terça-feira, 13 de março de 2018

Recusando a morte como Guimarães Rosa

"Há nomes que nunca deveriam cair na infâmia do esquecimento, Ribeiro dos Reis é um deles. Pai e filha. António e Margarida. O primeiro foi um homem vertical, revolucionário. Jogou no Benfica, foi treinador e presidente da Assembleia Geral. Em 1936, introduziu o WM nas primeiras categorias.

Gosto de escrever sobre gente que conheci bem. Mesmo que seja difícil. Porque corro o risco de não ser fiel à ideia inicial de isenção.
Mas o jornalismo não se faz apenas de factos, também precisa de sentimento. Por isso há reportagem e crónica, notícia e opinião.
Por isso lembrei-me da história do passarinho. Conhecem a história do passarinho? Conta na mesma. Conto-a sempre que posso.
No Rio de Janeiro do começo do século passado, Castelar de Carvalho era um estagiário de jornal que ansiava na redacção pelo momento de assinar a sua primeira grande reportagem.
De repente, deflagra um incêndio no centro da cidade e não há repórter experiente livre para cobrir o acontecimento. Castelar é enviado. Vai com a alma aos saltos de expectativa, sonha com as manchetes, mas descobre que o fogo era tão pobre, que se apagava a golpes de regador. Regressa ao jornal e escreve uma prosa de ir às lágrimas sobre um passarinho preso numa gaiola, impossibilitado de fugir às chamas.
No dia seguinte, todo o Rio de Janeiro chora com o drama publicado do passarinho, piando de desespero enquanto a morte demora a chegar. A reportagem é um sucesso! Castelar de Carvalho terá uma carreira brilhante. E dirá sempre a quem o que ouvir: 'Não há jornalismo sem passarinho'.
Hoje escrevo sobre Maria Margarida Ribeiro dos Reis.
E sobre António Ribeiro dos Reis, seu pai.
Margarida morreu há pouco tempo. Foi subdirectora e administradora da velha A Bola. A Bola de hoje esqueceu-se dela.
Os benfiquistas acostumara-se a vê-la na Luz, entregando Bolas de Prata.
O meu amigo Astregildo Silva, com quem trabalhei em A Bola, escreveu a biografia do tenente-coronel Ribeiro dos Reis: vale a pena lê-la.
Treinador só no Benfica
Ribeiro dos Reis foi jogador de futebol no Casa Pia. Entrou para o Benfica em 1913 - primeiras categorias, como se dizia à época. Era um homem de categoria, irrecusavelmente.
Cumpriu cargos: vice-presidente e presidente da Assembleia Geral. Um dos impulsionadores do processo de recolha de fundos para a construção do Estádio da Luz.
E treinador, claro! Só no Benfica, apesar de ter estado por diversas vezes na Selecção Nacional, inclusive fazendo parte da primeira equipa das quinas que defrontou a Espanha em 1921.
Ribeiro dos Reis experimentou o WM no Benfica em 1936, o ano dos Jogos Olímpicos de Berlim, o qual foi utilizado pelas mais fortes selecções da Europa continental. Foi revolucionário.
Desportista conceituado, profundo conhecedor das regras do jogo, homem de formação militar que lhe dava, igualmente, uma enorme base de estudo no desenvolvimento da educação física, era intocável na sua verticalidade. Repare-se na carta aberta que escreveu no dia em que abandonou de vez o cargo de seleccionador nacional: 'Os ardores da paixão nacionalista entraram em ebulição e por pouco não se foi, em romagem, cobrir de crepes a estátua de Camões ou a espada de Nun'Álvares. Diz-se que errámos, que o critério que seguimos não era o melhor. Atribuem-nos culpas do desastre que sofremos. Com essas culpas ficamos. Nunca enjeitámos responsabilidades nem é nosso propósito diminuí-las neste momento. (...) Mas, uma vez que se afirma que errámos, não temos o direito de persistir no erro. Por isso abandonamos o lugar, cedendo o passo a outros, mais esclarecidos ou mais criteriosos'.
Revelador.
Começou a ser jornalista no Sport Lisboa. Colaborou n'Os Sports, fundou A Bola com Cândido de Oliveira e Vicente de Melo: foi director durante dez anos.
Há nomes que não podem cair na ignomínia do olvido.
Ribeiro dos Reis é um deles.
Pai e filha.
Fui embora de A Bola antes da Margarida Ribeiro dos Reis ter vendido as suas quotas e ter abandonado o jornal que o seu pai fundou. No dia em que decidi que não havia mais lugar para mim nas Cinco Letras Mágicas, tivemos uma conversa longa, longa. Sabíamos que era um adeus.
Morreu em Janeiro.
Ainda bem que Guimarães Rosa não deixa que as pessoas morram - dizia: 'Não morreu, Encantou-se!'
Encantou-se em Janeiro, portanto.
Vinicius diria: 'Como era margarida, despetalou-se...' "

