quinta-feira, 5 de julho de 2018
França B
"Porque amanhã joga a França, invocamos El Hadji Diouf, a estrela do Senegal que, no Mundial de 2002, foi… França B e já se perceberá porquê. Mesmo sem golos, Diouf foi, aos 21 anos, o mais destacado jogador da selecção no Coreia do Sul / Japão, ainda que bem acompanhado (entre outros) por Khalilou Fadiga, que não acusou o apelido a organizar o jogo dos Leões de Teranga.
Na sua primeira participação Mundial, o Senegal cruzou-se com a França de Zidane, o Uruguai de Forlán e a Dinamarca de Gronkjaer. Venceu o grupo, ultrapassou a Suécia e acordou do sonho nos quartos-de.final.
Antes do torneio, o presidente senegalês antecipou que os seus Leões jogariam pelo Senegal, por África e… pela França. Ideia reforçada por Diouf quando se referiu ao Senegal como… França B. Em 23 convocados, Diouf era um dos 21 que jogavam em França, o que permitiu uma particular conjugação: quando os titulares das duas selecções entraram em campo, o Senegal apresentava 11 jogadores a actuar no território francês, país onde… nenhum gaulês jogava!
O jogo de abertura tornou-se um França A contra França B. A jogar contra os campeões em título, esperava-se que do jogo francófono resultasse um estender de tapete do Senegal à antiga e poderosa metrópole. Pelo contrário: foram os bleus ao tapete numa derrota, por 1-0.
Diouf contribuiu decisivamente para a vitória ao assistir Papa Diop para o golo, festejado no campo também por Aliou Cissé, actual seleccionador senegalês. No jogo entre a metrópole e o seu antigo território, os gauleses levaram balde de fria água… de colónia!
Chegado ao torneio como o Futebolista Africano do Ano de 2001 (à frente de dupla Samuel: Kuffour e Eto’o), as suas exibições garantiram-lhe a renovação do prémio individual em 2002 (Papa Diop foi segundo) e a eleição para a equipa do Mundial. Se, em 1998, o Senegal ‘contribuiu’ com Patrick Vieira (nascido em Dakar) para o título francês, agora um gaulês colaborava para a maior vitória dos Leões de Teranga: Bruno Metsu, seleccionador… senegalês! França B? Há sempre mais do que aquilo que se vê!"
O meu samovar e o Mundial de Mr. Thomas Lipton
"Os ingleses são um povo muito particular e talvez por isso o bom Deus os tenha reunido a todos numa ilha.
Sochi - Há lá algo de mais russo do que chegar ao meu quarto e ligar o samovar para o chá da tarde? Claro que não é um daqueles samovares monumentais, do tempo do Miguel Strogoff, o correio do czar Alexandre II, enviado a Irkutsk, essa cidade à beira do Baical da qual recordo tardes encantadoras. Nem sequer um samovar como o que existia na nossa carruagem do Trans-siberiano, vigiado dia e noite por uma “pravadnika” com cara de esturjão cujo marido deve ter saltado pela janela na hora do casamento, como o Podkoliossin da peça de Nicolai Gogol.
É simples o meu samovar - a palavra é construída, samo (próprio) e varit (cozinhar) -, apenas um bulezinho com uma base que se liga à electricidade e aquece em segundos o Lipton em saquetas.
Ora, a verdade é que, neste caso, Mr. Thomas Johnstone Lipton, um escocês que foi camareiro de navio e adorava velejar, cai aqui tão a propósito como o grande Miguel Strogoff do imarcescível Verne, à mistura com a perseguição dos tártaros, Pigassof, Nadia e o diabo a quatro. Em 1909 já Mr. Lipton tinha uma fortuna colossal graças a uma ideia peregrina: vender chá a pacote para as classe mais baixas a preços suportáveis. Foi quando decidiu organizar, em Turim, um grande torneio internacional de futebol. O troféu para o vencedor tinha o pomposo nome de Crown of Italy World Cup. Ah! Um Campeonato do Mundo! “Tally-ho old chap!”
