quarta-feira, 14 de março de 2018

Tempestade 'Félix' no meio de muitos 'alegadamente'

"Qualquer fulano pode dizer, sem corar e sem se entalar, que sicrano é 'alegadamente' isto ou aquilo.

1. Seja-me permitido começar com uma metáfora futebolística de um benfiquista chamado Félix: a tempestade Félix foi cirúrgica. Fez estragos na Mata Real. Alerta vermelho.

2. O tempo será, como sempre, o soberano juiz de tudo o que paira a propósito do meu clube. Como simples sócio, o meu maior desejo é que, no fim de tudo, o nome e a história do Sport Lisboa e Benfica fiquem preservados na sua essência eclética, desportiva e ética. Mentira, porém, se não dissesse que me sinto desconfortado, ainda que não abalado. Não porque passe sentenças transitadas em julgado de acordo com o brutal ruído de fundo que tudo contamina e tolda a razão. Não porque não reconheça tudo o que de muito bom tem acontecido no clube. Não porque me deixe encadear emocionalmente pelo atropelo de todas as regras éticas e deontológicas que é pasto para todas as sevícias. Não porque me deixe abater pelas falsas virgens que por aí andam a perorar e a fazer verdadeiros autos-de-fé ao Benfica, não se dando sequer ao cuidado de olhar para si próprios e suas agremiações.
Estamos perante imbróglios onde a fronteira entre o real, o virtual e o artificial é, por agora, indistinguível. Todos os dias meio-mundo comunicacional, em regime de circo ambulantes, debita juízos, sentenças, ameaças, cabalas, insinuações, ilações, antevisões e projecções em canais televisivos que vendem 'sangue' ao litro. Entre o alegadamente alegado e as violações de segredo, entre o artificialmente somado e o repetido mil vezes como se fosse uma nova notícia, entre a maquinação que é óbvia e os doutos justiceiros de trazer por casa, é um fartar vilanagem. O advérbio mil vezes repetido 'alegadamente' é a senha e o salvo-conduto para dizer as maiores barbaridades, sem qualquer preocupação pelo rigor. Qualquer fulano pode dizer, sem corar e sem se entalar, que sicrano é 'alegadamente' isto ou aquilo.
Perante tudo isto, sinto tristeza, enquanto estado do espírito, não enquanto juiz do que não conheço. Sinto cansaço de um mundo-cão em redor de um futebol que já não é que vivi durante muitos anos, ganhando ou perdendo. Sinto inquietação não por mim, mas pelas novas gerações que são formatadas num ambiente podre de ódios entre inimigos e não num ambiente desportivamente são, embora duro, entre adversários.
Uma boa reputação de alguém ou de uma instituição conquista-se ao longo de uma história, entre sucessos, fracassos e embates. Mas, pode esboroar-se, justa ou injustamente, ao virar da esquina, sobretudo neste 'novo mundo' da comunicação ardilosa, de recalcamento perverso, de cobardia, de impunidade e anonimato que hoje tudo condiciona.
Seja qual for o desfecho de acções no âmbito judiciário, um ponto (importante) não desvalorizo objectivamente: o do receio que o SLB possa ter sofrido um sério abalo na 'escala de Richter' do seu valor reputacional que fez e faz mover este grandioso clube.
Não se pense, porém, que quando escrevo estas linhas me sinto cercado pela lupa cretina que quer fazer crer que o Benfica é o 'eixo do mal'. Tenho idade suficiente para não me deixar abater pelo esvoaçar de certos abutres. Sei que os fins jamais justificam os meios (coisa certamente os somemos para quem tem criminosamente violado este principio, com a naturalidade própria do despudor e da imbecilidade). Sei que, na origem de todo este imbróglio, estão violações inadmissíveis de direitos constitucionais garantidos, como o da privacidade e do direito ao bom nome. Sei quão impensável é condenar pessoas e instituições na praça pública, com meios de comunicação social e destilar venenosamente o que lhes é dito por quem tem o dever do sigilo. Sei que se passa facilmente de presunção de inocência à presunção de culpabilidade. Espanto-me com  a constatação de que a violação do segredo de justiça tanto pode ser um crime, como uma expertise, uma dádiva ou uma oportunidade. Sei que muito do que agora se diz do meu clube não será, certamente caso único no meio do futebol nacional, como se os clubes rivais fossem uns santinhos na fila para a canonização. Sei, sabemos todos, que tráfico de influências, arbitragens condicionadas, toupeiras na relva, aldrabices que deram títulos, lugares preenchidos estrategicamente como veículos transmissores de poderes, linguagem comunicacional desbragada, conhecimento antecipado de procedimentos juiciais em jeito regional foram o fermento de muitos anos de más práticas em roda livre. Sei que uns bilhetinhos e umas camisetas são o pão nosso de cada dia nos clubes, mas que, no Benfica (vide caso Centeno sobre o qual correu tanta tinta), é sempre criminoso. Sei tudo isto e muito mais. Basta estar atento e ter memória. E depois, não percebo como ainda nada aconteceu perante uma tão completa, sórdida e recorrente devassa ética (e certamente criminal) do acervo e da vida contratual, comercial e patrimonial de um clube.
Ouvi o vice-presidente da Direcção Dr. Nuno Gaioso num canal televisivo. Confortou-me porque, esclarecida e serenamente, deu importantes informações sobre as reuniões do CA da SAD. Decantada a poeira destes dias, falou o presidente do Sport Lisboa e Benfica. Foram palavras de assumida responsabilidade as que ouvi de Luís Filipe Vieira para todos os benfiquistas de Portugal e da diáspora. É imperativo robustecer o clube na rota das vitórias, mas também da decência, da exigência e da honra. O nosso pior inimigo é o tempo do pântano entre o tempo mediático e o tempo da justiça. Se tiver havido erros, falhas ou necessidade de autocrítica, cá estaremos para seguir em frente, de cara lavada, porque temos o direito e o dever de ser profundamente exigentes. O Benfica tem de saber repor e restaurar a autoridade do exemplo.
Nada tenho contra dirigentes ou quadros do clube que, em fases da sua vida, têm simpatia por rivais ou trabalharam noutros clubes. Por exemplo, considero fundamental o trabalho do Dr. Domingos Soares de Oliveira, um elemento chave conhecedor e competente. Mas, neste momento, não posso deixar de expressar a ideia de que, noutros domínios, o Benfica, no seio de milhares e milhares de associados, tem pessoas rectas, diligentes e capacitadas para, honrando a camisola, dar o meu melhor para o clube. Pela minha parte, dispenso o apport e a experiência, às vezes ardilosa, que se podem pretensamente trazer do trabalho antes feito noutros clubes ou em rivais.
Admito que se considere que a minha visão é romântica e inconciliável com o presente e sobretudo o futuro do nosso futebol. Tenho perfeita consciência de que a agora chamada indústria necessita de capitais, tecnologia, saberes e aptidões altamente profisionalizadas. Não sei se também por cá os clubes saberão resistir ao vento dos 'novos tempos' que, na Europa, tem transformado clubes em empresas unipessoais ou de capitais puramente financeiros, em que a força do dinheiro - sempre volúvel, sem cor e sem pátria - esmaga a consistência da alma e esbate a paixão. Mas ainda acredito que é possível conciliar o clube do coração com a sociedade da gestão. Com a exigência, boa selecção, seriedade, meritocracia e pagando a qualidade.
Ao correr do teclado, revisitei um texto de um dos meus livros, escrito em 2002, isto é, no meio da 'seca' de uma década sem ser campeão. Permito-me transcrever aqui parte dessas palavras, porque as sinto exactamente do mesmo modo. E como eu, estou seguro que sentem todos os verdadeiros benfiquistas de raiz e que anseiam pelo fim justo deste tempo de incómodo ansiedade.
Disse então: O Benfica para mim é definitivamente uma paixão. Daquelas que não têm antídoto. Que me acompanhará até ao último momento da vida. Sou seu amante, até ao tutano da minha alma. Uma derrota do meu Benfica perfura-me o ânimo, sem cuidar da anestesia. Uma vitória do meu Benfica alimenta-me mais do que o mais calórico dos alimentos, a anima-me mais do que uma mão cheia de antidepressivos. Na vitória, o amor ao clube é partilhado, mas no desaire a solidão dá-lhe uma expressão infinita e incondicional.
O Benfica é ao mesmo tempo afecto e privilégio, coração e razão, vitamina e analgésico, fermento e adocicante, saudade e desafio, cumplicidade e aconchego.
O Benfica acontece em mim. E nesse acontecer, funde-se a minha personalidade com o sentimento de pertença. Onde tudo o resto do clube se apaga, excepto isso mesmo: a ideia de ser Benfica. Sem personagens, sem fronteiras, sem referências. Apenas a imanência de o Benfica estar dentro de mim e eu dentro do Benfica.
Como acontece com a pessoa amada, o verdadeiro teste do afecto concretiza-se nos momentos difíceis.
Força Benfica! Lutemos unidos pelo pentacampeonato!"

