quinta-feira, 12 de julho de 2018

O golo que nunca o foi

"Esta quarta-feira jogou a Inglaterra de Gordon Banks, guarda-redes campeão do Mundo em 1966 e arquitecto da ‘Defesa do Século’ em 1970.
"Pelé cabeceou, antecipou-se ao golo e ergueu os braços em festejo, Tostão levantou os braços, todo o Brasil elevou os braços, o Cristo Redentor do Rio içou ainda mais os braços, o Mundo alçou os braços e Banks, esse, abriu os braços, voou e disse que não…" Parou no tempo uma defesa para sempre e o mais antecipado golo de futebol não o foi.
No México’70, na fase de grupos, Banks deteve a bola e o golo congelou no tempo a estética e plasticidade da defesa. Gordon foi Flash, com uma luz que pareceu encarnar o herói de movimentos rápidos muito para além da capacidade humana.
O Brasil venceu o jogo e Banks venceu o esquecimento com uma defesa irrepetível repetida vezes sem conta na TV, quase com a esperança de que o quase-golo de Pelé se materializasse na repetição seguinte! Pelé diria que Banks foi o único a defender um golo seu e que, em mais de mil golos, lhe faltou sempre… ‘aquele’.
A Inglaterra seria eliminada nos quartos-de-final pela Alemanha, sem Banks. Normalmente com bom ‘golpe de rins’, ficou ‘fora de jogo’ devido a uma cerveja mexicana de maus fígados que bebeu na véspera! Que sirva de aviso: ‘Se jogar, não beba’!
Com grandes reflexos, Gordon foi debaixo da trave uma trave mestra da segurança inglesa nos dois Mundiais, apenas com uma derrota em nove jogos. Em 1966, sofreu o primeiro golo depois de 442 minutos, desfeiteado de penálti por… Eusébio.
Considerado pela FIFA o ‘Guarda-redes do Ano’ , entre 1966 e 1971, seria, no ano seguinte, o Futebolista do Ano em Inglaterra. Em 1972, um acidente de viação retirou-lhe a visão do olho direito. Ainda assim, mais tarde, foi contratado pelos Fort Lauderdale Strikers (EUA) e, olhando o jogo até onde a vista alcançava, tornou-se o melhor do campeonato.
A confiança que dava aos súbditos de Sua Majestade era tal, que os ingleses, tão seguros do seu Banco de Inglaterra, adaptaram o dito a Gordon: "Safe as the Banks of England".
Contra a Croácia a segurança ruiu. A prova que os ‘Banks’ de Inglaterra já não são o que eram!"

Rosa Mota: Doutor 'Honoris Causa'

