo este ano, a FIFA parece ter tomado a decisão de combater o sexismo e a discriminação das mulheres, afrontando as legiões de grunhos que lhe vão chamar puritana e censora. Antes tarde que nunca, FIFA. Mas, sob pena de dar razão a quem alega que a preocupação só lhe surge tendo em vista o local do próximo mundial -- o muçulmano Qatar -- é imperativo que se pronuncie sobre a ignóbil interdição iraniana."

A última lição de francês

"Depois da final perdida para Portugal, Deschamps desligou o software emocional da França. Foi por essa razão que, ao longo do Mundial, sempre pareceu a equipa mais sólida, mais fiável.

Durante quase uma semana os franceses fizeram conferências de imprensa não para serem ouvidos pelos jornalistas ou pelos adeptos, mas por Deus, o destino, o acaso, quem quer que seja o responsável por tecer os fios das vidas humanas: “Nós aprendemos a lição. Não seremos sobranceiros. Respeitaremos o adversário. Os jogos ganham-se em campo”, etc, etc, etc. Depois da tragédia de Paris, em que o universo serviu-se de um tal Éder para ensinar uma lição a toda a gente, incluindo os portugueses, ninguém na equipa francesa queria voltar a passar por uma situação semelhante. Estavam dispostos a tudo, até a um acto público de contrição muito contrário ao espírito da “grandeur”.
Diz-se que quando Voltaire estava a morrer os padres pediram-lhe que renunciasse a Satanás, ao que o escritor e filósofo terá respondido: “Não é hora de fazer novos inimigos.” Voltaire toda a vida combateu o pensamento supersticioso. Porém, se os jogadores franceses aprenderam dele alguma lição foi a de evitar fazer novos inimigos em momentos inoportunos. Pelo sim, pelo não, antes que o destino lhes pregasse outra partida, içaram a bandeira branca e pediram tréguas ao karma.
O karma, sempre atento às acções humanas, presenteou-os liberalmente na primeira parte: um auto-golo e um penálti, vá, generoso. Num Mundial em que foi batido o recorde de auto-golos seria quase criminoso que na final não houvesse um. O feliz contemplado foi Mandzukic. Logo ali se soube que ele haveria de marcar um golo porque, diz o senso comum, quem marca auto-golo depois é compensado com um golo na baliza certa. Perisic empatou o jogo, mas como o que Deus dá, Deus tira, foi o mesmo Perisic que levou com a bola no braço depois de um canto. Alertado pelo VAR, Néstor Pitana correu para o ecrã e, depois de muita câmara lenta, veio em passo de corrida com a decisão inapelável. Griezmann, frio como o inverno siberiano, facturou. Ao intervalo, a França tinha feito um remate e dois golos, numa taxa de aproveitamento de 200%.
E a Croácia? A Croácia entrou com brio, de peito aberto, a cair em cima dos franceses, pelos flancos e com toda a alma, numa notável ilustração do espírito guerreiro de Tomislav, primeiro rei dos croatas. O problema é que a França estava preparada para aguentar os embates sem se desorganizar táctica e espiritualmente. Excepto por umas tentativas kaiserianas de Umtiti sair com a bola dominada, não havia sinais de instabilidade. Nem sequer havia sinais de emoções. Depois da final perdida para Portugal, Deschamps desligou o software emocional da França. Foi por essa razão que, ao longo do Mundial, sempre pareceu a equipa mais sólida, mais fiável. Raras vezes entusiasmantes (a excepção foi o jogo com a Argentina), quase nunca espectaculares (a excepção, claro, foi Mbappé), mas com aquela solidez férrea indispensável aos campeões, aquela fiabilidade que pode não chegar aos 220 km/h, mas que nunca se despista.
Didier Deschamps construiu máquina à sua imagem. Não se importou de atirar borda fora 14 dos jogadores que estiveram no Euro, não teve problemas em abdicar de talentos como Martial e Lacazette, para atingir um único objectivo: construir uma máquina que, acima de tudo, lhe desse garantias de não se despistar. Mas também uma máquina adaptável às características do adversário, capaz de encontrar a cada momento a resposta certa às diferentes questões que lhe foram sendo colocadas. Foi assim que ganhou a equipas tão diferentes como a Bélgica e o Uruguai, a Argentina e a Croácia. Neste sentido, a selecção gaulesa é uma equipa reactiva. Depois de tanto se falar do efeito Guardiola, eis que o Mundial é conquistado por uma equipa mourinhista, uma equipa de que Simeone se orgulharia. Aliás, um dos feitos de Deschamps mais destacados pela crítica foi a domesticação de Pogba, convertido num discípulo abnegado da disciplina, coisa que nem o próprio Mourinho conseguiu fazer até agora. Outros exemplos da filosofia do treinador francês foram o papel fundamental de N’Golo Kanté e a confiança absoluta num avançado que acabou o Mundial com um remate à baliza, Olivier Giroud.
Como escreveu Jorge Valdano, a França é um produto do seu treinador, em que o talento que existe tem de obedecer a uma ordem superior, enquanto a Croácia é um produto dos seus jogadores. Sabendo a opinião do antigo avançado argentino sobre as equipas de Mourinho e Rafa Benítez, não se pode dizer que seja um elogio, embora Deschamps, o terceiro homem a conquistar o Mundial como jogador e treinador, não deva estar muito abalado pela opinião de Valdano.
Na segunda parte, beneficiando dos riscos dos croatas e impulsionada pela entrada de Nzonzi, a França ameaçou golear. Pogba, Griezmann e Mbappé corriam como os ventos saídos do saco de Éolo e a Croácia, pela primeira vez neste Mundial, parecia uma equipa derrotada e sem ânimo. O monumental frango de Lloris, que ofereceu assim a Luva de Ouro a Courtois, evitou o que seria uma humilhação escusada e injusta para uma Croácia corajosa, uma selecção com tanto futebol quanto a França, mas menos equipa e menos treinador.
No final – na final – venceu o melhor. Fosse sempre assim."