Bagão Félix, in A Bola

Em defesa do bom-nome do Sport Lisboa e Benfica

"A Sport Lisboa e Benfica SAD informa que desde o início do processo de divulgação e manipulação ilícitas da sua informação privada e confidencial, até à presente data, formalizou diversas iniciativas judiciais e extrajudiciais com vista à salvaguarda do seu bom-nome e reputação, nomeadamente:

12 Queixas-Crime
- 1 Queixa-crime por acesso ilegítimo contra pessoas incertas
- 2 Queixas-crime por violação e divulgação de correspondência privada
- 8 Queixas-crime por ofensa a pessoa colectiva
- 1 Queixa-crime por violação do segredo de justiça contra pessoas incertas

4 Exposições/Requerimentos dirigidos à Procuradora-Geral da República e diversos procedimentos Judiciais e Extrajudiciais
- 1 Procedimento Cautelar Cível
- 15 Interpelações por e-mail
- 4 Notificações judiciais avulsas
- Notificação extrajudicial a todas as pessoas singulares e entidades que procederam à descarga de dados obtidos através de furto e violação da correspondência privada

5 Queixas e Exposições a Diversas Entidades
- Exposição a todos os membros do Conselho Superior do Ministério Público
- 3 Queixas dirigidas à ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social
- Exposição dirigida à Comissão Nacional de Protecção de Dados

Estão neste momento em conclusão mais de uma dezena de novos processos que visam aqueles que, a coberto do anonimato e de forma sistemática e impune, têm publicitado o teor de informação privada e confidencial do Sport Lisboa e Benfica, ao mesmo tempo que divulgam publicamente documentos de investigação que se encontram em segredo de justiça, numa coincidência particularmente complexa e de enorme gravidade num Estado de Direito.
A Sport Lisboa e Benfica SAD lamenta de forma veemente as sistemáticas violações do segredo de justiça, evidenciadas pela reiterada divulgação pública de diversas diligências de investigação e de factos e informações que só poderiam ser do conhecimento das entidades responsáveis pela investigação criminal."

Respeito

"1. Até ao momento, o FC Porto perdeu pontos na Liga com três dos clubes pequenos. Eis o que disse Sérgio Conceição no final desses jogos:
Desp. Aves - FC Porto (1-1), a 25 de Novembro de 2017. «O Aves estava motivadíssimo, vi jogadores no banco a festejar o empate como se fosse a final da Liga dos Campeões».
Moreirense - FC Porto (0-0), a 30 de Janeiro de 2018. «Logo no início, muita quebra de ritmo no jogo. Há jogos assim, em que o adversário tenta tudo para agarrar o pontinho».
P. Ferreira - FC Porto (1-0), a 11 de Março de 2018. «Depois do golo deles não houve mais jogo. Foi um espectáculo horrível, vergonhoso.
Olhanense  Benfica (0-0), a 23 de Março de 2012. «Durante a primeira parte se houve 20 minutos de jogo foi muito. Bola fora, jogo parado, constante antijogo...» disse Jorge Jesus, então treinador do Benfica, após o jogo com o Olhanense de Sérgio Conceição.
2. A propósito do primeiro golo do Sporting em Chaves, o Twitter da comunicação do Benfica foi tão rápido como Lucky Luke e teve tão pouca pontaria como Rafa, pois Bast Dost não estava, afinal, fora de jogo. Antes de tentar acabar com a paródia, convém que o Benfica acabe primeiro com os tiros nos pés.
3. Fazer uma denúncia anónima não deveria ser tão fácil como ver Júlio César a chorar, mesmo que Kléber entre para a história com o primeiro ser humano que paga impostos a sorrir.
4. O Benfica B perdeu 4-0 com a Académica, no Seixal, e o director de comunicação do Sporting acusou o Benfica de ter facilitado a vida dos estudantes a troco de uns votos na Liga. No dia seguinte, que ironia, o Sporting B perdeu por 4-0 em casa do Santa Clara. A troco de uma excursão para observar baleias e golfinhos ao largo de São Miguel?"

Gonçalo Guimarães, in A Bola

Rafa resgatou a esperança

"Chegou à Luz com um fardo de 16 milhões de euros às costas. O peso é tremendo para qualquer homem mas torna-se insuportável para quem nunca ambicionou ser protagonista e reduziu as motivações da carreira a tirar algum prazer do jogo e escapar à pressão de um grande clube – como se tal fosse possível… Todo o comportamento no Benfica configurou a imagem de um funcionário obediente, disposto a cumprir obrigações solidárias, de acordo com o senso comum do trabalho imposto pelo treinador. Rafa agiu como profissional estrito, distante, frio, indiferente à natureza de um clube gigantesco na sua dimensão social e desportiva. Sem perceber, afastou-se do grande palco, triste, baixando os braços, resignado ao infortúnio. Nenhum treinador confia num jogador assim.
Juan Antonio Corbolán, um dos melhores basquetebolistas espanhóis de todos os tempos, que defendeu o Real Madrid quase duas décadas, costumava dar lições aos jovens pretendentes a jogadores. Punha-lhes a bola nas mãos e perguntava: "Quem é a pessoa mais importante deste clube?" Quase todos respondiam: "O presidente." E era aí que ele queria chegar: "Certo, mas quando tens a bola nas mãos, a pessoa mais importante do clube és tu."
Não se trata de reclamar o romantismo que o negócio devorou, porque o tempo reduziu à insignificância os benefícios de conceitos que passaram à história; o amor à camisola é uma ingenuidade tão grande quanto a inocência do apego sentimental às raízes dos clubes; a convicção de que um vínculo mais sólido e profundo possa influenciar o comportamento dos jogadores é uma utopia porque, na esmagadora maioria, esses intérpretes nasceram longe e desconhecem a história por trás do emblema que trazem ao peito. Muitas vezes, porém, é bom que o futebolista não reaja à voragem mediática dos clubes que representa, ao peso da bandeira e às circunstâncias adversas de cada jogo. É o truque de muitos para aliviar tensões e atingir o máximo das suas possibilidades. Convém não exagerar. A opção encerra o risco de beliscar um dos mandamentos sagrados dos adeptos: é imperdoável agir como se nada acontecesse onde tudo está a passar-se.
O percurso quase o levou à dispensa no mercado de inverno. Mas Rafa ouviu o alerta das sirenes, alterou o comportamento e, com a lesão de Salvio, agarrou a nova oportunidade concedida por Rui Vitória. Não perdeu a noção básica do futebolista com obrigações específicas a cumprir mas, por fim, acrescentou à atitude geral paixão, compromisso, orgulho, arrogância, fúria e demais argumentos bélicos sem os quais é difícil (impossível, em determinados momentos e contextos) triunfar. Numa actividade criativa, geradora de emoções extremas, o artista não pode dar por concluída a tarefa sem ir ao fundo de si próprio; está proibido de assumir a atitude mercantilista da indiferença face ao espectáculo e às necessidades da equipa; tem de ser cúmplice de milhares e milhares de pessoas cuja felicidade depende em parte do seu esforço e lutar como operário enquanto não recebe a visita da inspiração.
Rafa está a transformar-se num dos maiores desequilibradores do futebol benfiquista. Cumpre agora a perspetiva de um futebolista talentoso, explosivo, sacrificado e perfeito gestor da velocidade supersónica. Mantém debilidades à medida que se aproxima da baliza (fica ansioso, confuso, impreciso, às vezes até assustado com lances que ele próprio cria) mas encontrou motivação para responder a quem ainda se divide entre considerá-lo craque ou bluff; às ou duque; peça preciosa para o último troço da época ou simples cumpridor de missão passageira. O modo como se tem exibido; o peso relativo na equipa e a expressão regular de um futebol vertiginoso, vertical, associativo e de sucessivas explosões individuais, resgataram a esperança à volta de um jovem (24 anos) com muito para dar ao futebol português.