A pomposidade do nome caiu por terra em menos tempo do que a velha do Mário-Henrique Leiria comeu a nêspera que estava na cama deitada, muito calada, a ver o que acontecia. Ficou simplesmente Lipton Cup, nada de especialmente snobe. Mas Lipton tinha mais com que se preocupar.
Os ingleses são um povo muito particular e talvez por isso o bom Deus os tenha reunido a todos numa ilha. A Football Association não quis nem saber de Lipton, pacotes de chá e Turim incluídos: era o que faltava autorizar equipas britânicas a participar em palhaçadas circenses com gentalha que nem ao certo sabia para que servia uma bola.
Como bom escocês de Glasgow (no meu tempo da primária escrevíamos Glásgua), Lipton era teimoso como um muar. Foi a West Auckland, não longe de Middlesbrough, no condado de Durham, e convenceu uma equipa de mineiros que vegetava nos cafundéus da Northern Amateur League a participar no tal Campeonato do Mundo de Turim, juntamente com os alemães do Stuttgarter Sportfreund, os suíços do FC Winterthur e uma selecção de Turim formada por jogadores do Torino e da Juventus.
Não chegam até hoje ecos da qualidade flagrante dos bravos mineiros de West Auckland, mas sabe-se que bateram o Stuttgarter Sportfreund por 2-0, repetindo o resultado na final, frente ao Winterthur. E foram para casa convictos de que eram, na realidade, campeões do mundo. Convicção que se acentuou dois anos mais tarde, em nova Lipton Cup, dessa vez esmagando a Juventus no jogo decisivo por 6-1.
A Crown of Italy World Cup ficaria, de forma perpétua, nas vitrinas da sede do West Auckland Social Club, não se tivesse dado o caso de algum malandrim resolver levá-la para casa.
Nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima, nem o próprio Thomas Lipton, que não tardou a receber a Royal Victorian Order das mãos da autêntica Victoria Regina, na Capela Savoy, em Londres, por serviços prestados aos negócios a retalho do Britânico Império. Dedicou-se às regatas e desistiu do futebol. Participou cinco vezes na America’s Cup e nunca ganhou. Simpáticos, talvez condoídos, os seus colegas do Royal Ulster Yatch Club ofereceram-lhe um troféu misericordioso: “To the best of all loosers.” Enfim, uma espécie de melhor dos piores.
Não faço ideia se Sir Thomas Johnstone Lipton chegou a ser proprietário de algum samovar. Sei que, se fosse vivo, não lhe emprestava o meu. E dizia-lhe sem grande tartufice que este cházito Lipton não é lá das tais coisas..."
E a tristeza ficava a sul
"De repente, ensinaram-me essa verdade cruel que eu preferia não ter aprendido: cortam-se as pontas das asas aos pássaros para que eles não consigam mais voar.
Sochi - Enquanto a noite cresce vou observando os pássaros. Dizem que esta era uma cidade de pássaros, continuamente migratórios, mas que o betão dos edifícios dos Jogos Olímpicos de Inverno os empurraram para céus que aqui não moram.
Há muitos anos, não sabia que se podia cortar o voo aos pássaros aparando-lhes as asas nas pontas. Há muitos anos, em Águeda, os rouxinóis cantavam de noite no jardim, perdidos por entre as folhas das ameixieiras, e eu ficava absorto na tranquilidade das estrelas, debruçado numa varanda virada a sul. Há muitos, muitos anos, era a sul que ficava a tristeza: era a sul que ficavas tu.
Há mais anos ainda aprendíamos na escola uma canção de pássaros: “Sabiá na gaiola/ Fez um buraquinho/ Voou, voou, voou, voou...”
Aprendíamos com ela a voar também, cada um batendo as suas asas por dentro.