A França foi a melhor e mais eficaz equipa do Mundial de futebol

"A Croácia não estudou devidamente a final do último Europeu, ganho por Portugal. Preferiu a franqueza ao cinismo. Assumiu a posse de bola e deu espaço à França. A final teria tido outra qualidade, e mais equilíbrio, com a Bélgica ou o Brasil, as outras duas melhores equipas da prova

A França venceu bem o Mundial. Tem melhor equipa que a Croácia. Mais realista e eficaz. E a final mostrou como o “lado da morte” do quadro foi importante. Foi aí que se jogaram os jogos mais determinantes do torneio: o Brasil-Bélgica, primeiro; e o França-Bélgica, depois. Nesses jogos estiveram as três melhores equipas da prova, sem qualquer menosprezo pela boa campanha da equipa croata, liderada pela dupla Modric-Rakitic, que não ganhou qualquer jogo nos 90 minutos desde que começaram os oitavos-de-final. Ao contrário, nesse período, a França ganhou-os todos, para no final apresentar seis vitórias e um empate (0-0 com a Dinamarca na fase de grupos). A Bélgica, que mostrou a sua enorme qualidade na final de consolação, com a Inglaterra, fez seis vitórias e uma derrota (com a França).
A Croácia não estudou devidamente a final do último Europeu, ganho por Portugal. Preferiu a franqueza ao cinismo, a posse de bola em detrimento do prescindir da iniciativa (também porque não se sente tão à vontade na passagem defesa-ataque). Essa escolha, e os erros por ela influenciados, determinou a melhor opção de jogo para a França, equipa de jogadores experientes, contrastados e onde há Mbappé, o “fórmula 1” do futebol Mundial, um jovem com um potencial extraordinário que começou a ser lapidado por Leonardo Jardim, no Mónaco.
Não se pode dizer que a vitória da equipa de Deschamps – outro homem para a História do futebol com o seu estatuto de duplo campeão, como jogador e treinador – tenha sido particularmente brilhante ou para recordar, ao nível de outras no passado.
A França ganhou bem sendo eficaz e organizada. Tem um excelente guarda-redes, Lloris, que se permitiu assinar na final talvez o maior erro de um guarda-redes na prova, oferendo o 2-4 a Mandzukic; um defesa-direito, Pavard, que foi das maiores revelações do torneio; bons jogadores em todas as posições e os seus três mosqueteiros: Pogba (apesar de tudo o D’Artagnan desta história), mais Kanté, Griezmann e Mbappé. Até dá para ter um ponta-de-lança discreto (Giroud). Nesta final, Kanté sucumbiu ao cartão amarelo e ao desgaste físico do último mês – por isso foi substituído. A equipa não encanta, como a Bélgica, de De Bruyne e Eden Hazard, mas é colectivamente muito forte e organizada. Uma equipa difícil de vencer.
A Croácia foi demasiado romântica na abordagem ao jogo. Talvez por acreditar demasiado nas suas qualidades, por estes dias tão elogiadas globalmente, a equipa expôs-se a tomar conta do jogo, a competir e talvez a levar à letra as palavras finais da palestra que o treinador, Zlatko Dalic, anunciou publicamente: a de se divertirem. Não terá sido a melhor estratégia, até porque a retaguarda da equipa não é tão fiável como a francesa, como se viu.

