segunda-feira, 9 de julho de 2018
Gareth e os perigos do populismo
"Aconteceu o que mais se temia - a Inglaterra de Gareth chegou às meias-finais de um Mundial pela primeira vez desde 1990. Embora muitos leigos tenham reagido com compreensível consternação a estes desenvolvimentos, nenhum observador atento do fenómeno futebolístico ficou verdadeiramente surpreendido: os sinais de alerta estavam lá desde o início.
Mas cada um à sua maneira, todos somos culpados, pois todos fomos ignorando, alguns por complacência, outros por ignorância, os indicadores de que o Campeonato do Mundo estava perante uma ameaça existencial. Alguns podem ainda sentir-se tentados a encarar tudo isto como uma anomalia histórica, um mero desvio probabilístico, uma versão atenuada do Teorema do Macaco Infinito (se quinhentos macacos escreverem à máquina durante quinhentos anos acabarão por produzir as obras completas de Harry Maguire). Mas é hoje inegável que estamos à beira do abismo, e a pergunta que se impõe é: como foi possível chegarmos aqui, ao ponto onde um óbvio demagogo como Gareth conseguiu capturar uma instituição centenária tão importante?
Tal como o Brexit ou a eleição de Trump, o Garethismo é um sintoma de uma doença mais profunda. Mas não surgiu num vácuo. É resultado de um falhanço sistémico: um processo gradual de erosão de confiança, em que o futebol deixou de se sentir representado pelas instituições humanas, passando a existir num estado permanente de alienação das normas impostas por uma elite remota e politicamente correcta. É aí que se abre o espaço para demagogos como Gareth. Algumas conceptualizações políticas e sociológicas do populismo fornecem pistas e elementos de convergência que permitem filiar o Gareth numa linhagem muito específica:
- as sementes do Garethismo germinam com maior facilidade em alturas de crise do mainstream futebolístico, quandos os líderes tradicionais perdem credibilidade junto da bola de futebol, como agora aconteceu à Alemanha, Espanha, Argentina, etc;
- o Gareth pode então assumir-se como porta-voz de um colectivo historicamente injustiçado, e prometer uma ruptura com o status quo, e com as elites privilegiadas que têm ganho os Mundiais mais recentes;
- o Garethismo define-se como uma identidade de exclusão, insistindo num estilo de jogo com características especiais, "diferentes", com a consequente demonização tácita do "Outro", que anda ali a passar estrangeiramente a bola a si próprio. Este tribalismo primário acaba por legitimar um futebol discriminatório, que contribui para a desumanização do "Outro", impedindo-o de marcar presença, por exemplo, nas meias-finais (como aconteceu a Suécia e Colômbia, mas também a Portugal, e tantas outras vítimas indirectas desta barbárie);
- o Garethismo é obcecado com a necessidade de vingar a tribo pelas humilhações e desrespeitos passados, nomeadamente as constantes eliminações nos desempates por grandes penalidades;
- o Gareth assenta a sua propaganda futebolística em processos de comunicação rudimentares - mensagens claras e directas, que sejam facilmente perceptíveis pela bola de futebol e apelem a uma nostalgia por um passado mais simples, um apelo tremendamente eficaz após uma década inteira em que a bola foi governada pelos caprichos ideológicos de uma intelligentsia sofisticada (Xavi, Iniesta, Kroos, Özil, etc).
O Campeonato do Mundo está mais bem preparado que outras instituições liberais para lidar com os conflitos inevitáveis que surgem em contextos de adversidade. Mas também contém as sementes da sua própria destruição. A rigidez das próprias leis do jogo - a insistência, só para dar um exemplo, na regra que obriga a equipa que marca mais golos a ser considerada "vencedora" - torna-o vulnerável a aproveitamentos cínicos. A vantagem de um populista demagogo como Gareth é que compete formalmente dentro das restrições do processo futebolístico normal, e no entanto as suas acções transmitem um desprezo evidente pelos princípios básicos do mesmo (mostrar competência e imaginação com a bola no pé, não marcar 80% dos seus golos em lances de bola parada, etc.), bem como por normas de conduta estabelecidas - como a expectativa democrática de que a Inglaterra falharia sempre os seus penáltis nos momentos decisivos.