"Não vou aqui folhear o currículo desportivo, verdadeiramente espantoso, da Rosa Mota. É nome (e dos maiores) da História do Atletismo (em Portugal e no mundo todo). E, se “o Desporto é o fenómeno cultural de maior magia no mundo contemporâneo”, bem é que a Universidade reconheça e saúde, nos atletas de indiscutível excelência, o seu vigor físico e espiritual e mental. O Desporto não é apenas um exercício físico. É, sobre o mais, uma escola de vida. Os desempenhos de um campeão, as suas espantosas “performances”, têm tanto de “bios” como de “logos”, ou de razão como de fé, ou de inteligência como de emoção, ou de ciência como de ética – porque, neles, está o homem todo! No último Conselho Nacional do Desporto (CND), um jovem conselheiro, aprumando-se, soberbo, no seu arcaboiço de hércules, segredou-me ao ouvido: “A Faculdade do Desporto da Universidade do Porto decidiu conceder à Rosa Mota o grau de doutor honoris causa”. Respondi-lhe com um ar decidido e calmo: “Só há que aplaudir esta Faculdade do Desporto e realçar a cultura actualizada que manifesta”. Dada a minha confessa admiração por tudo o que merece ser admirado, não resisti a confirmar a notícia junto da Rosa Mota, que é conselheira também do CND: “Sempre é verdade que, dentro em breve, será doutorada honoris causa, pela Universidade do Porto?”. Com a beleza de um sorriso profundo e sincero, respondeu-me: “Assim é, de facto”. E sublinhou: “Embora algumas pessoas, que se julgam cultas, o não quisessem”. Disse-lhe, então: “Pois não tenha dúvidas que este doutoramento honra tanto a Rosa Mota como a Universidade do Porto. É uma decisão pura, linear e difícil como todas as decisões autenticamente grandes? Mas é um ato criador de cultura. E, se a Universidade não cria cultura, não tem uma ideia, um ideal, um sistema de valores do Ser Humano, da Vida, da Sociedade e da História – para que serve a Universidade?
Murmurejavam conversas. A Rosa Mota, sempre com animosa juventude, foi cumprimentar outros conselheiros. Fiquei só. O Michel Serres, em conversa com Bruno Latour, refere que é na solidão que se inventam os conceitos que anunciam o progresso (cfr. Éclaircissements, ed. portuguesa do Instituto Piaget, Lisboa, 1996). O que é o ser humano? Sem voz seca ou imperativa (porque não esqueço nunca os meus limites) assim o defino: é uma natureza que se faz cultura. Por isso, corpo e espírito formam um todo só. E, assim como Descartes não descobria outra coisa no corpo senão matéria, eu (e, antes de mm, tantos mais)) vejo no corpo uma complexidade em busca intencional da transcendência, como a motricidade o manifesta. O que eu sou não se resume a matéria ou ao espírito, mas a uma existência corporeamente vivida, num corpo donde emerge a minha vontade imparável de “ser mais”. Portanto, o ser humano é corpo para poder ser espírito e, ao ser espírito, para poder concluir que está no Absoluto a sua mais autêntica realização. O corpo é a “imagem espacial” da minha vontade e necessidade de Absoluto. No desporto, não há dúvidas a este respeito: o “esquema postural” não é biologia tão-só. Sempre fiel ao seu sestro de movimento, inquietação e aventura, o ser humano deixa, na sua “imagem corporal” o seu entranhado afecto pelo sentido da sua vida: a transcendência! O Papa Francisco, em breve apontamento pessoal diz-nos que o Desporto se distingue, por ser, simultaneamente: “lugar de encontro, em que pessoas de todos os níveis e condições sociais se unem, para alcançar um objectivo comum”. E ainda veículo de formação e meio de missão e santificação (Mensagem ao Cardial Kevin J. Farrell, que antecede o documento, também da autoria do Papa, Dar o Melhor de Si). Acode-me à memória o ditado castelhano: “en la mesa y el juego se conoce al Caballero”…