Bas Dost não é só estatística
Os números não mentem: é um dos jogadores mais valiosos da Liga Bas Dost é a expressão máxima do processo ofensivo leonino. E em causa não está apenas a eficácia que revela – em Chaves entrou aos 56 minutos e aos 62’ estava a fazer um golo que "nenhum outro avançado do Sporting faria", Jorge Jesus dixit. O holandês é inteligente nas movimentações, aprimorou a técnica individual e aumenta a possibilidade de êxito de toda a equipa. Em suma, é um grande jogador.

Clemência para o réu Brahimi
O futebol pode ser muito ingrato para com jogadores em estado de graça Brahimi falhou o penálti em P. Ferreira e, se era para isso, foi bom que tivesse sido ele: não há outro jogador do FC Porto com tantos argumentos para reclamar a clemência do tribunal azul e branco. O argelino é estrela absoluta da Liga e a principal figura de uma equipa que tem dado permanentes satisfações ao espectáculo. Estatuto que não sofre contestação só porque foi o réu mais visível de uma derrota.

As dificuldades de André Gomes
Viver acossado pelos seus próprios adeptos é um caso de dificuldade extrema André Gomes lançou o apelo pungente de que está a viver um inferno como jogador do Barcelona. Ninguém foi apanhado de surpresa – a maior estranheza foi ser uma reacção tardia a algo que já tem meses. Mesmo defendido por treinadores e companheiros, a maior dificuldade da impiedade revelada por adeptos e até jornalistas é a relação com o jogo: desarticula o que pensa, vê e executa. É um jogador em dificuldades."

Extraordinário Camacho Vieira

"Partiu ontem desta vida, aos 93 anos, Augusto Camacho Vieira, médico, fadista e ser humano excepcional. Em Camacho Vieira, mais do que chorar a morte, há que celebrar uma vida preenchida e inspiradora, que pode e deve servir de exemplo, em todas as eras, muito particularmente nestes dias de terra queimada por que passa o futebol em Portugal.
Tive o privilégio de me cruzar com o doutor Camacho durante muitos, e muitos anos, no Belenenses e nas Selecções, e dele recolhi exemplos de humanidade e solidariedade, que procuro, ainda hoje, na medida das minhas insuficiências, emular. Cirurgião ortopédico que marcou uma época e intérprete aplicado do fado de Coimbra, creio não lhe fazer nenhuma injustiça se disser que não será por nenhuma dessas facetas - uma e outra relevantes nas respectivas áreas - que será principalmente recordado. Melhor do que umas mãos de gelo ou uma voz de cristal, era o seu coração de ouro, a disponibilidade para ajudar, uma forma de estar simples, de quem tinha bem estar financeiro e reconhecimento profissional e mesmo assim se comportava com a humildade apenas ao alcance dos verdadeiramente grandes.
Atrevo-me, com afecto, a recordar um episódio que vivi com Camacho Vieira. Estava eu a cumprir a recruta nos Comandos quando, na prova de fogo, em Santa Margarida, lesionei o joelho. Vim para Lisboa e na observação o doutor Camacho fez-me um teste e eu senti uma dor lancinante, ao que ele me disse, com um inimitável sentido de humor: «É menisco. Se não estava partido, agora está...» Operou-me um mês e meio depois eu estava a jogar. Até qualquer diz, doutor..."

José Manuel Delgado, in A Bola

Cronómetro, substituições volantes e médicos na relva – três dicas para acabar com o antijogo

"O tema não é novo. Não é de hoje nem é de ontem. É de sempre.
As práticas que visam a perda de tempo existem desde que o futebol existe. São um subterfúgio usado há muito pelas chamadas equipas pequenas, face ao poderio colossal das ditas grandes. Mas não só.
Não raras vezes também as equipas mais poderosas sentem necessidade de recorrer a esta “táctica”, quando um adversário, ainda que de estatuto desportivo inferior, esteja em vias de colocar em risco um resultado que pode deitar tudo a perder.
Na verdade, não deve haver uma única equipa, treinador ou jogador que já não tenha sido vítima desta estratégia, tal como não existirá seguramente nenhum profissional que já não tenha recorrido a ela, em nome de uma conquista importante ou de um pontinho precioso.
Sejamos sinceros e olhemos para esta questão com a distância e razoabilidade que ela merece: o antijogo é um problema sim.
É um problema amplo, global, transversal. É um problema do futebol, de todo o futebol e não da equipa que hoje perde ou daquela que amanhã não ganha.
Temos um defeito, todos nós. Somos dados a questões casuísticas. Temos visão curta, balizada por circunstâncias momentâneas, por impulsos emotivos.
Olhamos para temas estruturantes não porque eles mereçam ponderação profunda, mas porque eventos recentes o tornaram visível. Censurável. Condenável.
Quando ele esgota (e esvaziamos balões tão depressa quanto os enchemos), arranjamos outro que nos entretenha.
É fundamental que se perceba, de uma vez por todas, que há questões que impõem outro tipo de reflexão. Uma reflexão distante de cores, de emoções e de circunstancialismos.
Uma reflexão séria que, mais do que apontar o dedo e encontrar culpados, foque na solução. Acrescente valor à discussão.
Deixem-me que vos diga com a sinceridade de quem lá esteve anos a fio: é realmente inconcebível que o futebol tenha chegado ao ponto de ter apenas quarenta/quarenta e cinco minutos de jogo útil, num universo de noventa ou noventa e cinco minutos possíveis.
É inconcebível.
Se é verdade que um árbitro – a quem tudo isto angustia em campo - pouco pode fazer (a não ser aumentar a prevenção e antecipar o rigor disciplinar), não deixa de ser igualmente verdade que há muitas outras formas de eliminar este problema sem retirar brilho, qualidade e dinâmica ao jogo.
E acreditem… este é o momento certo para “forçar” a mudança.
Nunca como hoje o IFAB (International Board, responsável máximo pelas alterações às regras do jogo) esteve tão receptivo a incrementar medidas que favoreçam o espectáculo. A prova é que depois de dezenas de anos trancado numa redoma de ultraconservadorismo, decidiu abraçar em grande a nova era no futebol. Houve finalmente sensibilidade (e inteligência) para perceber que o mundo modernizou e que o jogo dos jogos evoluiu a todos os níveis.
Prova disso é a recente inclusão da vídeo-tecnologia como parte integrante das leis (realidade a efectivar-se a partir do próximo Mundial, na Rússia).
Mas há mais.
Desde 2017 que o IFAB estuda, em conjunto com painéis de peritos espalhados pelo mundo, um conjunto de soluções que visem beneficiar o futebol. A ideia é recolher as suas sensibilidades, pegar nas suas ideias e testá-las ou, se for caso disso, inclui-las nas regras, no máximo, até 2022. 
Adivinhem quais são dois dos assuntos que estão em cima da mesa? Exactamente.
– Medidas para combater as perdas de tempo e aumentar o tempo efectivo de jogo.
Isto sim, é reflectir a sério.
Querem a minha (modestíssima) opinião? Aproveitem a boleia.
Juntem-se, discutam o assunto numa espécie de task-force e façam algumas sugestões com cabeça, tronco e membros, a quem de direito.
Diz-me a experiência que esta questão jamais se resolverá pela mudança de atitude de quem está no terreno de jogo. Não há má vontade, obviamente. Apenas a necessidade de sobreviver perante um mar imenso de dificuldades, esticando ao máximo a letra e espírito da lei.
Por isso, se querem propostas, deixo-vos com duas ou três mais radicais:
1 – Cronometragem de tempo útil de jogo (ou, pelo menos, dos últimos dez, quinze minutos de cada partida);
2 – Substituições volantes (supervisionadas pelo 4º Árbitro, sem que fosse necessária a interrupção da partida, com a excepção das trocas de guarda-redes);
3 – Assistências médicas em campo (sem que o jogo tivesse que parar, menos em lesões consideradas graves), como no râguebi.
Por muito “à frente” que possam parecer, não são de minha autoria nem são novas.
O desporto há muito que inventou estas soluções para impedir a batota e dinamizar o jogo. Para aumentar a qualidade, justiça e emoção do espectáculo.
Futsal, râguebi ou basquetebol são apenas três de várias modalidades que muito poderiam ensinar ao futebol.
A paragem do tempo de jogo (de cada vez que uma bola estivesse fora ou quando a partida estivesse interrompida) traria vantagens imediatas: terminaria com qualquer perda de tempo deliberada (seria inócua) e aumentaria substancialmente a sensação de justiça e verdade desportiva: todas as equipas, em todas as jornadas de todo o campeonato, teriam em cada jogo o mesmo tempo para ganhar. Para serem melhores. Para marcarem a diferença.
Equidade pura.
Enquanto esta (ou quaisquer outras alterações de fundo) não surgirem, vamos enterrando a cabeça na areia e falando das coisas do dia-a-dia, como se isso fizesse bem ao jogo. Como se isso resolvesse alguma coisa.
A estratégia pode saciar a gula do adepto, aumentar pontualmente as audiências das televisões e aconchegar o coração de quem se sente prejudicado… mas não resolve.
Queremos fazer parte eterna do problema… ou ser pioneiros na busca da solução?"