Quando a janela de Overton é escancarada desta maneira (à biqueirada) e estas abominações incluídas na esfera do que é aceitável, então todos os limites são cancelados e as regras normais deixam de ser aplicadas. Para já, o Gareth chegou às meias-finais. Quem sabe o que pode acontecer a seguir? Edmund Burke escreveu, com imensa razão, que tudo o que é necessário para o Mal triunfar é que os homens de bem fiquem quietos. Que não seja o caso de Modric, Rakitic, Rebic, e dos outros (poucos) homens de bem que ainda nos restam."
Perder para viver; ganhar para não morrer
"A caminho das meias-finais e após a saída prematura de vários campeões do Mundo, recuperamos Luis Monti, campeão em 1934 pela Itália, a única selecção titulada que não veio à Rússia.
Nascido na Argentina, a primeira experiência Mundial de Monti teve início em 1930, no Uruguai, marcando o primeiro golo… argentino. Seria vice-campeão, derrotado pelos anfitriões.
Em 1930, os adeptos uruguaios tudo fizeram para condicionar os argentinos. Monti foi o mais visado e, antes da final, recebeu ameaças de morte. Jogador robusto, o trinco ‘desapareceu’ na final, pedindo aos companheiros que o deixassem ‘fora de jogo’.
Criticado pela exibição, questionou mais tarde: "queriam que fosse herói do futebol?". Com direito a um verso no tango "Patadura" de Carlos Gardel, ‘el corazón de Monti’ sobressaltou-se e perdeu… para viver!
Em resultado do julgamento público, tomou a decisão de partir para Itália, para jogar na Juventus. Em 1932, chegou à selecção ‘azzurra’ como ‘oriundi’, lei que permitia convocar jogadores com ascendência italiana para fortalecer a selecção.
Monti foi totalista no Mundial de 1934 e tornou-se o único jogador presente em duas finais Mundiais por países diferentes. Pela segunda vez, o agora italiano Monti jogaria pela vida.
Ávido de usar o Mundial para propagandear o fascismo, o governo de ‘Il Duce’ colocou enorme pressão sobre os jogadores. O grande investimento na selecção e em infraestruturas ‘exigia’ a consagração ‘azzurra’ no Estádio do Partido Nacional Fascista.
Monti ficou perturbado
com a coação e, por vezes, jogou com maldade e ganhou a alcunha ‘El Terrible Monti’. Nos quartos-de-final
contra a Espanha, Orsi, também ítalo-argentino, deu os (maus) créditos da passagem a Monti, por ter ‘apertado’ todos os espanhóis, até o seleccionador.
O mesmo Orsi, ao recordar o seu golo na vitória final sobre a Checoslováquia, relatou as palavras que Monti lhe dirigiu: "salvaste a nossa vida!" Com o lema ‘vencer ou morrer’ de Mussolini, talvez só a vitória permita a dúvida: onde acaba a divisa e começa a realidade?
Sem a dúvida metódica de Descartes, Monti… resolveu ganhar!"
O cabelo do Jairzinho e o rabo da Jodie Foster
"Sochi – Sobre Sochi, o céu da manhã estala de sol e eu fico olhando pela vidraça os grupos de russos e croatas que se vão juntando em redor de copos de cerveja para, daqui a pouco, tomarem o caminho do estádio em procissão tão religiosa como todas as procissões. Faço tempo para segui--los, desta vez atrás de uma Rússia que, de um momento para o outro deste Mundial, deixou que a sua alma se tornasse desmesurada como as estepes. E, subitânea, a despropósito, surge-me uma memória já muito antiga do rabo da Jodie Foster. Não, não é brincadeira; não, não é malicioso. Somos mais ou menos da mesma idade, eu e ela, e isto foi em 1974, éramos miúdos e não foi ao vivo, mas foi a cores.