Afonso de Melo, in O Benfica

Carrega, Benfica

"Uma enchente aguardava a comitiva 'encarnada' no Rossio, os adeptos levaram os jogadores em ombros até à Secretaria.

Os adeptos do Benfica têm a particularidade de, mais do que acompanhar o Clube, sentirem-no. Em 1943, nas primeiras jornadas do Campeonato Nacional de 1942/43, os 'encarnados' alcançaram vitórias retumbantes, frente a Vitória de Guimarães, por 8-3, e FC Porto, por 12-2. Os resultados expressivos e a qualidade do futebol entusiasmavam os benfiquistas, fazendo-os acreditar na revalidação do título.
Contudo, as pesadas derrotas sofridas nas 12.ª e 15.ª jornadas, frente ao Vitória de Guimarães, por 5-1, e perante o Belenenses, por 5-2, fizeram com que passasse de líder da prova para o terceiro lugar. Apesar do momento difícil, os benfiquistas acreditavam: 'o Benfica tem dado belas lições de fé e de vontade. Eis um momento de êle tomar para si próprio lições que tem dado aos outros'. Embalados pelo apoio, na jornada seguinte, venceram o Leixões por 4-2. A exibição foi elogiada pela imprensa: 'disse na minha última crítica que aguardava o «querer» dos nossos jogadores e eles responderam à chamada'.
Na penúltima jornada, 'águias' e 'leões', separados por um ponto, enfrentavam-se, definindo-se com este jogo quem ocuparia o primeiro lugar. A afluência à partida foi enorme, 'era belo o aspecto do Campo Grande (...) um campo muito pequeno para acontecimento de tamanha importância'. Os jogadores sentiram que este seria o momento fulcral da temporada e entraram determinados. Marcaram nos primeiros minutos do encontro e, mesmo após os 'leões' terem empatado, conseguiram voltar à vantagem ainda na primeira parte. O jogo terminou com a vitória dos 'encarnados' por 2-1. O Clube voltava ao primeiro lugar e, na última jornada, contra a Académica de Coimbra, bastava-lhe pontuar para festejar o título.
Para a deslocação à 'cidade dos estudantes' foi necessário um comboio suplementar. 'O campo de Santa Cruz, registando a maior assistência de todos os tempos, era uma amálgama viva e colorida'. O Benfica ganhou por 4-3. A chegada a Lisboa foi o êxtase, 'os jogadores, os dirigentes, foram «arrancados» da carruagem e transportados às costas da multidão ansiosa do contacto e da presença dos mesmos (...) o Rossio foi pequeno para conter o povo'. A viagem até à Secretaria do Clube foi alucinante, 'os nossos rapazes chegam quási sem saber como. Vieram por ar, passeados aos ombros dos benfiquistas'. A paixão dos adeptos tem esse condão, de os 'carregar' nos momentos mais decisivos, retribuídos por um pensamento unânime: 'o Benfica é um caso único no Desporto Nacional, pois só êle seria capaz de nos dar momentos de tão épica grandeza'.
Pode ficar a conhecer mais sobre esta a equipa vencedora do Campeonato Nacional 1942/43 na área 6 - Campeões Sempre no Museu Benfica - Cosme Damião."

António Pinto, in O Benfica

O futebol e os atrasados mentais: culpa do wrestling

"Faz-me confusão como é que se perde tempo a olhar para o futebol quando se acredita que está tudo comprado e combinado.