Algumas notas sobre o Mundial:
1 – O VAR veio para ficar. É preciso, no entanto, uniformizar decisões, como no caso das faltas no princípio das jogadas de golo. Começou com a cotovelada de Diego Costa a Pepe e na final, na jogada do primeiro golo francês, também existiu uma falta, de Griezmann. No “penalty” de Perisic nada a dizer – foi! O grande erro do Mundial esteve no “penalty” evidente não assinalado contra a Rússia, que talvez tivesse permitido à Espanha um outro fôlego, nunca se sabe. Mas, por muito que alguns saudosistas da paróquia não gostem, o mundo não voltará para trás. E ainda bem. Hoje tudo é escrutinável e só há que acentuar esse caminho, melhorando tudo, sobretudo ao nível dos critérios dos árbitros.
2 – Modric é uma escolha aceitável para melhor jogador da prova. Menos polémica que a entrega do troféu a Messi, há quatro anos, no Brasil. Courtois é mesmo o melhor guarda-redes e Mbappé o melhor jovem – e até podia ter sido escolhido para mais do que isso…
3 – A prova, sempre que se fizerem os resumos históricos, lembrará a aceleração sobre-humana de Mbappé, no jogo com a Argentina; o maravilhoso contra-ataque da Bélgica, na parte final do jogo com a Inglaterra, bem defendido por Pickford; e, não é nacionalismo, a forma como Cristiano Ronaldo foi protagonista, com os seus três golos, no empate de Portugal com a Espanha.
4 – O Brasil tinha grandes argumentos e, na minha opinião, a equipa mais equilibrada. A falta de Casimiro foi muito sentida contra a Bélgica – mas esse era um dos jogos de tripla do Mundial. Nada a dizer, nem de Neymar, apesar das anedotas sobre as suas constantes quedas. A verdade é que é um jogador muito castigado mas isso faz parte de assumir sempre a posse da bola nas zonas mais proibidas.
5 – Finalmente, a Inglaterra apresentou uma equipa à altura. Muito jovem, tem espaço para crescer no panorama internacional nos próximos anos.
6 – O equilíbrio evidente tem a ver com a globalização e o conhecimento dos jogadores uns dos outros. A maior parte conhece-se de perto, frequenta as maiores Ligas da Europa e faz parte, até, das mesmas equipas. Cada vez a competição parecerá ser mais aberta. Mas também continuará a ser definida nos pormenores e a favor das melhores equipas e dos seus grandes jogadores. Ou seja, se virmos bem, não houve tantas mudanças assim. A Bélgica fez de Holanda, a Croácia de Portugal, e no final ganhou uma das equipas do costume."

Viva a França! E viva o Mundial!

"Todas as selecções se juntaram da melhor maneira para dar nova vida ao Mundial, jogando até aos limites do que podiam, sem pensar nos clubes ou poupar as pernas. Fizeram-nos ter imediatamente saudades deste Mundial — e amaldiçoar os quatro anos que faltam para 2022.