No valiosíssimo legado de Eduardo Lourenço, encontro a seguinte definição de cultura: “A cultura somos nós próprios, a cultura é o homem em si mesmo, a cultura é a consciência que nós temos, cada um de nós tem, do mundo que o rodeia, é a maneira como, digamos, guardamos dele sinais que podem ser transmitidos de seguida a outras gerações. E cultura é nós mesmos como sujeitos, como expressão da vida consciente de si próprio que é o Homem” (in AA.VV., Portugal – o Futuro é Possível, 2016, p. 17). Miguel Real, meu Amigo e meu Mestre, adianta que “o intervalo civilizacional que Portugal está a viver neste princípio do século XXI parece possuir três vertentes culturais do cruzamento dos quais se tecerá o seu futuro: 1. O aprofundamento da integração europeia, a todos os níveis. 2. O aprofundamento da integração lusófona, a todos os níveis. 3. O aprofundamento da integração na globalização informática, promovida pelas ciências da informação e comunicação” (Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa, Planeta, Lisboa, 2017, p. 57). Assim, se a cultura somos nós e a ideia de que nós fazemos e deixaremos, melhor ou pior, como legado, a outras gerações, uma Faculdade de Desporto deverá assinalar, sem receio e em termos hodiernos, a filosofia (ou, se quisermos, a mentalidade) que a norteia, a ciência que desenvolve e trabalha e o seu lugar insubstituível na cultura portuguesa. Por vários motivos, nunca esquecerei o Rubem Alves, professor e pensador brasileiro, meu colega na Unicamp (Brasil). Dizia ele e repetia: “a tarefa da filosofia é, principalmente, uma luta contra todos os absolutos que se aninham no interior dos discursos e das práticas”. E eu acrescentava: “os absolutos do dualismo antropológico racionalista, reflexo do dualismo senhor-servo, homem-mulher, rico-pobre; os absolutos do positivismo, onde se estudam os factos e se desprezam os valores, onde conhecer é matematizar, quantificar e não é compreender, é uniformizar, não é libertar”…
E, após este longo exórdio, permitam-me a interrogação: se se concedem doutoramentos “honoris causa” a quem sabe teorizar o Desporto, como se explicam as reticências diante dos doutoramentos de quem exemplarmente o pratica? O saber mostra-se, principalmente, na teoria, ou na prática? Só atletas, como a Rosa Mota, podem inaugurar horizontes inéditos de cientificidade, mais através do “vivido” do que do “pensado”. Eu sei que, nas “ciências do desporto”, muitos especialistas continuam em cega obediência aos modelos verificacionistas e quantitativistas. Mas o ser humano resume-se à quantidade? Não há nele também o mundo fascinante da qualidade? Rosa Maria Correia dos Santos Mota (mais conhecida por Rosa Mota), com 60 anos de idade; reconhecida, sem votos contra, como a maior maratonista de todos os tempos; campeã europeia, mundial e olímpica – não terá muito que ensinar, a este propósito, à elite doutoral de uma universidade? Sou doutor e professor agregado e muito aprendi, como seu adjunto, com um treinador de futebol cujas habilitações literárias pouco excedem a Instrução Primária. Num arranque assombroso de energia e determinação, ele via e antevia jogadas que eu não sabia explicar e, muito menos, adivinhar. A sua “leitura do jogo” imobilizava-me e extasiava-me. Na suavidade vesperal dos treinos, muito aprendi, nas minhas intermináveis conversas, com o Jorge Jesus. E reforcei a ideia que tenho, há bem mais de 40 anos: só como ciência hermenêutico-humana o Desporto deve investigar-se e estudar-se. Termino, com um abraço fraterno de parabéns à Rosa Mota e a minha sincera admiração, pela ciência e cultura, que distinguem a Faculdade de Desporto da Universidade do Porto que, ao honrar a Rosa Mota, honra-se a si mesma, pois honra nela a sua primeira razão de ser: criar cultura, disseminar cultura, ser cultura."