Hoje estou aqui, analisando pardais: o fascínio dos pássaros.
Há muitos anos, eu tinha a certeza: raramente fazemos alguma coisa com a consciência de que é a última vez que a fazemos. Janelas fechadas, perras, resistentes, tão difíceis de abrir. Janelas para lá das quais voam os pássaros: “Sabiá no poleiro/ Foi cantar ao carapeteiro...”
Uma mosca patina com força na vidraça e o céu ganha tons demasiado turvos.
De repente, ensinaram-me essa verdade cruel que eu preferia não ter aprendido: cortam-se as pontas das asas aos pássaros para que eles não consigam mais voar.
A noite, a pouco e pouco. Estou cá no alto, debruçado numa varanda em horizontes de Cáucaso. Um homem de barba grossa enrosca-se em folhas de jornais velhos numa submissão triste de sonos por dormir. A escuridão em redor ignora-lhe a miséria enquanto a polícia não chega e o pombo procura, desajeitado, a protecção confortável dos zimbros. De súbito, como se acordasse de um pesadelo bruto, ergue os braços, aflito, a proteger o rosto de um bando de pássaros invisíveis e de asas por cortar."
Franz Beckenbauere o joelho de Pavarotti
"Sochi - Mais de 30 anos a viajar por Portugal e pelo mundo atrás daquela a que o eterno Torga poderia ter chamado a mágica senhora das paixões, a bola, fez-me cruzar, conhecer e fomentar amizades com os grandes do futebol de todas as gerações, dos meus queridos Eusébio, António Simões e José Augusto a Ronaldo, que será sempre para mim um menino, do senhor Coluna a Pelé e a Bobby Charlton, passando por Platini, Tostão, Cruyff, Di Stéfano, Just Fontaine, Rinnus Michels e um nunca mais acabar de nomes aos quais junto, com um carinho infinito, todos aqueles com quem vivi, na selecção nacional, o Europeu de 2004 e o Mundial de 2006, os dois anos mais competitivos da história daquela que Ricardo Ornellas apelidou de equipa-de-todos-nós.
Mas ia-me perdendo. Vinha para falar de Beckenbauer, Franz, o Kaiser (sem aquele bigode apepinado de Guilherme II), e é dele que vou falar.
Era Janeiro, fazia um frio de rachar, parecia que o mundo inteiro se tinha unido para me tramar, como canta outro benquisto amigo, Rui Veloso, e eu estava em Munique, ruas pejadas de neve.
Um céu sem pássaros.
Ia encontrar-me com Beckenbauer, na altura presidente do Bayern de Munique. Christina Neumann, a responsável pela comunicação do clube, fez questão que, antes da entrevista marcada com Franz, que viajaria a meu lado, no dia seguinte, no avião para Lisboa, víssemos o reinício do campeonato alemão, finalizada que estava a pausa de inverno.
Estádio Olímpico: Bayern de Munique-Hamburgo.
Aos 11 segundos, o brasileiro Élber marcou o golo mais rápido da Bundesliga.
Em cheio!
Beckenbauer sorria um sorriso de anfitrião.
Lá está, seráfico como Beckenbauer…
Franz Anton Beckenbauer tem aquele ar severo de cavalheiro prussiano mas é, como se costuma dizer, um rapaz da porta ao lado. Tranquilo, calado, sem peneiras.
Quase ia a escrever: sem peneiras como aqueles que não precisam delas para acrescentar centímetros ao seu tamanho.
Eu tinha lido o livro de Beckenbauer. Convenci-me, sei lá por que raio de ideia súbita que me brotou dos interstícios do encéfalo, de que seria um bom tema de conversa. Ele amofinou-se. Não comigo, mas com o livro: “Foi um verdadeiro sacrifício. Que ideia tão estúpida. Não tenho o mínimo jeito para algo do género. Nem sei porque resolvi aceitar o projecto da editora.”