Depois da eliminação de Portugal e do Uruguai que nos eliminou criou-se uma distância que nos permitiu gozar o futebol como o jogo maravilhoso que é.
Dizia-se antes do Mundial que o tempo das selecções nacionais estava a passar e que hoje em dia são os grandes clubes que inspiram as atenções internacionais. Dizia-se também que a Rússia iria aproveitar o Mundial para fazer propaganda, qual Hitler com os Jogos Olímpicos de Berlim.
Nem uma nem a outra coisa aconteceram. Muito pelo contrário.
Não houve uma única selecção que não tivesse mostrado um amor louco à camisola. Não houve uma única selecção que não tivesse dado tudo e mais alguma coisa para ganhar. Todas as batalhas foram verdadeiras. Houve muito mais derrotas imerecidas do que vitórias injustas.
Foi por isso natural que pudéssemos partilhar a alegria da França e dos franceses e ao mesmo tempo partilhar a desilusão da fantástica Croácia cujo espírito constante de luta será uma inspiração que durará até ao próximo Mundial.
O Mundial 2018 foi uma grande vitória do Mundial. As selecções foram sempre muito bem acompanhadas pelas respectivas populações. As selecções dos países mais pequenos e menos experientes mostraram que merecem ser levadas a sério pelas selecções dos países grandes e mais experientes que aprenderam esta lição da mais dura maneira: sendo eliminadas.
Todas, isto é, excepto a França. A França nunca se fechou à defesa.
Jogou com o mesmo espírito rebelde e insubmisso que a Croácia. Os franceses respeitaram o adversário. Temeram-no e enfrentaram esse medo com a audácia. E ganharam. À grande.
Todas as selecções se juntaram da melhor maneira para dar nova vida ao Mundial, jogando até aos limites do que podiam, sem pensar nos clubes ou poupar as pernas. Fizeram-nos ter imediatamente saudades deste Mundial — e amaldiçoar os quatro anos que faltam para 2022."