Desmentido

"A Sport Lisboa e Benfica - Futebol SAD esclarece que não têm qualquer fundamento e são falsas as diversas notícias que dão conta do eventual interesse do Benfica no internacional Uruguaio Guillerme Varela.
Não foi feita qualquer abordagem nesse sentido e nem o Sport Lisboa e Benfica está interessado nessa contratação."

Não ter um plano também é um plano

"Era apenas futebol naquele estado de quase ebulição em que qualquer desfecho é verosímil, em que tudo o que resta é improviso, esperteza e fome de glória.

Chamada do futebol: “Estou? É só para dizer que ainda não vou para casa.” E, no entanto, esteve quase a regressar, qual filho pródigo, com uma data de presumíveis pais de braços abertos para o acolherem. O início foi perfeito. Quando a temporada começou, perguntaram a José Mourinho quais eram os candidatos a ganhar a Premier League. O treinador português incluiu o Tottenham, desvalorizando a venda de Kyle Walker ao Manchester City porque, promovendo Kieran Trippier à titularidade, a equipa de Londres até era capaz de ficar a ganhar. Trippier foi um dos melhores da Inglaterra neste Mundial. Um secundário cuja solidez reiterada o elevou a protagonista, num desempenho-padrão da selecção inglesa, seguido por Pickford, Maguire, Stones, Henderson, todos com cara de figurantes do Dunkirk. Hoje foi a vez de Trippier rasgar a cortina do anonimato com um golo que resultou do único remate da Inglaterra à baliza em todo o jogo.
Ao minuto cinco, ninguém diria. Os croatas entraram nervosos, como se estivessem a jogar uma meia-final de um campeonato do mundo. Os ingleses entraram confiantes, como se estivessem a jogar uma meia-final do campeonato do mundo. Nos jogos a eliminar, a Inglaterra nunca esteve em desvantagem e nem o golo de colombiano Yerry Mina no último suspiro foi suficiente para abalar os alicerces do edifício do engenheiro Southgate. O golo precoce enervou ainda mais os croatas e tranquilizou ainda mais os ingleses. Tudo corria de acordo com o plano.
Já os croatas, segundo um artigo publicado no Guardian, nem sequer tinham um plano. Na opinião do articulista, chegar às meias-finais do Mundial com um campeonato interno assolado por escândalos, a ausência de planificação do futebol jovem e infra-estruturas deficientes, deve fazer-nos considerar a hipótese de a selecção croata prosperar no caos e definhar na organização. É uma hipótese curiosa, sem dúvida, mas quando não existe um plano as rotinas podem disfarçar. Por isso, pela terceira vez consecutiva em três jogos, a Croácia viu-se em desvantagem, embora os jogadores não tivessem percebido de imediato o que tinham de fazer para dar a volta. Olhavam para o banco, viam o rosto atónito de Dalic (insisto na minha teoria da competência fisionómica) e ficavam ainda mais desorientados. Aos quarenta minutos de jogo, Rebic sofreu uma falta que o árbitro não assinalou e correu uns vinte metros para tirar desforço do adversário. Vrsaljko expediu um remate num envelope com remetente inequívoco: desespero. Lovren, de olhar homicida, ia a cada bola como se a bola não existisse. Modric procurava impor alguma racionalidade, sem grande sucesso. Os secundários croatas comportavam-se como secundários croatas. O adepto começava a suspeitar que a Croácia tinha atravessado o Mundial a viver dos rendimentos de um 3-0 aplicado à Argentina e dos juros fixos da dupla Modric-Rakitic.
A Inglaterra estava perfeitamente à vontade a fazer à Croácia aquilo que a França tinha feito à Bélgica. Quando se tem confiança, dá para tudo. E a verdade é que esta Inglaterra demonstrou sempre ter mais personalidade do que futebol. Ao longo destas semanas, os jogadores ingleses realçaram a importância do trabalho de fundo com a psicóloga Pippa Grange e isso gerou frutos (já os croatas jogavam como se ninguém os tivesse avisado da existência de um ramo do conhecimento chamado Psicologia). Bons, como se viu sobretudo nos penáltis contra a Colômbia; e maus, com os jovens ingleses a convencerem-se de que eram mestres do chamado jogo “especulativo” ou, para estar dentro do espírito do tempo, do jogo à francesa. Numa imitação quase perfeita de uma caricatura dos gauleses, vestiram o fatinho de pintor, puseram um bigodinho ridículo e esperaram que os croatas, como os belgas na véspera, chocassem contra o muro.
Acontece que, obrigados a falar francês, foram denunciados pelo sotaque. Kyle Walker, o tal que abriu caminho para a afirmação de Trippier, foi batido por Perisic. A Croácia, que até aí parecia uma equipa a pagar a factura de dois prolongamentos, ficou leve e começou a carregar. A Inglaterra, até aí com a tranquilidade de quem está em piloto automático, sobressaltou-se como se se tivesse apercebido de que já só tinha um motor. Com o golo de Trippier, a Inglaterra tinha-se retirado do jogo, com a ideia de o controlar à distância, sem sujar as mãos. O golo de Perisic obrigou-a a regressar, mas com o pânico indisfarçável de quem vê o plano a sair furado. No prolongamento, Kyle Walker, outra vez ele, teve um daqueles deslizes fatais a que a Inglaterra de Southgate se julgava imune. Mandzukic não perdoou. Verdade seja dita que, nessa altura, já não havia planos, nem psicologia. Era apenas futebol naquele estado de quase ebulição em que qualquer desfecho é verosímil, em que tudo o que resta é improviso, esperteza e fome de glória. E, num jogo com essas características, os trunfos estavam na mão da Croácia."

Pontapés certeiros na empanturrada imagem do mundo

"O futebol pode ser poesia. Ou prosa.