Que eu saiba, não chegou a ser traduzido para português: chamava-se qualquer coisa como “Eu Conto Como Foi”, numa liberalíssima versão absolutamente minha. Aliás, convenhamos que a expressão liberalíssimo encaixa perfeitamente em Beckenbauer. Diziam que era um líbero, mas na verdade era, de facto, um liberalíssimo.
Franzi, como alguns dos amigos lhe chamam, contou-me: “Pressionaram-me bastante para publicar histórias que fui acumulando ao longo da minha carreira, episódios que reparti com gente das mais diversas áreas, desde a política às artes. Por exemplo, quando joguei no Cosmos, com Pelé, cada vez que entrava no balneário ficava com a sensação de que estava em Hollywood.”
E, em seguida, falou de Pavarotti, Luciano Pavarotti: “Conheci-o pessoalmente no Metropolitan de Nova Iorque. Um tipo extraordinário! Grande apreciador de futebol. Veio ter comigo, dobrou um joelho até tocar o chão e exclamou: ‘Maestro!’ Claro que aquilo confundiu um bocado os americanos presentes, que percebiam pouco ou nada de futebol e nem sabiam quem eu era.”
Pavarotti e Freni na “Bohème”: nada pode estar mais perto da perfeição.
Os joelhos de Beckenbauer e de Pavarotti nunca lhes terão dado problemas por aí além, segundo sei. Já os corações, alvoroçados, levaram ambos às mesas de operações. Um falava pouco, o outro cantava tanto, tanto. Estremecia com a voz o arcaboiço de um homem. E foram ambos estrelas. Pavarotti, tanto na terra como no céu."
Venham mais dez
"Quando alguma coisa corre mal, o romântico saca sempre da sua explicação preferida: “falta-nos um dez”. O lateral não sobe? Falta-nos um dez. O lateral sobe mas não sabe cruzar? Falta-nos um dez.
Os românticos da bola têm as suas obsessões às quais regressam mesmo quando não querem, por isso são obsessões e não outras formas mais serenas de admiração. De todas elas, nenhuma é tão compulsiva como a do número 10. Para estes românticos (vá, para os que acumulem romantismo com benfiquismo), o futebol morreu há dez anos, no dia em que Rui Costa pendurou as chuteiras e desapareceu nos gabinetes da SAD. Quando alguma coisa corre mal, no clube ou na selecção, o romântico saca sempre da sua explicação preferida: “falta-nos um dez”. O lateral não sobe? Falta-nos um dez. O lateral sobe mas não sabe cruzar? Falta-nos um dez. O ponta-de-lança tem dois tijolos em vez de pés? Falta-nos um dez. Falta-nos um seis? Falta-nos um dez.
E que dez é esse? Pelé? Maradona? Platini? Roberto Baggio? Enzo Francescoli? Zico? Zinedine Zidane? Ronaldinho Gaúcho? Valdo Cândido Filho? Deco? Talvez o Pelé de 1970, naquele estilo mais lento, pré-Cosmos. Talvez o Zidane de 2006, a puxar todos os cordelinhos do jogo, mestre-titereiro incomparável. Sim, e sempre com as feições vagas de um Rui Costa. Eu, que também sou desses românticos, é assim que o imagino no meu ideal platónico, arquetípico: um príncipe rodeado de operários, um aristocrata entre bárbaros. A analogia é inigualitária, bem sei, mas a distribuição do talento também o é, e contra isso de pouco valem os protestos. A única maneira de gerar mais igualdade é pôr os príncipes a carregar o piano. Só não se espere que eles, depois do esforço, toquem como Glenn Gould.
No futebol europeu é isso que tem acontecido. Já nenhuma equipa com ambições sérias se pode dar ao luxo de ter um número dez como os românticos o imaginam. Hoje, o dez tem de partir pedra e tocar bombo como os outros. Depois, se tiver tempo e forças, pede-se-lhe magia. E ele oferece magia suada, magia como se fosse mais uma tarefa, magia cansada. Os “dez” continuam por aí, às vezes disfarçados de “oito”, às vezes descaídos para a ala, às vezes como segundos pontas-de-lança. A fechar espaços, a pressionar, obrigatoriamente solidários.