Em 1974, quando coleccionava cromos do Mundial da Alemanha Ocidental, já sem Pelé no Brasil, mas ainda com Rivelino e Jairzinho, e aqueles mais difíceis como o Peter Lorimer, da Escócia, o Lato, da Polónia, ou o Sparwasser, da RDA (para compensar cheguei a ter sete Riveras, da Itália), eu vivia em Benavente e resolvemos formar uma equipa de futebol a sério, com números nas costas e tudo, números de pano vermelhos cosidos com desvelo de mãe nas camisolas brancas de ginástica aplicada. Cada um escolhia um número e um nome, eu era o Jairzinho, sempre quis ser o Jairzinho desde as memórias puídas de 1970, ninguém tinha o atrevimento de querer ser Pelé. E quis o 11, por uma contradição interna qualquer, um sentido primordial de lado esquerdo da vida, o 11 até era mais caro, havia que comprar dois algarismos, tal como o 10 que foi do Rechena, só podia ser do Rechena-das-Fintas, o melhor jogador de todos os meus tempos, talvez quase igual ao Pelé.
Em 1974, o verão era tão comprido como nunca mais voltou a ser.
Eu jogava na direita com o meu número esquerdo e imaginava que a menina do anúncio do Coppertone estava ali, fascinada com o meu jeito de Jairzinho sem cabelo de bola; vivia apaixonado pela menina com o cãozinho preto puxando-lhe o fato de banho, um bocadinho do rabo a ver-se-lhe branco na pele torrada, o seu ar espantado, as sardas nas bochechas. Ah!, como eu era intensamente sensível a sardas nas bochechas.
Muitos, muitos anos depois, conheci o Jairzinho e não fui capaz de lhe dizer que também tinha sido o Jairzinho com um 11 nas costas no lugar do 7. Acanhei-me.
Muitos, muitos anos depois, fiquei a saber que a menina do anúncio da Coppertone era a Jodie Foster antes de ser Jodie Foster e de toda a gente saber quem era a Jodie Foster.
Muitos, muitos anos depois, todo o universo morreu. O universo morre muito frequentemente.
Morreu a minha avó Manelas, a tomar chá na esplanada do Hotel Albatroz; morreu o sol que derretia o gelado de morango e pêssego da Santini; morreu o Sandokan desembainhando a cimitarra nas florestas de Mompracém, a Ilha-que-Desaparecia, das edições Romano Torres a oito escudos; morreu a cantilena que sabíamos de cor – “Do meio do gramado/ Vem a bola p’rá Tostão/ Tostão p’rá Rivelino/ Está formada a contorção/ Rivelino p’rá Pelé/ Olha aí olhó negão/ Olélé, olálá, ‘tão botando p’rá quebra’” – mesmo que não fizéssemos ideia do que era o diabo da contorção; morreram os cromos do Bonev da Bulgária, do Grabowski da Alemanha Ocidental, do Rep da Holanda, do Jairzinho que tinha deixado crescer o cabelo em forma de bola à volta da cabeça; morreu a senhora dos bolos com uma caixa vermelha na cabeça; morreu o jogo das caricas correndo como automóveis nas pistas desenhadas na areia à força de piparotes; morreram os infinitos meses do verão; morreu o miúdo que ficava corado, mudo, arregalando os olhos perdido no travesso encantamento das sardas da menina da Coppertone, num embaraço pateta de, por causa de um cãozinho preto, lhe ter visto uma nesga de rabo branco.
Nunca conheci a Jodie Foster. Ainda bem, se calhar. Ficaria acanhado, sem ser capaz de lhe dizer, “olha, sabes?, gostei de ti”."
Quando os cucos entram pela boca
"Sochi – Alguém, não sei se Cavaleiro de Oliveira, disse uma vez sobre “Os Lusíadas”: “Têm dois defeitos: são demasiado longos para se saberem de cor e são demasiado curtos para serem infinitos.”
A literatura russa é certamente demasiado longa para se saber de cor, e é pena, mas tenho muitas dúvidas de que não seja infinita. De cada vez que releio “Os Irmãos Karamazov”, não acredito na existência de um Deus inofensivo; a cada tentativa de entender Raskolnikov, creio piamente no assassino que é cada um de nós; Gogol é tão, tão grande que se torna impossível escrever sobre ele; comparados com Pushkin, todos não passam de bolhas de sabão dispersas numa atmosfera sem oxigénio.