Moscovo - O futebol pode ser poesia. Ou prosa. Não devia era ser nunca reduzido à aritmética. Ou aos números de telefone.
4.4.24.3.35.3.2? Como antigamente dizia um anúncio televisivo: “Me liga vai!” (Liguem e verão se alguém vos atente. O futebol não, com certeza.)
Quando Torga escreveu -
“joga a bola menino
Dá pontapés certeiros
Na empanturrada imagem deste mundo
Traça no firmamento/Órbitras arbitrárias
Nas quais os astros fingidos
Percam a majestade” - é a poesia que sai ao encontro da bola ou a bola que sobe ao topo da poesia?
Eu pergunto, mas não sei responder...
Claro que consigo ouvir, ao longe, lá no fundo da sala, aquela desconfiança traduzida em mugido sarcástico:
“Huummm...”
Mas que huummm? Li tantas páginas de tantos poetas sobre futebol, tantas!
Carlos Drummond de Andrade, por exemplo:
“Futebol se joga no estádio?
Futebol se joga na praia
futebol se joga na rua
futebol se joga na alma”.
E a voz, teimando: “Não vale, é brasileiro”.
Puxo do Vinicius:
“A um passe de Didi, Garrincha avança
Colado o couro aos pés, o olhar atento
Dribla um, dribla dois, depois descansa
Como a medir o lance do momento”.
A voz, outra vez: “Brasileiro! Não vale! Tudo quanto é sul americano mete bola na escrita”.
Teimo com Fernando Pessoa. Ele gostava de futebol.
Certa vez decidiu fazer-se passar por médico de si mesmo e estabeleceu correspondência com um antigo professor que o ensinara, em Durban, na África do Sul da sua adolescência. O mestre respondeu-lhe, via falso médico: “Nunca se dedicou a nenhum desporto. Era demasiado solitário. Mas passava horas entretido a ver os colegas disputando jogos de futebol, embora sem participar”
Tanto assim que viria a ser ele a inventar os matraquilhos, embora nunca tivesse patenteado a invenção e ela acabasse por ir parar às mãos de um catalão.
A voz: “Ora, ora, Pessoa era um contemplativo. Olhava para os colegas a jogar e nem os via, via rebanhos como Caeiro...”
O meu querido amigo Manuel Alegre:
“Buscava o golo mais que golo -
só palavra
Abstracção
ponto no espaço
teorema
Despido do supérfluo rematava
E então não era golo -
era poema”.
Ninguém faz calar a irritante vozinha: “Ora, o Manel é da Académica e do Benfica, até teve um tio que foi fundador do Beira-Mar e do Belenenses, huummm...”
Muito bem. E então o Botto? Sim, o António Botto? Queres ver que também não vale, o António Botto, hein? Francamente! Não é por nada, mas o Botto...
“A bola, rápida, cai
Passando
Por entre os braços erguidos
Do garboso jogador.
Palmas, delírio - grandeza!
Alguém atira uma rosa
Para os ‘onze’ vencedores...
E ao longe o sol agoniza 
Numa boêmia de cores”.
Acho que deixei de ouvir, mesmo que muito lá no fundo, a vozinha que se nega ao futebol na poesia. 
“Futebol se joga na alma!”
O futebol está na alma. Depois, parte-se dele para tudo o mais desde que não seja a irritante matemática.
A poesia está por todo o lado. Já vi tanta poesia em campos de futebol, com métrica e sem métrica, com rima e sem rima. Mesmo neste Mundial russo que quis afastar os Monarcas dos Campeonatos do Mundo o mais depressa que pôde.
“Em lugar nenhum do mundo se dá tanta importância à poesia”, dizia Osip Mandelstam. “Somente na Rússia se fuzila por causa de um verso”.
Fizilaram Nikolai Gumilev, o poeta da Salvação dos Lobos, marido de Akhmatova, nas ruas de Petrogrado, já não Sampetesburgo, ainda não Sampetesburgo. E o povo murmurou pelas esquinas: “Ousaram mesmo fazer isso??? Massacraram a poesia???”
Massacraram a poesia. Se os deixam, massacram tudo.
E também nos massacram o futebol tirando-lhe a poesia que lhe dá vida..."