A França tem tudo, mas a Croácia tem Modric

"O Mundial decide-se entre um favorito, a França, e uma selecção que soube esconder as suas principais armas, a Croácia, no Luzhniki, o velho estádio Lenine, um recinto de referência da antiga URSS e agora um orgulho futurista do autoritário regime de Vladmir Putin. O torneio termina sem incidentes, sem a menor notícia sobre violência, com o duro controlo de que tanto gosta o presidente russo e os dirigentes da FIFA. Também termina o futebol, sem outra grande notícia além da explosão de Mbappé como nova figura planetária. Foi um Mundial dominado pelas bolas paradas - 46% dos golos surgiram de cantos, faltas ou penáltis - e pelas duas equipas mais cumpridoras, França e Croácia.
Esta final inédita reitera a hegemonia da Europa desde o Mundial 2002. Desde então ganharam Itália, Espanha e Alemanha. Entre os últimos oito finalistas há apenas uma selecção sul-americana: a Argentina, no Mundial de 2014. A hegemonia europeia é de tal magnitude que não pode ser explicada como uma casualidade. A América do Sul alimenta-nos com estrelas de grande calibre - Messi, Neymar, Luis Suárez, Cavani, etc. -, mas é um futebol devastado pela corrupção, dificuldades económicas, debilidade dos seus campeonatos e pela emigração precoce dos seus futebolistas, os bons, os maus e os regulares. Mais uma vez o futebol europeu aproveita a sua forte estrutura económica e organizativa para manter a vantagem adquirida há alguns anos.
Como acontece frequentemente a cada 20 anos, a França tem uma grande geração de futebolistas. Foi semifinalista em 1958 com os inolvidáveis Kopa e Fontaine, reapareceu como potência no Mundial da Argentina em 1978, carregada por Michel Platini, ganhou um Mundial em 1998, com Zidane como máxima figura, e agora alcança a final com dois jogadores que proclamam a dupla alma do futebol francês: cartesiano e muscular. É uma dialética que funciona às vezes e fracassa em outras. É o país de Platini, Zidane e Griezmaan, jogadores cínicos, astutos e brilhantes. E é também a pátria de todos os Pogbas que povoaram as principais ligas europeias nos últimos 25 anos.
Quando a França escolheu a energia sem controlo, decepcionou. Quando encontrou a dose justa de criatividade e potência, dominou o futebol mundial ou esteve perto de consegui-lo. Zidane encontrou Thuram, Desailly e Vieira. O leve Griezmann sentiu-se finalmente cómodo com Kanté, Matuidi e a versão mais contida de Pogba. É uma seleção poderosa e equilibrada, com dois centrais sensacionais (Varane e Umtiti), dois laterais prometedores (Pavard e Lucas) e a síntese máxima acabada da maior qualidade com a máxima potência: Killian Mbappé, a figura emergente deste Mundial.
A França tem sido imparável quando pratica o seu melhor jogo, mas é uma equipa de fases, de momentos. Sofreu quase sempre pela sua tendência em complicar depois de estar em vantagem. Isso aconteceu frente à Austrália, à Argentina - esteve a ponto de empatar a quatro golos no último minuto - e com a Bélgica. É um défice que nenhum rival conseguiu aproveitar, mas que mostra uma debilidade. No Europeu 2016, na final de Paris, Portugal aproveitou os receios dos franceses. Dois anos depois melhoraram em todos os aspectos, mas ainda transmitem uma estranha sensação de desconfiança e imaturidade.
Se há algo que sobra na Croácia é a maturidade, uma qualidade que tem sido indispensável para atravessar os sucessivos infernos que tem encontrado pelo caminho. Resolveu os três últimos jogos no desempate por grandes penalidades (Dinamarca e Rússia) ou no prolongamento, com a Inglaterra. Isso significa que chega a esta final com 90 minutos, um jogo inteiro, a mais do que a França. A distância física, que geralmente favorece os franceses frente a todos os seus rivais, deveria multiplicar-se contra a cansada Croácia, que tem a seu favor uma vantagem: suportou tanto sofrimento que o metabolizou. Os franceses não. Apenas sofreram, e já se sabe que as finais são geralmente calvários. As três últimas, Alemanha 2006, África do Sul 2010 e Brasil 2014, precisaram de prolongamento.
Se o futebol francês tende a interrogar-se sobre a sua identidade, a Croácia não tem dúvidas. Depende do talento individual e de uma coesão mais emocional do que táctica. Tem a sorte de desfrutar de um líder peculiar, o pequeno e veterano Modric, um prodígio de jogador, possivelmente o melhor médio do mundo desde a retirada de Xavi. A este futebolista de proporções históricas nunca o incluem nas listas dos melhores jogadores do ano, mas do seu tremendo talento e da capacidade da França em anulá-lo dependerá boa parte da final."

Croácia, a glória no meio do caos

"Como é que um país com menos de 30 anos, 4 milhões de habitantes, ainda a lamber as feridas da guerra e com um futebol onde grassa a corrupção e a precariedade das infraestruturas consegue chegar à decisão de um Mundial é algo que até os próprios croatas têm dificuldade em explicar. Esta é a história de uma final improvável - e polémica, no próprio país