Não vou ser como a toupeira

"É com muito desconforto e ainda mais tristeza que tenho assistido à sucessão de casos envolvendo o meu Benfica. Como adepto e sócio vai para 40 anos, espero que tudo o que tem sido publicado seja falso e, se assim for, que a justiça tenha mão pesada para com os difamadores. Contudo, sei também demasiadamente bem que o tempo da justiça é exasperadamente lento e não compatível com o ritmo mediático e político. Mais, os riscos de comentar investigações que deveriam permanecer em segredo de justiça e cujos contornos nunca conhecemos na plenitude são, invariavelmente, muitos. Espanta-me sempre a facilidade com que tantos dão esse passo com ligeireza, mesmo que o tema seja futebol (por definição, território de paixões irracionais).
Nada disto me impede de reconhecer a relevância das suspeições que recaem sobre o Benfica. Como benfiquista devo, aliás, acrescentar que sou totalmente insensível a uma linha de resposta que assenta em cavalgar notícias que procuram alimentar suspeições relativamente a Porto e a Sporting. Imagino que, no meio do surto de insanidade mental que tem varrido as discussões em torno do futebol português, este lançar de lama sobre todos diga muito a alguns. A mim, diz-me pouco e tenho muita dificuldade em compreender como é que são os próprios clubes que dinamizam estas campanhas, diminuindo o valor do negócio de que dependem. Do Benfica só quero respostas cabais e que garantam que nenhum ato ilícito foi praticado por quem tem responsabilidades temporárias no clube, convém nunca esquecer, por vontade soberana dos sócios.
Ao contrário do que se passa e passou noutros clubes, tenho a convicção de que, no Benfica, se e quando forem deduzidas acusações (enfatizo o "se"), os sócios terão o discernimento suficiente para avaliar o conteúdo das mesmas e saberão defender a instituição, protegendo-a de todos os que a possam ter manchado. No Benfica, estou certo, não teremos a triste unanimidade que, ainda hoje, se vê noutros clubes – em que não se ouve uma única voz a criticar dirigentes que há muito deveriam ter sido varridos do futebol. Há juízos morais que podem e devem ser feitos, para além dos bloqueios processuais.
Já não restam dúvidas de que se está a passar no futebol um processo similar ao que varreu a política e o sistema financeiro. O Ministério Público passou a investigar o que sempre foi tolerado e, pelo caminho, comete muitos atropelos processuais, aos quais soma vários equívocos substantivos. Devemos lamentar-nos das violações gritantes do segredo de justiça, da forma como a culpabilidade é construída na praça pública e do modo como indícios sérios convivem com suspeições ridículas, que não resistem a nenhum teste elementar. Mas, não tenhamos, contudo, dúvidas: nada vai ficar como antes no futebol português."

Limites

"Vários jogadores têm vindo a revelar a dureza e o desgaste psicológico causado pelo exercício da profissão, seja por factores internos relacionados com a pressão própria da competição desportiva, seja por factores externos, e tantas vezes incontroláveis, que surgem na envolvência do dia a dia, na relação com os colegas, treinadores, dirigentes ou adeptos.
Per Mertesacker, um dos capitães do Arsenal, revelou, aos 33 anos e em final de carreira, sofrer de enorme ansiedade antes dos jogos, o que o leva à indisposição física. Apesar do sucesso individual, desfruta cada vez menos da profissão. Outro exemplo de enorme desgaste psicológico e emocional foi relatado pelo André Gomes, que perante o descontentamento e a crítica fervorosa dos adeptos do Barcelona, o tem levado a duvidar de si mesmo, a um certo isolamento. Há pouco tempo conhecemos, também, o caso do judoca Célio Dias, que afectado por doença mental, no caso diagnosticada, tentou o suicídio por mais que uma vez.
A saúde mental no desporto continua a ser menorizada. São poucos os jogadores que expõem as suas dificuldades, menos ainda os que procuram algum tipo de apoio especializado. Consciente desta realidade, o Sindicato desenvolveu um projecto que se encontra em fase de implementação, e pretende responder ao sofrimento escondido de muitos atletas.
A exposição mediática do jogador e pressão constante ajudam a compreender os riscos relacionados com perturbações psicológicas, manifestadas de inúmeras formas como a dificuldade em dormir, as adições, a ansiedade incontrolável, o descontrolo emocional, que afectam as relações pessoais e profissionais. A formação integral do atleta, desde a construção da identidade pessoal ao pós-carreira não pode ignorar este tema."

Mil-folhas de «fake news» (receita para dez milhões de pessoas)

"Esta semana na nossa improvisada rubrica «Com Papas e Bolos…» ensinamos-lhe a cozinhar «fake news», um mil-folhas que é a sobremesa ideal para afrontar notícias bem apuradas e acusações com sustento.
Ingredientes:
Denúncia anónima
Testemunhos duvidosos
Blogues
Redes sociais
Tempo de antena
Papel de jornal
Fermento
Farinha
Gelatina
Canela e açúcar q.b.
--
Modo de preparação:
Coloque uma denúncia anónima numa plataforma digital, passe-a por blogues e coe tudo nas redes sociais.
Junte o preparado num recipiente, adicione fermento, bata as suspeitas até ganharem consistência e deixe ferver em banho-Maria.
Em seguida, deposite-o numa forma coberta com papel de jornal e polvilhe com farinha. Adicione uma ou duas medidas de descaramento e leve ao forno previamente aquecido com tempo de antena. 
Noutro tabuleiro, unte bem um personagem obscuro e de perfil duvidoso pincelando os seus testemunhos com generosas doses de credibilização. Triture bem a honorabilidade e profissionalismo de um punhado de futebolistas. Se possível, junte uma porção de imagens manipuladas, mesmo que já estejam fora do prazo de validade.
Mexa tudo muito bem, até deixar a audiência confusa. Junte folhas de gelatina para que a miscelânea ganhe a firmeza possível.
Como a montagem das «fake news» é um processo delicado, tenha particular atenção a este passo: por cada camada de denúncia anónima sobreponha uma declaração do personagem sinistro. Repita o método até confeccionar várias camadas.
No final, acrescente um pouco de boataria a gosto e adicione açúcar e canela q.b. para enfeitar. Leve o preparado ao frigorífico e deixe arrefecer até solidificar no subconsciente dos adeptos. Dê a provar a especialistas, para validar a receita.
Por fim, sirva o seu mil-folhas de «fake news» a todos, de modo a intoxicar a opinião pública a seu bel-prazer."