Modric e Coutinho, Banega e Isco, Herrera, Bernardo Silva e Bruno Fernandes são todos “dez” destacados para outras áreas menos nobres, inclusivamente o banco. Mas nenhuma seleção tem dois “dez” que se aproximem tanto do “dez” ideal como a Colômbia. Enquanto os românticos e nostálgicos se queixam da falta de “dez”, a Colômbia tem-no em duplicado, um dez e um vinte. James e Quintero são a luz a brilhar no exterior da caverna. Agradeça-se a Pekerman não ter optado pela solução fácil de sacrificar um dos dois após o primeiro jogo. Coçou a cabeça e arranjou maneira de os conciliar em campo. Ontem, porém, a lesão de James Rodríguez voltou a deixá-lo de fora. Ficou ele a sofrer nas bancadas e a equipa a sofrer em campo. Há várias diferenças entre James e Quintero. O jogador do Bayern não só tem mais golo como o seu estilo é mais dominador: a equipa parece-se sempre com ele. Contra a Inglaterra, Quintero mostrou que não é capaz de fazer o mesmo. O jogo desenvolveu-se à margem dele, afastando-se das avenidas que um “dez” sempre consegue abrir, encurralando-se em brigas de becos, em rixas de rua.
Talvez o problema de Quintero tenha sido mais de autoridade do que de intensidade, embora esta última o vá perseguir para sempre, como a muitos “dez” que dão a impressão de correr menos do que deviam. A Quintero apontam-se-lhe dois pecados para não ter triunfado na Europa: a falta de compromisso defensivo e o excesso de peso. São duas faces da mesma moeda. Não defende porque é gordo, é gordo porque não corre. É verdade que o jogo de Quintero se define pelo que faz com a bola e não pelo que corre sem ela, mas ele próprio tratou de rebater a acusação: “Não sou gordo, sou ‘nalgón’”, expressão que não só dispensa tradução como recomenda que se mantenha assim no original. Pois bem, com um “dez” esguio, principesco, e um vinte “nalgón”, mais para Sancho do que para Cavaleiro da Triste Figura, a Colômbia era o último reduto, o reduto possível, dos românticos, dos quixotescos, dos que ainda sonham com um “dez” perfeito que, como os gigantes que o outro via, já só existe na imaginação. A Colômbia caiu. Viva a Colômbia!"
90 minutos, com sorte…
"Cavani, avançado uruguaio que atirou Portugal para fora do Mundial, escreveu uma carta a Edinson. O primeiro tem 31 anos, o segundo tem nove. Mas são a mesma pessoa. Vale a pena ler o texto na íntegra (na publicação online "The Players Tribune"). E uma passagem em particular. Diz a estrela de futebol, agora habituado a uma vida de luxo em Paris, ao menino pobre de Montevideu que foi, e a quem faltava quase tudo (que não a bola e o sonho): "Quando és uma criança, tens a sensação de que a pessoa mais bem-sucedida é aquela que tem mais coisas. Quando cresces, percebes que a pessoa mais bem-sucedida é aquela que tem a sabedoria de viver a vida. Quando conseguires ser bem-sucedido no futebol, terás tudo aquilo com que podes sonhar. E terás de ser extremamente grato por isso. Mas tenho que ser honesto contigo. Existe apenas um lugar onde podes ter liberdade total. Dura 90 minutos, se tiveres sorte!". O tempo de um jogo. O melhor do futebol. Por oposição ao que tem de pior, que é quase tudo o resto. No futebol português, os últimos meses (como os que estão para vir), são exemplares. Da vulgaridade, da falta de princípios, da violência, da demência. E do crime fiscal, como se lê no mais recente relatório de combate à fraude e evasão fiscal. São pelo menos 90 processos instaurados pela Autoridade Tributária e Aduaneira relacionados com a contratação e transferência de jogadores. Não vale a pena ter ilusões. Mesmo um grande futebolista pode ser um mau cidadão. Veja-se Ronaldo, exemplar dentro do campo, condenado a pena de prisão fora dele. Voltemos à carta que Cavani escreveu a Edinson: "Em muitos aspectos, vives um sonho. Em muito outros, és prisioneiro desse sonho. Não podes sair e sentir o sol. Não podes tirar as chuteiras e jogar na terra. Acontecerão coisas que vão complicar a tua vida. É inevitável". Sobram os 90 minutos. Com sorte..."