Tentem imaginar a importância que tem o futebol para um povo que viu o ponto de ruptura da sua luta pela independência acontecer precisamente num jogo de futebol. Vamos recuar a 13 de maio de 1990. Nesse dia, Dínamo Zagreb e Estrela Vermelha de Belgrado jogavam na capital da então República Socialista da Croácia, para a liga jugoslava, poucas semanas após os independentistas croatas terem vencido as primeiras eleições multipartidárias no território em quase 50 anos. A tensão entre adeptos sérvios e croatas rapidamente se transformou num multitudinário motim. Entre gritos de “Zagreb é Sérvia”, pedras atiradas pelos adeptos do Dínamo, a resposta à facada dos sérvios e o gás pimenta atirado pela polícia, o relvado tornou-se num campo de batalha. Não houve mortos, mas houve feridos. E a partir daquele jogo, a ferida aberta do ódio nunca mais fechou. A Croácia declararia a independência em Junho de 1991, mas a guerra com a Sérvia arrastou-se até 1995.
Boa parte dos 23 jogadores croatas que este domingo, a partir das 16 horas, vão tentar tornar-se campeões mundiais frente à França, nasceram antes ou durante a guerra. Luka Modric, talvez o melhor jogador deste Mundial, o médio que, como tão bem apontou Jorge Valdano, “enche o campo de senso comum”, viu as milícias sérvias matarem-lhe o avô e outros seis familiares. O médio do Real Madrid tornou-se refugiado e passou a infância a viver em hotéis na cidade de Zadar. A família de Dejan Lovren fugiu para a Alemanha, onde o central viveu até aos 10 anos. Foi também na Alemanha que se refugiou a família de Mario Mandzukic, o homem que marcou o golo que derrotou a Inglaterra nas meias-finais e deu a este país com menos de 30 anos e pouco mais de 4 milhões de habitantes uma inédita e, diz-se por Zagreb, miraculosa ida a uma final de um Mundial.
A Croácia poderá tornar-se no 2.º país com menos população a vencer um Mundial, depois do Uruguai em 1930 e 1950. É um pequeno país no leste europeu, ainda a lamber as feridas da guerra. No ranking FIFA, o país balcânico começou o Mundial na 20.ª posição. Por si só, isto tornaria o sucesso da Croácia admirável, mas esta caminhada é ainda mais improvável do que seria de pensar. Não é por estarmos a falar de uma pequena e jovem nação que o feito da Croácia é visto como um milagre: é porque o futebol no país vive mergulhado num verdadeiro caos, onde impera a corrupção, a instabilidade, a falta de infraestruturas modernas e em que várias estrelas da selecção do país não são vistas com bons olhos pelos próprios compatriotas, que se dividem entre os que exultam com as conquistas da selecção e os que não esquecem, nem querem esquecer, aquilo que acreditam ser um sistema que está longe de ser limpo.
O escândalo que divide o país
O sucesso da Croácia não só neste Mundial - esteve em 10 das 12 últimas grandes competições, algo que só tem paralelo neste campeonato do pequenos países com Portugal - parece explicar-se com um misto de talento e improvisação.
Para chegar ao Mundial da Rússia, por exemplo, o caminho foi mais do que tumultuoso. Zlatko Dalic, o actual seleccionador, chegou ao cargo como interino antes do último jogo da fase de qualificação, frente à Ucrânia, depois da federação croata despedir Ante Cacic devido aos maus resultados e ao deteriorar da relação com adeptos e jogadores. Dalic encontrou-se com os jogadores pela primeira vez no aeroporto, antes da equipa embarcar para Kiev. A Croácia venceu por 2-0 e conseguiu um lugar no playoff onde bateria a Grécia.