Sempre o melhor de sempre – parte IV

"À 4ª semana consecutiva a escrever sobre futebol ando longe de esmorecer. O tema não só está vivo como, até ver, também se encontra de boa saúde; livre de perigo, pelo menos. É claro que há um óptimo Campeonato do Mundo a decorrer (o melhor de sempre, por sinal), e obviamente também ninguém ignora a ida do Ronaldo para a Juventus (após 451 golos madridistas), mas o meu júbilo futebolístico de hoje pouco tem que ver com o Desporto Rei. Junto-me à notícia mais óbvia e mais global, porque esta alegria tem de ser óbvia e global: 13 a zero foi o resultado da última jornada na gruta de Tham Luang Nang Non. 13 a zero favorável a mais que uma equipa - à que se salvou e à que foi lá salvar. 13 a zero, uma derrota pesada para a morte (que até esteve a vencer na primeira mão, e claramente jogava em casa).

Anda toda a gente a puxar para si o episódio tailandês e eu não tenho qualquer pejo em fazer o mesmo. Por estes lados a alegria é genuína, assim como o tinha sido antes a inquietação; nesse sentido, nem sequer critico esta vaga de resoluções imediatas, como da Liga Portuguesa ou do Benfica, em convidar os jovens resgatados para virem cá conhecer o nosso futebol. Chamem-lhe demagogia, chamem-lhe folclore, chamem o que quiser - eu alinho e aplaudo e festejo. Se a alegria não nos expuser um bocadinho ao ridículo não é alegria de muitos quilates. Mas, calma, há limites e há abutres; decreto falta de paciência para o sensacionalismo cangalheiro da Judite de Sousa. A jornalista da TVI até me ajuda na analogia futebolística, uma vez que se apoderou do lado mais exasperante do Nuno Luz (jornalista melga da selecção portuguesa). Da janela do hospital tailandês, não havia quem lhe atirasse um saco de mijo?
Abandonamos a gruta asiática e recuamos até ao Mundial asiático. Há 16 anos, o Campeonato do Mundo estreou-se fora da Europa e das Américas e foi também a primeira vez que se organizou em 2 países. Falo obviamente do “Coreia-Japão 2002” que, embora tenha sido a melhor Copa de sempre, foi outra competição de péssima memória para os portugueses. A nossa selecção partiu cheia de expectativas, tanto pelo Europeu brilhante que fizera 2 anos antes, como pela aparente acessibilidade do grupo onde tinha calhado. Mas Portugal foi multiplamente humilhado: humilhado pela selecção dum país quem nem se digna a chamar football ao futebol; perdemos 3-2 com os Estados Unidos (aos 36’ os americanos já lideravam por 3 bolas a zero). Humilhados pela Polónia, que se deixou golear, dando-nos a sensação que o jogo seguinte seriam favas contadas. Humilhados pela Coreia do Sul, com quem nos bastava um empate, mas concedemos o 1-0 de onde nunca se esquecerá ainda a humilhante agressão de João Vieira Pinto ao árbitro da partida. Céus, até o cabelo loiro do Petit nos humilhou – e eu sou fã do Petit, por isso é com amizade que lhe digo que aquela cara não foi feita para sustentar grandes veleidades cromático-capilares.
Agora que já tirámos Portugal do caminho, fica muito mais fácil recordar porque é que o Mundial da Coreia-Japão foi o melhor de sempre. Para além das novidades geográficas, este torneio foi rico em dados e estatísticas que se inscrevem na história dos campeonatos do mundo. Saliento que teve a pior prestação duma selecção campeã em título (a França fez apenas um ponto, o que serviu como mesquinho prémio de consolação para nós, há 2 anos sedentos de vingança dos gauleses). Teve, por outro lado, a melhor prestação da selecção que se sagrou campeã: um Brasil 100% vitorioso.
Este Mundial de 2002 foi profícuo em enredos e óptimo a tirar jogadores do anonimato global. Tornou-se palco de surpresas e de jogos intensos - o mais emocionante de todos talvez o Coreia X Itália. Essa partida foi inesquecível pelo dramatismo, e inesquecível também (os italianos que o digam) pela arbitragem vergonhosa. Mas se há manchas perpétuas nas bandeiras brancas deste campeonato, também há memórias insuperáveis vindas das bancadas. Os adeptos nipo-coreanos tornaram-se a bitola no que concerne a organização e entusiasmo. Nos estádios, a euforia andou distante do caos, a excitação andou longe do tumulto, a agitação andou perto da civilidade: tudo raro. Foi, por isso, um público merecedor do maior marco deste Mundial: a primeira final entre Brasil e Alemanha, duas selecções que são também os dois paradigmas em que se divide o bom futebol.
Se outros argumentos faltassem, diria que o Campeonato do Mundo de 2002 foi tão claramente o melhor de sempre que nem Scolari conseguiu estragar a equipa que treinava. Digamos que a tarefa da inépcia do Sargentão não era fácil – tinha de conseguir falhar o “penta” ao comando a selecção dos “3 Rs”, o tridente ofensivo composto por Ronaldinho Gaúcho, Rivaldo e Ronaldo “Fenómeno”. Com essa fórmula, e com outros grandes nome no plantel, a pobreza técnica do seleccionador brasileiro não foi suficiente para ajudar o adversário. A Alemanha do enorme Oliver Kahn, ou do inspirado Michael Ballack, nada pode contra esta canarinha. Seriam necessários mais 12 anos para que, finalmente, Scolari liderasse a selecção germânica numa vitória retumbante contra o Brasil.
Não vou dizer que “sou nostálgico” porque isso parece designar um estado pleno de romantismo. Digo antes que “sofro de nostalgia”, e assim aludo à verdadeira raiz patológica do meu problema. O sintoma claro está na memória que funciona ao contrário: é cristalina no passado e vai-se turvando com a proximidade do presente. Lembro-me melhor dum espirro em 1986 que duma pneumonia anteontem. Por tudo isto, e porque as edições do Mundial que ainda tenho de cobrir são cada vez mais recentes, na próxima semana vou escrever de forma condensada e esquecida. Quando voltar, até já terá terminado o Campeonato do Mundo de 2018. Será tão recente que temo não me lembrar. 
(conclui na próxima semana)"