No dia em que fui ao encontro de Daniil Ivanovitch Iuvatchov, que assinava Harms, percebi a frase de Marina Tsvetaieva: “Só podemos admirar a vitalidade heróica dos escritores ditos soviéticos que escrevem do mesmo modo como a erva cresce por entre as lajes das prisões – a despeito de tudo e contra tudo.”
Daniil morreu numa prisão de Leninegrado aos 37 anos. Foi sempre tão pobre como rica a liberdade da sua prosa absurda mas de uma ternura ilimitada. Por isso, os seus personagens bocejam e deixam que os cucos lhes entrem pela boca. Por isso, quando Natacha, depois de morrer a cantar, simplesmente se desenterrou e correu para casa, sem dizer nada, e foi para o seu quarto crescer, eu sei que viverei para sempre por entre todos esses livros tão infinitamente russos que me fazem querer, também eu, um dia sem canto, me desenterrar e, sem dizer nada, fechar-me num quarto qualquer que tenha desocupado cá dentro, e simplesmente ler."
Candidatos há muitos!
"Todos os dias aparece um novo candidato - ou candidato a candidato - à presidência do Sporting. Primeiro foi o médico Varandas, depois um construtor civil, a seguir Madeira Rodrigues, e anunciam-se ainda um tal João Benedito, um dos gémeos Castro, Dias Ferreira... E até o próprio Bruno de Carvalho já veio reclamar o direito de se candidatar.
É um ver-se-te-avias, que dá um péssimo espectáculo ao país - e, de certa forma, dá razão a Bruno de Carvalho. Porquê? Porque este pode agora dizer que todos os que estavam contra ele o que queriam, afinal, era ir para o poleiro. O problema deles não era Bruno de Carvalho - era quererem ser eles a estar no seu lugar.
A sucessão de Vale e Azevedo no Benfica processou-se de forma radicalmente diferente. A oposição toda uniu-se em torno de uma pessoa - Manuel Vilarinho - para afastar Vale e Azevedo do poder. Uma pessoa com um perfil oposto ao do presidente que se queria substituir: mais séria, mais discreta, mais responsável, mais identificada com os interesses do clube e não com os seus interesses. Vilarinho ganhou. E depois passou o poder tranquilamente a Luís Filipe Vieira, com os (bons) resultados conhecidos.
No Sporting está a acontecer o contrário. E esta profusão de candidatos não augura nada de bom. Esta quantidade de leões a atirarem-se ao poder, como gato a bofe, é um espectáculo deprimente. Até Bruno de Carvalho - ou alguém por ele - pode ganhar. E depois ninguém mais o tira de lá.
Madeira Rodrigues descartou Peseiro, o treinador contratado por Sousa Cintra, e apresentou-se com Ranieri debaixo do braço, repetindo o erro das últimas eleições - em que renegou Jesus e escolheu um técnico de que já não recordo o nome. É certo que Peseiro não tem o perfil de um ganhador. Ultimamente passou pelo FC Porto, Braga e Guimarães e nunca triunfou, sendo sempre dispensado antes do tempo. Mas talvez seja o treinador certo para esta fase. É um homem educado, cordato, civilizado, que não ganha mas sabe de futebol. E o Sporting está farto nos últimos meses de um estilo agressivo, trauliteiro, fanfarrão e malcriado.
O Sporting precisa de tranquilidade a todos os níveis - e Peseiro pode dá-la ao nível do balneário. Agora falta que no topo do clube apareça um homem com as características certas para mudar a imagem do Sporting, o tirar do caos e lhe devolver a credibilidade.
Nos últimos meses, o Sporting assemelhava-se a um comboio descarrilado - e, nessa sua trajectória louca, quais seriam os patrocinadores, os bancos, as instituições respeitáveis que quereriam associar-se a ele?
A próxima direcção tem, assim, a tarefa homérica de pôr outra vez o Sporting nos carris. De recuperar a respeitabilidade perdida. Mas não é com uma alcateia de leões famintos que isso se conseguirá."