Sem um plano ou um sistema verdadeiramente coesos a nível federativo, o futebol croata apoia-se essencialmente no trabalho do Dínamo Zagreb, clube da capital, fortemente financiado pela autarquia, para onde convergem os melhores treinadores e jogadores do país - dos 23 convocados da Croácia, 14 foram lá formados. Apesar de ser o maior dominador do futebol croata, estabilidade é palavra não conhecida no estádio Maksimir. Nos últimos 13 anos, o clube despediu 17 treinadores.
E se hoje a Croácia se divide entre aqueles que apoiam a selecção e aqueles que só a querem ver perder, a culpa também é do Dínamo Zagreb. Ou melhor, do homem que liderou o Dínamo de 2003 até 2016, Zdravko Mamic. Alguns dias antes do Mundial, Mamic, que chegou a ser também vice-presidente da federação, foi condenado a seis anos e meio de prisão por fraude relacionada com transferências de jogadores. No total, Mamic, que entretanto fugiu para a Bósnia, apoderou-se de mais de 15 milhões de euros do clube, numa teia de interesses e influências que arrastou, por exemplo, Dejan Lovren e Luka Modric. Ambos estão a ser investigados e Modric irá a tribunal acusado de perjúrio, depois de ter mudado o seu testemunho no julgamento de Mamic.
A defesa de Modric a Mamic caiu muito mal numa parte dos adeptos croatas, que começaram a ver o seu melhor jogador como alguém conivente com o status quo, com a corrupção que grassa no país - o julgamento de Mamic, por exemplo, teve de ser mudado de Zagreb para Osijek devido às estreitas ligações entre o antigo dirigente e a justiça local. Muitos não perdoam o jogador e são esses os mesmos que amanhã, se Modric levantar a taça de campeão mundial, não o vão aplaudir.
“Aqueles que sempre se opuseram ao poder de Mamic nunca irão perdoar aquilo que ele fez ao futebol croata”, começa por nos dizer Juraj Vrdoljak, jornalista croata do canal Telesport, antes de nos dar um exemplo daquilo que é uma sociedade polarizada face à sua equipa nacional: “Minutos depois de nos qualificarmos para a final, recebi uma chamada de um amigo que costumava ser um ávido adepto da selecção. Mas desta vez a mensagem dizia: ‘Não consigo sequer ter raiva. Estou só terrivelmente triste’. Enquanto boa parte de Zagreb festejava, ele foi dormir”.
Um atraso de décadas
Para lá dos escândalos de corrupção, há outro factor que torna esta final croata altamente improvável: o atraso do país face às potências europeias em termos de infraestruturas.
“São, em geral, bastante fracas. Só quatro equipas da liga têm relvados que cumprem os regulamentos da UEFA e o futebol de base é praticamente inexistente”, explica-nos Juraj Vrdoljak. Rúben Lima, lateral do Moreirense que jogou entre 2011 e 2015 na liga croata, onde passou pelos três principais clubes do país (Hajduk Split, D. Zagreb e Rijeka), diz que “em termos de condições o Hajduk e o Dínamo são um bocadinho aquilo que o Sporting e o Benfica eram antes de serem construídos os centros de estágio e os estádios novos. Nessa altura treinava-se nos dois ou três campos que existiam à volta dos estádios antigos e nada mais. Na Croácia ainda é assim”.
E então como se explica que no meio do caos, esta selecção tenha chegado a uma final de um Mundial? É sorte, é genética, é talento? Lima acredita que o facto dos clubes croatas apostarem cedo nos talentos, que rapidamente saltam com sucesso para os grande campeonatos europeus, pode explicar alguma coisa. “São jogadores muito evoluídos tecnicamente”, conta-nos. Já Vrdoljak diz que "as questões genéticas terão um papel importante no sucesso dos atletas croatas”, mas aponta algo mais, que pode estar relacionado com aquilo que boa parte destes jogadores assistiram durante os anos de guerra, violência e privação. “O que leva os jogadores mais longe? A necessidade de vencer apesar de todos os obstáculos que tiveram pelo caminho”. E isso não se ensina nas academias."