Serena Williams acredita no estatuto de super-mãe

"‘Quero muito ganhar mais Grand Slams. Estou consciente dos recordes. Não é segredo que tenho como objetivo os 25’, Serena Williams.

Serena Williams não gostou seguramente de ter sido apresentada na gala do Tie-break Tens, na passada segunda-feira, em pleno Madison Square Garden de Nova Iorque, como «uma das melhores jogadoras de todos os tempos».
Uma das melhores? Na cabeça da norte-americana de 36 anos não há dúvidas: ela é a melhor de sempre.
Mas tal como na criação de Uderzo e Goscinny há uma irredutível aldeia gaulesa a impedir o império romano de conquistar toda a Gália, também os 24 títulos de singulares do Grand Slam de Margaret Court representam aquela pedra no sapato de Serena, aquilo que faz com que ainda nem todos a proclamem a GOAT.
Serena conquistou o seu 23º Major em Janeiro de 2017 e não mais jogou desde então em provas oficiais, pois competiu nesse Open da Austrália grávida de Alexis Olympia, um feito notável e inédito mas quase equiparado, uma vez mais, pela persistente Court.
Fala-se pouco disso, mas a agora reverenda pentecostal Margaret Court disputou grávida o torneio de Wimbledon de 1971 e foi à final!
Serena Williams regressa à competição no torneio de Indian Wells, na Califórnia, que arrancou há três dias, e os seus objetivos são claros, como confessou há pouco tempo numa excelente entrevista à revista Vogue: «Quero muito ganhar mais Grand Slams. Estou consciente dos recordes. Não é segredo que tenho como objectivo os 25».
Não lhe chega igualar Court, é imperativo ultrapassá-la e o seu treinador, o francês Patrick Mouratoglou, em declarações ao site da WTA (circuito feminino), alongou-se na mesma ideia:
«O objectivo de Serena para este ano é ganhar um Grand Slam. Há três Grand Slams ainda por jogar. Provavelmente veremos em Roland Garros a Serena no seu melhor nível».
Será a tarefa da mais nova das Williams impossível? Não, mas é hercúlea. Na história do ténis profissional só houve três jogadoras a vencerem títulos de singulares do Grand Slam depois de terem sido mães: Margaret Court (3 dos seus 24 Majors), Evonne Goolagong (2 de 7) e Kim Clijsters (3 de 4).
Serena garante que a filha poderá ser uma ajuda, por aliviar a tensão da competição e levá-la a relativizar os desaires. Será?
Se há alguém capaz de fazer esta quadratura do círculo é Serena Williams. Já superou situações bem mais difíceis como o assassinato de uma irmã, uma embolia quase fatal e um parto extremamente complicado.
Sinceramente, não estou à espera de vê-la regressar tão rapidamente aos grandes êxitos após uma prolongada ausência do circuito como fizeram Rafa Nadal em 2013 e Roger Federer em 2017.
Mas espero estar enganado. Serena Williams merece."