Seleção: vá, olhemos para o copo meio... cheio
"Eliminação nos oitavos de final frente ao Uruguai soube a pouco.
Antes de o Campeonato do Mundo começar, o objectivo mínimo para a Selecção seria chegar aos quartos de final.
Com o decorrer do torneio e perante a perspectiva de a equipa, mais uma vez, cair no lado bom do calendário, talvez até tivesse sido possível ter chegado mais além. A oportunidade perdeu-se com o penálti assinalado a Cédric nos descontos, frente ao Irão.
O conjunto de Fernando Santos regressou a casa, e não foram poucos os adeptos que lhe manifestaram apoio. Apesar da eliminação frente ao Uruguai, a empatia entre o povo português e os jogadores campeões da Europa permanece. Não aconteceu nada no Mundial que a tivesse afectado, ou de certa maneira corrompido. Do ponto de vista do adepto, não será improvável que essa ligação emocional tenha saído até reforçada.
Portugal não envergonhou, e é por isso!
Venceu um jogo, empatou dois, um deles com a Espanha, e lutou até ao fim para a evitar a derrota frente ao Uruguai. A boa segunda parte com a Celeste Olímpica é a última imagem com que todos ficamos, e não é, de todo, uma das más. Entrega, suor, coesão, espírito de grupo, uma equipa unida à volta do seu técnico, isso tudo foi identificável na Rússia.
De um ponto de vista mais crítico, chega-se à conclusão de que Portugal não teria, provavelmente, futebol para mais.
A um posicionamento muito defensivo, somou-se um futebol desligado, desapoiado, demasiado à procura da explosão dos homens mais adiantados. Com alguns elementos em mau momento, casos de Raphaël Guerreiro, João Mário e Gonçalo Guedes, e com outros demasiado presos à linha, como esteve Bernardo Silva, a Selecção Nacional foi muitas vezes inconsequente, sem capacidade de chegar à área contrária e finalizar.
Não se trata apenas do posicionamento conservador. A Selecção não soube construir-se a partir de linhas tão baixas, e teve o seu melhor período em toda a competição no momento em que Bernardo Silva pisou terrenos interiores. Portugal não jogou mal porque foi defensivo, mas sim pelos momentos em que tinha de deixar de sê-lo.
Porque nem tudo foi mau olhemos para o copo meio-cheio.
A próxima Liga das Nações da UEFA encerrará mais desafios para uma Selecção que já tem parte dos seus titulares com mais de 30 anos: Pepe (35), Fonte (34), Moutinho (31), Manuel Fernandes (32) e Bruno Alves (36). O eixo defensivo é um problema e Rúben Dias terá rapidamente de começar a contar, da mesma forma que se esperam sinais de crescimento vindos do Seixal, Alcochete e Olival.
Depois, há outros jogadores já preparados para assumir o desafio, como Bruno Fernandes, que até terá jogado de menos nesta fase final.
Se no que diz respeito às opções mais virão a caminho, na filosofia é preciso crescer para lá da fórmula-Euro. Dificilmente, um raio cai duas vezes no mesmo sítio. Caberá a Fernando Santos pensar fora da caixa, da sua."