Será Aqui Erguido Um Futebol

"Seria um exagero defender que o jogo para determinar o terceiro e quarto lugares se realizou num lugar apropriado, porque não há lugar apropriado para tamanha abominação. Mas São Petersburgo foi, pelo menos, um lugar propício para a Bélgica se despedir do Mundial com um "até breve".
Reza a lenda que a cidade nasceu de um Verbo, de uma instrução proferida com peso bíblico. Numa manhã enevoada de 1703, Pedro I, o Czar de Todas as Rússias, cavalgava pelos pântanos onde as águas do Nevá chegam ao Golfo da Finlândia, à procura de um sítio para acampar. Por fim apeou-se, desembainhou a espada, rasgou uma cruz na turfa e disse: "Será aqui erguida uma cidade". E assim foi. Construída não só em cima de um pântano, mas de um pântano que na altura nem sequer lhe pertencia (as terras eram reclamadas pela Suécia, a meio de uma guerra de 20 anos com a Rússia). Mas Pedro I tinha uma visão e queria uma nova capital. Milhares de servos escavaram fundações com as próprias mãos, transportando terra nas dobras das roupas. Áreas pantanosas foram drenadas; ergueram-se muros para evitar inundações. Arquitectos, pedreiros e engenheiros foram contratados para abrir "uma janela para o Ocidente". Cem mil servos morreram durante os trabalhos. Depois foi preciso povoar a cidade, e Pedro I decretou a mudança de milhares de moscovitas, a quem ordenou que aparassem as barbas, vestissem roupa alemã e se comportassem genericamente de forma mais europeia. E a capital mais imaginária do continente foi-se tornando real.
A renascença do futebol belga não foi um projecto menos delirante; e também começou com alguém a declarar uma utopia em voz alta.
Em Junho de 2000, pouco depois de uma derrota com a Turquia ter feito da Bélgica o primeiro país organizador de um Campeonato da Europa a ser eliminado na fase de grupos, o presidente da Federação belga fez um telefonema ao seu director-técnico, Michel Sablon: "Há algo de profundamente errado com o nosso futebol. Tens de mudar isto e começar do princípio". A reacção de Sablon (segundo reza uma lenda já tão refinada como a de Pedro I no estuário do Nevá) foi pegar numa folha de papel em branco e escrever a seguinte frase: "O futebol belga não presta, é preciso melhorar".
O que Sablon fez foi dedicar os anos seguintes a invalidar essa frase. A tarefa não implicou varrer apenas qualquer porcaria residual na Federação, mas sim deitar ao lixo toda uma maneira de pensar. Começou por passar dois anos a calcorrear o país, assistindo a todas as competições jovens, comparando depois processos, estruturas e resultados com os vizinhos próximos, França e Holanda. Contratou peritos da Universidade de Leuven para analisarem quase duas mil horas de jogos filmados e recolherem dados estatísticos (sobre número total de passes, número de toques na bola por cada jogador, etc.). Uma das conclusões a que chegou - a de que havia um foco excessivo nos resultados e insuficiente no desenvolvimento de atributos individuais - deu início à revolução. O modelo de treino que idealizou para os escalões jovens, e que a Federação obrigou todos os clubes a seguir, encurtou as dimensões dos campos, e eliminou balizas, passes longos e foras-de-jogo das primeiras etapas formativas. Tudo isto vinha de um desejo de replicar as condições do futebol de rua num contexto de laboratório, depurando o processo de aprendizagem até o reduzir aos princípios elementares: a finta, o passe curto, a tabelinha. No fundo, a sua ideia mais original e eficaz terá sido a percepção de que o instinto competitivo a estimular era não o de querer vencer, mas um muito mais próximo do apelo primitivo do jogo, que precede a existência de balizas e a preocupação com o resultado final: o de querer ser melhor que o adversário, e conseguir ludibriá-lo, naquele breve momento em que um tem bola e o outro não.
A selecção da Bélgica hoje não é uma execução directa do projecto de Sablon (que mandatava, entre outras coisas, um sistema obrigatório de 4-3-3 a ser usado em todos os escalões). E muito do sucesso recente é inseparável de uma base de recrutamento estratosfericamente alargada pela emigração, capaz de cozinhar um lote de estrelas com origem no Congo, Mali e Marrocos. Mas aquilo que em 2014 e 2016 ainda parecia uma colecção de efeitos especiais à procura de um guião, conseguiu agora a melhor classificação da sua história, proporcionou dois dos melhores jogos do Mundial (contra Japão e Brasil), e teve em Hazard o jogador mais consistententemente entusiasmante da prova. 
Qualquer "geração de ouro" (tal como São Petersburgo, com a sua a reputação vagamente amaldiçoada de lugar roubado à natureza), vive sempre à sombra do vazio que se arrisca a deixar, quando esgotar o tempo que pediu emprestado ao futuro. Mas no Mundial do Qatar em 2022, De Bruyne, Courtois e Meunier terão 30 anos, Hazard 31, Lukaku 29, Tielemans 25 - fora aqueles cujos nomes ainda nem sequer conhecemos. O futebol belga não prestava e agora presta. Consigam ou não construir algo maior, será sempre interessante observar algo que nasceu numa folha de papel em branco e numa frase indignada."