Os velhos e o desporto

"Velhos são os trapos diz o povo, mas sinto-me mesmo velho. As juntas não me dão sossego. Dói-me principalmente a do joelho esquerdo que torci há anos num jogo de bola entre solteiros e casados. Naquela altura ainda era casado e vivia na paz do Senhor com a minha saudosa Maria, agora divido a minha jornada entre o lar e a faculdade da educação física e do desporto e à noite lá vou até casa da minha filha que me dá a janta e a cama quentinha. Também malfeito fora, pois se ela é alguém na vida a mim o deve que trabalhei como um mouro para ela tirar o curso de professora primária. Trabalhei tantas noites, até às tantas, para lhe poder pagar os estudos pois o meu ordenado de fiel de armazém dava só para o essencial.
Já vou nos 78 anos e, tirando umas maleitas sazonais, não me posso queixar da saúde. Há uns tempos, apareceu no lar de dia uma professora de ginástica que trabalha na tal faculdade a convidar todo o pessoal do lar para entrar voluntariamente num programa para a terceira idade. Muitos não foram porque gostam mais de passar o tempo na má-língua, a ler ou fazer bordado e a ver televisão que consomem como uma droga alucinogénia que lhes preenche as manhãs e tardes e os transportam do riso ao choro, da raiva ao contentamento, da partilha à rejeição. Cá para nós que ninguém nos ouve, os meus parceiros do lar já eram velhos no intelecto antes de o serem na idade. Dizem não ao telejornal das 8 da noite porque é só desgraças; rejeitam os filmes porque a maioria sacraliza a violência, mas ingurgitam-se de telenovelas e big brothers, demitindo-se do ato de reflectir e assumir que a violência e a desgraça são feitas pelo mundo e que perceber o mundo é percebermo-nos a nós. Como fui pouco formado nas coisas da cultura hoje bebo-a como um néctar precioso e, tirando os dias de futebol em que aí vou a todas, estabeleci um pacto de fidelidade com o Canal 2 que me faz acreditar que existe um mundo mais válido que as lamechices telenovelescas. Deito-me cedo, normalmente depois do telejornal das 22h00 do canal 2.
Eu gosto de me deitar cedo para cedo me levantar porque é muito bom estar mais tempo sem fazer nada, para compensar o tanto que trabalhei toda a vida. Agora o levantar cedo já tem outra finalidade – ir fazer ginástica para a faculdade. Somos muitos e, logo de manhã, encontramo-nos no bar para acedermos às novidades. Eu cá por mim frequento a faculdade mais para conviver com as pequenas da minha idade que também lá andam, por sinal bem jeitosas, do que pela canseira da ginástica que pouco me interessa. Eu ando lá mais para fazer o favor à professora que foi ao lar convidar-nos, por sinal de extrema simpatia, que pelo desejo de fazer ginástica e aquela marcha muito direita que nos põem a fazer. Direitinho ando eu na rua que foi sempre coisa que me preocupou pois a espinhela direita não só nos faz parecer mais altos como nos dá um ar de valentão com coragem para olhar a vida de frente. Vivi, tempos largos, com acentuada curva dorsal de medo e subserviência, mas agora, depois do 25 é andar direito e fé no futuro.
As senhoras professoras tratam de nós com todo o carinho; medem-nos, tomam-nos o pulso, metem-nos em máquinas, dão-nos conselhos, enfim, nunca me senti tão importante, sou o centro das atenções das professoras e de umas meninas mais novas que não devem ser professoras, serão talvez alunas, mas também muito atenciosas. A faculdade é muito linda e espaçosa. Nas manhãs, nos dias em que não há aulas, é só para nós. Sentimo-nos os donos de todo aquele espaço. Talvez as professoras, se quisessem, poderiam fazer o mesmo trabalho que fazem connosco, com os meus netinhos que bem precisam pois lá na escola onde andam fazem uma ginástica assim para o bruto e muitas vezes aparecem magoados em casa pois a escola não tem condições nenhumas; fazem ginástica numa espécie de barracão ou no recreio ao ar livre que não tem também grandes condições. Além disso a professora primária, por mais que se esforce, não tem obrigação de saber muito sobre educação física e o espaço exíguo que tem para fazer a ginástica possível com os miúdos também não augurará grandes resultados. A faculdade onde ando é que deveria pegar nos miúdos da escola primária e fazer com eles os mesmos números que fazem connosco que eu penso que teriam mais validade pedagógica e importância social. Mas pronto, as senhoras professoras querem-nos a nós. Elas avaliam-nos tudo procurando não sei o quê, talvez a alma, mas essa está mais funda e não é possível de medir com aqueles aparelhos. Li há dias num livro muito bom, a leitura é um dos meus passatempos preferidos, que “as portas da emoção só se abrem por dentro”, o que deve querer significar que todos os investimentos que fazemos na vida, mesmo a ginástica, para terem significado devem tocar-nos a fímbrias da emoção, da inteligência e da sensibilidade.
Nas aulas de ginástica, em alguns exercícios, as minhas colegas queixam-se com dores tentando fugir à dureza do exercício. As professoras caem no logro e param logo de exigir a realização dos exercícios mais difíceis e custosos. Não estou de acordo. Se o desporto nos deve tocar a emoção também nos deve exigir a superação, mesmo com alguma dor. Já dizia o filósofo Schopenhauer que o sofrimento é o cavalo que nos leva mais rapidamente à perfeição. Não sei se é uma verdade absoluta pois sofrimento em demasia provoca feridas profundas difíceis de curar e tornam-nos a alma menos flexível com as cicatrizes decorrentes; para dureza, na nossa idade, já chega a rigidez das articulações. Mas um pouco de dor nas aulas de educação física não faz mal a ninguém já que essa dor nos liberta das limitações impostas pela nossa motricidade anquilosada por tantos anos de hipocinésia.
Todos os dias somos medidos, remedidos e adestrados para que as coisas aconteçam como eles e elas querem. Umas voltas à pista, ou a espaços que fazem as vezes da pista se estiver a chover, e eis-nos mais capacitados aerobicamente o que se reflecte em respirações mais profundas e menos cansaço nas pernas. Eu, pouca melhoria sinto, pois, por minha própria iniciativa, todos os dias marcho mais de uma hora; em alguns dos trajectos subo ruas bem íngremes e, portanto, já sou aquilo que se pode considerar um atleta. Sim, sinto-me um atleta, pois com esta idade ainda faço ver a muitos jovens que passam o dia frente ao computador e estão gordos como leitões pré-açougue.
A faculdade investe em nós com carinho humano indesmentível e um sentido de missão assente na concepção de que os idosos merecem qualidade de vida. Lá isso merecemos, quase todos. Eles cientificam o nosso ser e fazer para mostrar ao mundo as nossas maleitas, para descobrir os limites da nossa treinabilidade, para provar que investir na educação física e desportiva é um meio de senão erradicar pelo menos atenuar a doença e a incapacidade. No entanto, penso que deveriam investir mais nas crianças e jovens. Ninguém pega nas crianças naquela faculdade. Em nós sim porque somos aquilo que eles denominam amostras fáceis. Amostras? Faz-me lembrar aquelas tiras pequenas de fazenda que me mostra o alfaiate para selecionar o tecido para o fato. Eu cá não quero ser amostra; quero ser um produto acabado, pleno daquela inteireza inquebrantável que faz cada um ser um. Eles, por muito que tentem, não me conseguem avaliar na realidade, mas julgam que sim. Primeiro porque existe uma impossibilidade prática de medir com precisão absoluta, depois, porque avaliando-me com as limitações referidas, na realidade eles não conseguem estabelecer teorias claras acerca de mim porque eu estou sempre a mudar, não nos valores, mas na forma como a vida me molda e como eu torço a vida. É fácil fazer estudos connosco e com os ratos também. Estes então ainda estão mais disponíveis, replicados como clones e certinhos como relógios suíços. Velhos e ratos, amostras fáceis. Estes por condição genética, aqueles por predisposição social. Nós, os velhos, estamos disponíveis porque temos muito tempo para fazer nada. Como temos todo o tempo do mundo, eles chamam-nos um figo, e escalpelizam-nos o corpo procurando encontrar as direcções da vida, o seu sentido evolutivo que no nosso caso é mais degenerativo. Só que eles não sabem que quanto mais envelheço no corpo mais profundo e evoluído me sinto na alma.
Se eu procurasse um sentido de realização existencial através do desporto e da educação física tenderia a suicidar-me rapidamente pois os limites da minha fisicidade não permitem voos libertadores. Estes, encontro-os nas memórias que vou escrevendo e na arte dos outros. Música, cinema, teatro, leitura são as vitualhas da alma nesta fase final da minha vida. Aí, mais de que andar às voltas numa pista, encontro o alimento para a fome insaciável que me aflige e que criei nos tempos em que tinha de me levantar às seis da manhã para jornadas inclementes de trabalho. Tempo de dificuldade e míngua de cultura que vinha do berço pois nunca vi um livro entrar em minha casa. É fácil ser culto quando se nasce num lar repleto de livros e conversas evoluídas. É tarefa hercúlea ser culto quando se nasce no meio de tojos, cardos e fome. Hoje sinto a falta dos livros que não li. Tento agora recuperar. Esta coisa da cultura, ao contrário do desporto, não tem hora marcada. No desporto, ou começamos cedo, ou tarde já pode ser tarde. Hoje não posso encontrar sentido para a vida através do desporto porque não tenho raízes que me prendam a ele. Não por minha culpa, mas porque assim aconteceu.