Luís Castro não o disse mas deixou-o implícito e eu posso escrevê-lo: o futebol em Portugal está cheio de atrasados mentais. Somos campeões da Europa e estamos a deitar ao lixo uma janela de oportunidade única de rentabilizar uma actividade de sucesso, porque somos cada vez mais incapazes de ver a fotografia completa. A culpa é dos posts de Facebook, das contas de Twitter, da doutrina envenenada passada pelos canais dos clubes... De gente que sacrificaria a própria mãe se isso lhes garantisse uma vitória e, melhor ainda, uma derrota do rival – porque para muita gente o que importa não é ganhar, é sim que os outros percam. Depois, a culpa também é vossa, leitores, porque a maioria de vós só quer lixo. E é nossa, jornalistas, que para sobreviver tantas vezes vos damos lixo para subirmos um pouco os nossos números e adiar o encerramento das publicações.
Concordo com Luís Castro na questão dos emprestados e, sobretudo, com essa declaração que vai ao âmago da questão do futebol em Portugal, onde o que mais manda “é a desconfiança”. “Chegamos ao ponto em que se perdemos por três, quatro ou cinco, estamos vendidos não sei a quem. Se ganhamos, estamos comprados não sei por quem”, disse o treinador do GD Chaves. E isto, Luís Castro, aplica-se aos jogadores e aos treinadores, mas também aos jornalistas, que se elogiam a prestação de um jogador ou de uma equipa grande é porque são avençados e se criticam também são avençados, mas vão receber ao outro lado. E aplica-se aos árbitros, mas aqui há já muitos anos – se bem que este ano há a inovação do VAR, que para o comum dos portugueses também está à venda.
Em relação aos emprestados, já várias vezes o disse e mantenho. Num futebol onde haja um pingo de sanidade mental aconteceriam duas coisas: esses jogadores poderiam jogar contra o clube detentor dos seus passes e nenhum clube poderia emprestar mais de, imagine-se, três jogadores aos 17 rivais do mesmo campeonato. Não é três a cada um dos 17. É três aos 17, para evitar que se desvirtue a competição e que se criem condições de desigualdade. Porque é que isto não é assim? Porque, no senso comum, da mesma forma que um pequeno nunca ganha a um grande se não estiver pago por outro e nunca é goleado se não estiver corrompido pelo adversário daquele dia, também aqui só se olha para os interesses dos grandes. Os grandes mandam e os seus interesses jogam-se aí há muito mais tempo do que na comunicação que manda espalhar a doutrina dos facilitadores e que, ela sim, é uma inovação recente. Disto, Luís Castro sabe, porque também já esteve num grande.
Da mesma forma que descobriram agora que podem envenenar o panorama mediático aproveitando a abertura – mais que a abertura, o benefício dado – das redes sociais à toxicidade da comunicação, os grandes já aprenderam há muito tempo que podem envenenar a seriedade de uma competição espalhando dezenas de jogadores pelos outros clubes, enfraquecendo-os quando são eles a estar do lado de cá e fortalecendo-os quando é preciso defrontar um rival directo. Esta é a questão concreta. Mas se queremos ter um mínimo de hipótese de a atacar é preciso ir ao fundo da questão e perceber por que razão o regulador sente a necessidade de se defender através de regras como a proibição de os emprestados defrontarem o seu clube – e que não é exclusivo de Portugal, é bom que se diga.
E o fundo da questão é a tal desconfiança de que fala – e bem – Luís Castro. No fundo, aquilo que a mim me faz confusão é perceber como é que as pessoas ainda vão ao futebol, como é que perdem tempo a olhar para um jogo, se no fundo acham que está tudo comprado. Já tinha idade para ter juízo – felizmente – quando surgiu por cá a febre do wrestling, dos combates encenados para o espectáculo, que a dada altura contaminaram a sociedade adolescente em Portugal. “Toda a gente via aquilo”, explicou-me há dias um companheiro de redacção, que tem metade da minha idade. A mim, ver homens adultos de maiô ou calças de licra a simular que davam tareias noutros homens adultos de maiô ou calças de licra parece-me tão desinteressante como ver homens adultos de calções a simular que jogam futebol contra outros homens adultos de calções.
Afinal, vai-se a ver, a culpa é do wrestling. Do Undertaker e do Holk Hogan. Agora é só perceber qual dos grandes os comprou..."

E se deixássemos todos de ver futebol?

"O que está hoje mal e o que está hoje bem no futebol? O que está bem? O jogo. Quase todo o resto está mal: violência, hooliganismo, estupidez, cacofonia, ganância.