Os convertidos

"Estou à vontade neste assunto, porque sempre defendi que o Sporting era uma realidade suficientemente grande e aglutinadora para albergar modos diferentes de o viver. Sempre fui frontalmente contra o divisionismo, o fracionamento, a separação entre os finos e os humildes, entre o croquete e a sandes de courato, os pró-visconde e os seus detractores, a bancada e o peão. 
Costumava mesmo ironizar, defendendo que, se Lenine fosse vivo, escolheria o Sporting para ilustrar a excelência do grande soviete, onde as pessoas não se diferenciam, porque unidas pelo mesmo ideal. O que mais critiquei a Bruno de Carvalho foi justamente a sua visão sectarista do clube, fomentando o antagonismo, a intolerância e, nalguns casos, mesmo a perseguição e deixando um lamentável rasto de feridas abertas.
Dito isto, há algumas evidências que cabe sublinhar. Tenho mais respeito por aqueles que se mantiveram com Bruno de Carvalho até ao fim, do que pelos que o abandonaram, depois do jogo em Madrid, quando se tornou previsível o inevitável colapso.
Por uma razão óbvia: mal ou bem, estes últimos foram solidários ou permissivos com a política de usurpação concentracionária de poderes e sobretudo da cultura de preconceito radical que foi sendo implementada. Não os vi, quando ocorreram expulsões arbitrárias.
Não os vi, quando foi a estigmatização humilhante de numerosos sportinguistas, com a rábula dos sportingados. Não os vi, quando foi a desprestigiante assembleia geral de 17 de Fevereiro de 2018, com o inolvidável discurso madurista do não leiam, não liguem, não acreditem.
Nunca os vi insurgir-se.
Não que, por essas razões, sejam menos sportinguistas do que eu. Fizeram as suas opções e quem sou eu para não as respeitar.
Custa-me, contudo, levá-los a sério, quando agora falam em unir o Sporting. Nem sequer é uma questão de coerência. Acho que, acima de tudo, lhes falta autoridade moral."