Hoje sou amostra para a ciência. Mas que ciência se pode fazer com as cartilagens gastas, os ossos fracos e o corpo anquilosado. Este, pede-me mais sofá que desporto, embora o desporto seja uma boa forma de tornar o sofá mais agradável. A qualidade de vida na velhice prepara-se na juventude e não quando o corpo pede descanso. Porquê assim? Porque o desporto não é uma coisa meramente física, antes pelo contrário, está completamente penetrado por valores, entre os quais se salientam os valores de entrega a projectos de realização humana total. Como eu invejo aqueles velhos, alguns mais velhos do que eu, que sempre foram desportivamente activos e continuam, depois dos 80 anos, a ir a Fátima de bicicleta ou a fazer os caminhos de Santiago com uma mochila às costas. Eu, como cheguei tarde a estas coisas só dá para fazer os números da faculdade e a marcha regular diária que faço, faça sol ou chuva.
Para azar meu saí cedo da escola porque as urgências da vida não davam para educações prolongadas. A educação física que tive, tive-a no armazém, com os fardos às costas porque as máquinas carregadoras chegaram muito tarde. Assim, em vez de educar o corpo deseduquei-o, pois, apesar de ter sido sempre forte não raras vezes fui ao endireita para resolver problemas nos ossos e articulações. Hoje há ergonomias que estudam o movimento humano no trabalho quando, de físico, o trabalho actual tem pouco. Ergonomias, precisava eu no meu tempo para me proteger contra as cargas excessivas que levantava. Não tive educação física na escola primária porque mesmo para a secundária as coisas eram difíceis. Ainda me lembro que os professores de ginástica daquele tempo eram médicos, militares e até um estudante de engenharia de minas foi professor de educação física na escola secundária da minha terra.
Depois não havia controlo algum sobre o ato de ensinar. A inspecção de ensino não funcionava e reinava a impudícia e bandalheira no reino da docência e principalmente no ensino das coisas do corpo em acção e movimento. Depois os colegas demitiam-se do ato de denúncia. Tempos de demissão aqueles, em que o sentido de responsabilidade era substituído pelo medo atávico de fazer ondas, evitando pôr em causa os bandalhos da coisa pública. Naquele tempo, um professor que foi colocado na escola secundária era simultaneamente o treinador da equipa de futebol. Pois bem, através de algumas prendas ao contínuo das instalações desportivas, na segunda-feira assinava as aulas todas da semana e ia à sua vidinha para as futebolices. O contínuo, bem afinado pelo diapasão da rebaldaria, dava a bola às turmas do referido professor e a aula acontecia, como soía dizer-se nas pseudo-pedagogias da demissão. A aula acontecia através do livre arbítrio dos alunos, aqueles que aderiam à denominada “pílula inócua da pedagogia libertária”, vulgo futebol, e que correspondia a metade da turma. A outra metade ia para o café jogar bilhar e puxar umas fumaças.
Mas voltemos à minha saga desportiva na faculdade. Sinto-me um pouco como aquelas embalagens de usar e deitar fora. Andamos nestas aventuras das medições e exercício e depois descartam-nos como materiais recicláveis. Reconheço que tem de ser assim senão a faculdade transformava-se num lar imenso da terceira idade. Ao menos os ratos ocupam menos espaço e são mais dóceis e obedientes aos comandos. Por falar em ratos, há uma dúvida que me remexe nas meninges. Será que as investigações que se fazem nos ratos se podem extrapolar para os humanos? Será que os estímulos que agridem a mitocôndria ratóide agridem de igual forma a mitocôndria do homem? Eis um conundrum que não consigo resolver. Mas uma coisa eu tenho como certeza adquirida, a dificuldade de investigar no rato as qualidades bioquímicas, imunológicas, fisiológicas e motoras que expressam as competências para subir montanhas, descer rios, marcar golos e bater recordes. Embora seja leigo nas matérias da ciência, tenho para mim que a excelência e os limites das várias performances humanas só podem ser compreendidos através de estudos com seres humanos. Só que estes, muitas vezes, não são amostras fáceis e disponíveis.
Ratos são ratos e homens são homens, embora haja muitos destes a viver na condição daqueles. Isso são contas de outro rosário que nos levam aos limites de inumanidade em que o homem perde a sua dimensão gregária e axiológica e se transforma em rato ou lobo (homo homini lupus). Há dias, num programa televisivo de divulgação científica a que usualmente assisto, falavam da validade ecológica da investigação científica. Diziam que se faz muita investigação que não tem grande valor porque é restrito o campo da sua aplicação. Investigar só por prazer. Mas se é por prazer que paguem as custas os investigadores e não o erário público. O problema é que se faz muita investigação sem validade ecológica. Falaram acerca da famosa talidomida, substância com efeito sedativo, anti-inflamatório e hipnótico que se receitou a mulheres grávidas para combater os enjoos e mal-estar geral. A droga tinha sido testada em ratos e os resultados eram promissores. Só que nas mulheres a coisa deu para o torto devido aos efeitos teratogénicos da droga que inactiva a enzima cereblon, importante nos primeiros meses de vida para a formação dos membros. Começaram a nascer bebés com más formações (focomielia) durante um tempo prolongado até se associar a droga ao problema.
Ao homem o que é do homem, ao rato o que é do rato. Se um dia se promoveram os Jogos Olímpicos da rataria, eu até aceito que se invista na investigação nesses animais no sentido de tentar que um rato português ganha a prova de corrida ao queijo, de preferência da Serra. Lá estou eu a brincar com coisas sérias. Peço desculpa aos meus eventuais leitores, mas tenho uma costela para o humor e o riso, embora seja no sorriso que mais preencho as coisas da alma. É lógico que gosto das aulas de ginástica que faço na faculdade, mas a parte física dessas aulas eu facilmente a substituo com as minhas caminhadas higiénicas; agora a parte da convivialidade é que é, para mim, importante. No convívio com os outros rio e brinco e sinto a vida mais repleta de significados. Na minha idade, fazer ginástica é o meio para atingir o fim; o fim são relações humanas saudáveis que anulem, ou pelo menos atenuam, a solidão que muitas vezes sinto. Não penso que as aulas me dêem uma pulmadura mais aeróbica e uns ossos mais rijos, penso que já é tarde para isso; dão-me, no entanto, a vontade de sair do casulo protector mas redutor do centro de dia e procurar âncoras relacionais que me permitam sentir mais vivo.
Nesta idade importa menos viver muito tempo e importa mais viver melhor. E melhor, é estabelecer laços de amizade com aquelas e aqueles meus coetâneos, e com eles partilhar as experiências individuais do nosso viver colectivo num país que ajudamos a crescer. Sim, tudo aquilo que uma geração usufrui é fruto inequívoco dos investimentos das gerações predecessoras. E se hoje exijo viver com dignidade os meus tempos de velhice não é por auto-comiseração, mas sim por direito inalienável que ganhei no afã de uma vida melhor para os vindouros, no meu caso o vindouro foi a minha filha. Os cuidados que ela e a sua geração têm para comigo e os meus iguais são o ponto de partida duma ética sociológica que cada geração deve assumir em relação às suas predecessoras, criando assim os laços duma solidariedade inter-geracional que é o cunho mais belo duma sociedade evoluída.
Mas regressemos às minhas aulas de ginástica que eles chamam de educação física. Sim, porque o corpo educa-se, embora o meu de tão mal-educado que está, nem com palmatória recupera do atraso educacional que os fardos do armazém provocaram. Diz o meu genro que a educação física é a expressão física de um conceito de educação, cujo fim último é o pleno e total desenvolvimento do homem. Bonito. E perguntam vocês quem é o meu genro? É professor de educação física francês, filho de pais portugueses que emigraram nos anos 60 para os arredores de Paris. O rapaz tirou o curso no Institut Supérieur du Sport et Education Physique (INSEP) e que agora se denomina Institut National du Sport de l’Expertise et de la Performance. Segundo ele me conta, naquela escola dá-se formação aos futuros treinadores e professores de desporto, numa lógica que tem o desporto de alto rendimento como pano de fundo. Ali os grandes desportistas podiam conciliar as exigências do seu percurso desportivo como atletas e a preparação do seu futuro profissional, através duma formação técnica, pedagógica e científica enriquecida pelo contacto com os mais diversos modelos e metodologias de treino do mais alto nível de rendimento. Ao contrário da faculdade onde faço ginástica que de manhã está repleta de velhos, o INSEP ainda o dia é noite, já pulsa de vida com os atletas de várias modalidades desportivas a fazer o primeiro treino do dia, ainda antes do pequeno-almoço. Para lá de professores e treinadores, o INSEP ajudou a formar campeões de várias modalidades desportivas, tais como: Marie-José Perec (Atletismo), Florian Rousseau (Ciclismo), Amélie Mauresmo (Ténis) e, entre outros, o famosíssimo Tony Parker, basquetebolista de elite que brilha na NBA.