As imagens do treinador do FC Porto a reagir de forma ostensiva, agressiva e indesculpável contra um colega de profissão, fez-me lembrar o título de um filme de 1976, “Feios, Porcos e Maus”, do realizador italiano Ettore Scola.
O filme não tem nada a ver com futebol, é sobre uma família romana que vive numa favela da capital italiana. Sátira feroz e impiedosa, espantosa, amoral e rude, sátira desconcertante, hilariante e grotesca, resume, nalgumas dezenas de minutos divertidos e brutais, a miséria profunda da sub-humanidade da civilização Ocidental, que atingiu o cume do progresso técnico, social e económico, ao mesmo tempo que guardou toda a alucinante capacidade humana para a indignidade, a desumanidade e a porcaria.
Que tem isto a ver com o futebol? Nada, claro. Excepto o facto de a mesma porcaria imperar cada vez mais no futebol global, uma porcaria que torna o mais bonito dos jogos, pela estética, pela imprevisibilidade, pelo ritmo, uma cloaca irredimível. O problema é que se tornou um jogo ao serviço de um ethos colectivo degradado, espelho e reflexo do Mundo actual, que por sua vez influencia. Recordando a “Tribo do Futebol”, de Desmond Morris, estamos perante uma actividade quase tribal, com tribos (as do futebol) reunidas em torno de diferentes equipas – clubes -, em luta pela hegemonia, mas sobretudo em luta contra os seus rivais.
Somos então, cada um de nós, membros de tribo, seja ela o Benfica, o Porto ou o Sporting, com chefes, com sábios e heróis, com tem símbolos, bandeiras e hinos. Somos nós os seus guerreiros, lutamos pela nossa tribo mesmo contra a razão, mesmo contra os valores que nos guiam fora dela, os valores da sociedade a que pertencemos todos. Por ela, a nossa tribo, estamos dispostos a fazer qualquer coisa, feia, porca ou má, como verdadeiros fanáticos.
O que está hoje mal e o que está hoje bem no futebol?
O que está bem? O jogo.
Quase todo o resto está mal: violência, hooliganismo, estupidez, cacofonia, ganância.
Violência: deve haver poucos jogos mais duros, que causam mais lesões e em que os jogadores, conscientemente ou não, provocam mais dor, sofrimento e incapacidade aos colegas de profissão. No Brasil, estudo recente revelou que 55% de todas as lesões nos joelhos resultam da prática do futebol. E são inúmeras as vezes em que os jogadores, “sem querer”, pisam o calcanhar dos adversários, lhes acertam com a planta do pé (armado de pitons) na perna, esticam o cotovelo na direcção de um olho, de um nariz ou de um queixo.
Hooliganismo: as claques são gangues organizados, ou grupos desorganizados de desordeiros, não menos perigosos. Deslocam-se em manada, atacam em grupo, isolam e destroem as suas presas, humilhando-as ou agredindo-as. Podia ser belo, mete medo (e afasta as famílias). Estupidez: traço mais marcante da organização actual do futebol, quer ao nível do dirigismo quer da parte técnica, que inclui treinadores, preparadores físicos e fisioterapeutas. E do que se trata é da profunda, e contudo extraodinariamente ligeira, falta de qualidade intelectual de boa parte dos seus agentes. Ouvir certos dirigentes desportivos é escutar afirmações de completa indigência mental. Alguns treinadores alimentam o anedotário nacional, verdadeiros “bodes respiratórios” do sistema que se alimenta deles e os descarta à primeira oportunidade.
Cacofonia: enxameiam as televisões quase todos os dias, gritam ao mesmo tempo, afirmam tudo e o seu contrário com facilidade, defendem com unhas e dentes e contra a razão e o bom senso os interesses do clube que é a sua casa, a sua terra, o seu clã. Alguns seguem cartilhas com argumentos a utilizar, outros inventam, outros tentam ser tão sectários quanto possível, para continuar a ser recrutados para a causa que professam – do Sporting, Porto ou Benfica. E gritam, protestam, interrompem, insultam, pois só assim “o canal mantém as audiências” (disse-me há dias um desses comentadores)…
Ganância: no futebol circula dinheiro em excesso, por ele gerado e feito circular. É de mais para jovens de quase sempre modestas origens, de repente dispondo de muito dinheiro; não lhes peçam capacidade para gerir uma fortuna, manter o equilíbrio, agir correctamente e não perder a cabeça à primeira contrariedade. É impossível. E o dinheiro encoraja a ganância, a sede de enriquecimento de muitos, dos presidentes de clubes aos diversos membros do sistema, sem esquecer os agentes desportivos. O bolo disponível é cada vez maior e mais mal distribuído: o orçamento dos três grandes é incomparável com o resto das equipas, na Europa o orçamento dos grandes campeonatos é incomparável com o português.
Hoje em dia, em Portugal, todos se parecem, seja Porto, Benfica ou Sporting; seja Pinto da Costa, Bruno de Carvalho, Filipe Vieira; ninguém acredita neles a não ser os seus adeptos, que acreditam em tudo, seja no que for, nunca há penaltis justos contra a sua equipa e os seus jogadores são deuses.
A loucura não é só portuguesa; na Grécia, o Presidente do PAOK entrou em campo armado, Far-West no levante europeu. O campeonato grego foi suspenso. Ninguém morreu, mas a tragédia espreita.
E em Portugal?
As maiores vítimas do jogo de luz e sombras em que se transformou o futebol são os próprios jogadores (mentira, são os adeptos, mas esses não contam, parece). Muitos soçobram, deprimem, desistem. Tirados jovens do enquadramento familiar, deslumbrados com o estatuto de vedetas (quase) instantâneas, com a fama, mais tarde ou mais cedo vem a decepção, a queda de Ícaro no abismo da vaidade, seja por força de uma lesão, do final da carreira, do desligamento abrupto das luzes da ribalta. E voltam à obscuridade que os viu crescer, descrentes, desiludidos e deprimidos.
E o show continua, o show nunca para. Talvez acabasse, se todos juntos nos fartássemos dele e deixássemos de ir aos campos, de ver os jogos na televisão, até de ouvir os relatos. Talvez, nesse caso, o belo jogo, jogado com os pés, o mais imprevisível (e impreciso) dos manipuladores de bola (com a mão é mais fácil…), voltasse a ser o que em tempos foi:
Um belo desporto."