Penso que lá também estudam a mitocôndria, embora por aquilo que sei, investem muito mais nas coisas directamente relacionadas com o desporto utilizando os estudantes e os atletas como cobaias. Assim a validade ecológica é muito maior. Ao homem o que é do homem, ao coelho o que é do coelho. Falo do coelho, porque os estudos com a talidomida de que falei atrás, nas experiências com coelhas já permitiam detectar as más-formações dos fetos. Isto tem a ver com o grau de complexidade dos sistemas vivos. Aquilo que é verdade para um organismo vivo de elementar grau de complexidade, pode ser menos verdade ou até mentira para um organismo mais complexo. Isso só agora se começa a perceber. Não posso nem quero ser retrógrado. Muita da ciência que actualmente nos salva a vida teve e tem os roedores, coelhos, cães e macacos como tropas de choque na aventurosa guerra contra a doença. Sei-o muito bem e por isso eu e a humanidade lhes devemos estar gratos. Agora no desporto …. bem, no desporto, no meu modesto entender, a coisa é mais de homens e mulheres, em situações reais ou simuladas e menos de animais.
Muita investigação faz-se em animais por mero comodismo. A procura de amostras humanas é difícil e demorada e os senhores investigadores não se querem dar ao trabalho de, qual Diógenes Laércio, irem pelas ruas de Atenas à procura do homem. Mas têm mesmo de ir porque se a mitocôndria do rato resiste melhor ao stresse oxidativo com a ingestão de vitamina C, então, encontrem-se homens para fazer esse estudo com maior validade ecológica, e prática. Um rato, criado nas condições assépticas dos biotérios, termicamente neutras, nutricionalmente equilibradas, está muito, mas mesmo muito longe, do homem em situação e principalmente do guarda-redes de andebol. Esta é uma pequena maldade só entendida por iluminados e velhinhos como eu.
As ciências no desporto têm de ter um carácter aplicado. Têm de estar profundamente dirigidas para a acção, para a transformação de conceitos e comportamentos, principalmente dos professores e treinadores. Ciências aplicadas tout court. A ciência do desporto, quando se fecha no laboratório e se reduz à manipulação animal, pode ser muito profunda, mas tem reduzida validade social. Essa ciência compraz-se a olhar para o umbigo, citando os seus pares que os citam em feed-back quase instintivos, em círculo fechado sem qualquer pregnância sociológica. Faz-me lembrar aqueles grupos de teatro de vanguarda que exploram novas estéticas na procura do supremo inefável, mas que ninguém vê. Certo, descobrem novas formas para dizer os velhos conteúdos; são originais, mas, ou a mensagem é inteligível pelas gentes comuns ou então morrem à míngua de meios, vociferando tragicamente contra os poderes públicos que os abandonam.
Ratos e velhos. Quais terão maior validade ecológica? Dos ratos duvido; dos velhos ainda mais. Nós não podemos projectar futuro; nós somos o inexorável futuro dos outros. Nós somos o fim do homem e, se estamos maltratados, não são as mezinhas inócuas que eles nos propiciam, como a última refeição do condenado, que nos vão resolver os problemas herdados duma vida passada em durezas de sobrevivência. Eu deveria ter tido o discernimento, sei-o agora, para nos desvairados momentos da minha juventude e adultícia encontrar tempo suficiente para a minha saúde óssea, muscular, endócrina, fisiológica e através delas fortalecer a saúde vital que o trabalho escravo sonegou. A minha vida passada foi fundamentalmente negócio, negócio dos outros, com muito pouco ócio. Por isso, o futuro não deve ser perspetivado colocando a ênfase na resolução das insuficiências da minha geração, mas pela pressão incontornável do porvir dos jovens. Há dias, li nos jornais que o governo quer “mexer” no desporto escolar. Se fosse para melhorar tudo bem, mas parece que é para reduzi-lo, senão aniquilá-lo por meras questões economicistas. Os governantes quando pressionados pelas urgências dos défices financeiros transformam-se nuns néscios, e não se preocupam em hipotecar o futuro no afã de poupar uns tostões.
Não conseguem projectar no futuro as suas decisões. Poupam agora na educação física e desporto e pagam no futuro em morbilidade e despesas de saúde. Vai ganho que me dás perda. A pressão do imediato é sempre má em política e são raros o que saem da lógica dos clones partidários e têm visão de conjunto projectada no futuro. Desporto escolar, o santo Graal que urge redescobrir. O que temos tido até aqui é um arremedo de desporto escolar com periódicos momentos altos, mas sem um protejo firme que o defina e estruture como pedra basilar do desporto nacional. Vai funcionando com severas limitações, a mais gravosa das quais é a ausência de um projecto socialmente coerente.
Há dias, naquelas conversas profundas que tenho com o meu genro, também gostamos de futebol e anedotas, mas naquele momento foi assunto sério, ele esclareceu que com o movimento revolucionário de Maio 68, todos os alicerces da sociedade francesa foram postos em causa e principalmente a educação. A educação do corpo através da coisa desportiva então sofreu tratos de polé. Tudo o que fosse regra e auto-superação era de imediato apodado de cultura burguesa. Os efeitos desse espírito iconoclasta e libertário reflectiram-se negativamente no mundo da educação física e desportiva. O desporto era alienante porque tendia a reproduzir a lógica de exploração das relações de produção social. Foi o advento da pedagogia libertária que libertava o aluno dos constrangimentos impostos pelos saberes a adquirir, que dulcificava a dureza do ensinar e aprender, que colocava o aluno como centro motor do processo educativo e não como centro das preocupações pedagógicas. Assim, a aula acontecia. No campo da educação física e desportiva anularam-se os fundamentos do desporto como meio de educação em prol duma psicomotricidade que procurava em movimentos abstractos a realização do homem liberto das grilhetas exploratórias da sociedade burguesa. Foi um tempo de demissão do acto de ensinar, tudo valia no sem valor das pedagogias pseudorrevolucionárias e na recusa dos valores da sociedade através de slogans como “Corram camaradas, o velho mundo está atrás de vós”.
Ao recusar os axiomas do velho mundo destruíram os alicerces de uma educação física socialmente pregnante e de um desporto de elite fomentador de campeões. Ciceroniados pelo filósofo do existencialismo, Jean Paul Sartre, que recusou o prémio Nobel despeitado com o mundo burguês que o criou, os estudantes tentaram fazer a revolução através das super-estruturas noológicas. Ganharam no despertar das mentes, mas falharam no projecto libertário porque as revoluções fazem-se por dentro e não por cima. Depois dos tempos de demissão em que imperava a anti-regra de “a aula acontece”, as coisas recuperaram o seu sentido e ritmo normais e a França reestruturou uma educação física com alicerces mais sólidos, um desporto escolar realmente penetrante de todo o tecido social que rapidamente redundou num desporto pujante, auto-renovado, viveiro de campeões.
Porque se a educação física e desportiva é um hino ao corpo, em festa, humor, riso e alegria, também pressupõe, regra, suor, dor e superação. As grilhetas de corpos não funcionais só são abertas pela força do treino duro, seja na escola seja no clube. Paga-se um preço para se ser livre. Mas voltemos às minhas aulas na faculdade. Já disse e repito. As aulas para mim valem menos pelo ganho físico e mais pelo ganho relacional. Faz bem ao ego fazer parte de um projeto coletivo em que há respeito, preocupação e até amor. Sim, reconheço que existe uma preocupação verdadeira em nos estudar para dar melhores soluções aos alunos que vão trabalhar com os escalões etários integrantes da denominada terceira idade. É aquilo que podemos considerar as implicações práticas da investigação. Querem gastar tempo e meios connosco e com os doentes, está bem, gastem, mas não se esqueçam que o futuro do mundo está nas crianças. Por falar em doentes, além de nós os velhos-cobaias, pululam na faculdade todo o género de disfuncionalidades: eles são os enfartados cardíacos que procuram recuperar a muscularidade do miocárdio, eles são os diabéticos em tentativa muitas vezes frustre de recuperar o intercâmbio correcto do açúcar entre o fígado, o músculo e o adipócito, vias metabólicas esclerosadas por anos de desregramento nutricional, eles são os osteopénicos e os osteoporóticos que claudicam como moscas a quem se retirou as duas patas do mesmo lado. Está bem, todas estas populações têm certo interesse investigativo, científico, reconheço, “mas as crianças Senhor, porque Lhes dais tantas dores, porque padecem assim”. Esta é só para aqueles que conhecem o Augusto Gil e a sua balada da água condensada.
Existe uma educação física escolar primária e pré-primária esperando pela sua carta de alforria. Que fazer? Eis a famosa pergunta Leninista que determina o rumo a seguir depois da tomada do poder. O que fazer não sei porque não sou especialista em pedagogias infantis mas tenho a certeza, como contrabalanço aos esforços institucionais tidos com os idosos, se deve, de igual forma, investir na cientificação da educação física e desportiva das crianças e jovens, não através de perorações intelectualizantes demasiado teóricas, mas sim com didácticas plurais que abram campo à procura deste novo saber que embora não seja novo, sê-lo-á no âmago das preocupações formativas e investigativas da “minha” faculdade.
Que encham as salas e os corredores com crianças, barulhentas, vivas, questionantes, que vos colocam todos os dias novos desafios pois não são amostras fáceis, mas que se forem bem estudadas podem ser as amostras fidedignas para a determinação da importância da educação física na escola inicial e obrigar os governantes a olhar com sentido de totalidade as classes etárias que são o futuro do país. Para lá dos ratos, velhos e enfartados, existe um mundo vivo e fulgurante, constituído por crianças, jovens e atletas, que espera o crivo profundo da ciência e pedagogia."