O futebol é o espelho mais grotesco da condição humana (e resiste a si próprio)

"A estupidez devia mesmo pagar imposto.
Mesmo que o português mal consiga respirar com o piano que lhe caiu em cima e de debaixo do qual não consegue sair há muito por culpa da troika. Além dos que já paga, por vezes em parcelas mais acessíveis, negociadas, por não ter antes conseguido cumprir, há muito bom português que devia ser penalizado também pelas coisas que faz. Ou diz.
Isoladas são apenas tolice. No meio de uma multidão rastilho de combustão rápida.
As redes sociais não podem ser sempre desculpa, o único antro de perversão e de onde vêm todos os males do mundo, qual caixa de Pandora. Há pessoas que se comportam fora delas da mesma forma, com a mesma irracionalidade, que tanto pode ser a interpretação de um ridículo papel a que se prestam ou a deformação causada pelo próprio jogo.
É que não há algo que tenha um poder tão forte de deformação da inteligência humana, do seu natural bom senso, como o futebol.
É a tinta branca das marcações do campo que separa, na maior parte das vezes, a racionalidade do seu oposto, e para o lado de cá não parece haver limites para alarvidades. E os dias são cada vez mais longos. Nada é tão agressivo, capaz de tanta influência negativa como o marcador final do célebre jogo dos 22 atrás de uma bola.
Nada nos faz mentir com tantos dentes quando dizemos sem grande convicção.
Há vida para lá do jogo...
Não há. No bom, porque é tão bom quando puro, e no mau sentido.
Complexos de inferioridade nas bancadas no que se grita e canta, estados de negação acumulados sobre a realidade dos próprios clubes. Escondidos atrás de uma multidão ou camuflados pelo avatar, a sua vida ganha outras dimensões com o apito inicial, num encontro que se prolonga por dias até outro apito engolir a própria cauda.
Se a estupidez valesse 1 euro para a caixinha das multas os grandes praticamente não teriam passivo. Os pequenos ganhariam o dinheiro que precisam para pagar ordenados a horas e até, quem sabe, investir.
O futebol seria mais simples.
Mas o futebol é o espelho mais grotesco da condição humana.
O futebol é o reflexo de uma sociedade já depois de ter perdido a compostura.
Estranhamente resiste. Tem sete vidas, finta aqueles que lhe querem mal, e continua a ser bonito, tão bonito que praticamente todos se apaixonam. Ganha pontos de exclamação na nossa memória, pormenores que não estavam lá antes, cores.
O presente enche o peito de ar, o futuro tenta antecipar todos os perigos. Metam uma caixa de multas em cada canto, e deixem-me ver a bola."