terça-feira, 27 de fevereiro de 2018
Era uma vez na América
"Termino hoje uma trilogia de textos sobre Béla Guttmann, um dos treinadores mais importantes da história do Benfica, trazendo uma fase menos conhecida da sua carreira de jogador levada a cabo nos Estados Unidos.
Béla Guttmann percorreu os Estados Unidos - Chicago, Providence, Rhode Island, Filadélfia, St. Louis, Nova Iorque - na grande digressão da sua equipa, o Hakoah Viena, clube de judeus da capital austríaca que se transformou, nos anos 20, numa dos mais fortes conjuntos da Europa.
Mas a Europa vivia momentos difíceis.
O anti-semetismo lavrava no continente e muitos judeus procuravam fugir da perseguição movida cada vez mais sistematicamente por muitos governos europeus.
Ao contrário do que muitos possam supor, o futebol nos Estados Unidos estava na berra nesse tempo. Muitos anos antes de Pelé, Cruyff, Eusébio e Beckenbauer terem reerguido o edifício do futebol do país, existiu 'a época dourada do soccer americano'.
Em 1921 foi fundada a American Soccer League, primeira liga profissional no território. Três anos mais tarde já o campeonato se disputava entre 12 clubes. Espectadores excitados demandavam os campos de jogo. Contratações sonantes feitas pelos emblemas mais poderosos, recrutando sobretudo jogadores escoceses. No livro sobre Guttmann escrito por Bolchover descreve-se episódio: Alex McNabb jogava na I Divisão escocesa pelo Greenock Morton. Recebia quatro libras por semana. O Boston Wonder Workers avançou com uma proposta de 12 libras por semana. Emigrou de imediato.
Guttmann e a América
Em 1926, Béla Guttmann assinou pelos New York Giants
Recorde-se que Brooklyn tinha, ao tempo, mais de 750 mil habitantes judeus. Por isso, o afluxo de jogadores judeus vindo da Europa intensificou-se: Hausler, Scwarcz, Egon Pollak, Leo Drucker, Lajos Fisher...
Mas Guttmann era o melhor de todos.
Só que os Giants não saíam do meio da tabela. Havia quem acussasse: 'A diferença entre a mediocridade e a grandeza está no que os jogadores sentem uns pelos outros'.
A equipa de Guttmann era formada por mercenários futebolísticos.
O Hakoah Viena voltou aos Estados Unidos para nova digressão, mas muito desfalcada - as suas estrelas tinham demandado o sonho americano. Guttmann aproveitou a digressão para jogar aqui e ali pela sua antiga equipa.
Entretanto, em termos de organização e com a fundação da United Stades Football Association os problemas não paravam de surgir no futebol dos Stades. As guerras entre proprietários de clubes tornaram-se intensas.
Em 1928 foi formado o New York Hakoah. Vários jogadores dos Giants (que pertencia ao mesmo dono) transferiram-se para o clube dos judeus de Nova Iorque: Hausler, Grunwald, Fabian, Fischer e, claro, Guttmann.
Os adeptos do novo clube multiplicavam-se nos bairros de Lower East Side, Harlen, Brownsville, Williamsburg, Tremont, South Bronx.
Havia em seu redor o orgulho inabalável do povo que se diz escolhido.
O Hakoah perdeu o título de campeão dessa época para o Bethlehem Stell mas, na Taça, cuja final punha frente a frente os vencedores da Zona Este e da Zona Oeste, os resultados foram brilhantes. na meia-final regional bateram o Newark Portuguese, equipa da comunidade portuguesa, e na final da Zona Este, disputada à maior de três jogos, fizeram história afastando os New York Giants sem necessitarem de terceiro jogo - 1-1 e 3-0. Guttmann foi até aos píncaros dos elogios: 'O incomparável centrocampista do conjunto!'
Não perdia, de forma alguma, a sua visão para o negócio: tornou-se accionista de um speakeasy, clubes clandestinos de venda de bebidas alcoólicas que surgiram com a Lei Seca.
No ano seguinte, o New York Kakoah fundiu-se com outro clube judeu, o Brooklyn Hakoah formando o Hakoah All-Stars.
Guttmann entrava na fase derradeira da sua vida como jogador e descobria, dolorosamente, que os seus investimentos financeiros acumulavam prejuízos terríveis. Passou sem grande nota pelo New York Soccer Club, e regressou ao Hakoah All-Stars.
Num jogo particular frente ao Celtic de Glasgow, católicos contra judeus, envolveu-se em pancadaria com um adversário, Charles Napier. Foram ambos expulsos. Saía à sua maneira: sempre pronto a dar nas vistas!
Em 1932, o Hakoah fechou as portas.
Guttmann regressou a Viena de bolsos vazios. Era tão conhecido por acumular fortunas como por desfazê-las.
Mais uma época no Hakoah Viena e pendurava as chuteiras.
Vinham aí tempos complicados para os judeus na Europa."
Afonso de Melo, in O Benfica
Ciclismo sobre rolos, uma novidade desportiva
"Vitória do Benfica e de José Maria Nicolau na primeira apresentação das corridas de bicicleta sobre rolos, em Lisboa.
«A última novidade do desporto moderno», era assim anunciada a primeira sessão de provas de ciclismo sobre rolos, na capital portuguesa. O espectáculo, já com bastante êxito nas grandes cidades europeias, prometia todas as emoções das corridas em pista. Provocavam grande interesse no público, que tinha a sensação absoluta do esforço dos ciclistas.
O modelo das ciclistas foi inventado pelo campeão do mundo de ciclismo, o suíço Oscar Egg. O aparelho era 'constituído por dois rolos ligados a um mostrador graduado, sobre o qual giram dois ponteiros, cada um deles ligado, por seu torno, ao rolo respectivo. Cada volta completa do ponteiro corresponde a 500 metros'.
O espectáculo foi promovido pelo jornal Os Sports, a 4 de Março de 1933. O local escolhido foi o grande salão de cineteatro Capitólio, que registou uma enorme enchente. Os lisboetas esgotaram rapidamente a lotação 'tendo ficado provado de entrada grande número de pessoas, por falta de bilhetes'. O programa incluía um torneio em poule para a disputa da Taça J.J. Mendes Arnaut e uma prova entre o sportinguista Rodrigo Garrido, campeão nacional de velocidade, e o benfiquista Eduardo Santos.
No torneio, tomaram parte alguns dos mais famosos 'ases do pedal': José Maria Nicolau, Abílio Gil Moreira e Valentim Afonso, do Benfica; Prudêncio Carneiro e Francisco Assunção Silva, do Sporting; e João Francisco, do Campo de Ourique. Os seis corredores disputaram, ao todo, 15 corridas de 3 Km cada. Ao sinal da partida, iniciavam a marcha e os ponteiros começavam logo a girar, marcando a distância percorrida por cada um.
O espectáculo decorreu sempre animado, 'granjeou aplausos gerais, mas, tendo agradado a todos, não foi por todos compreendido no grau de esforço violentíssimo que exige dos atletas em competição'. Nas provas mais renhidas, os ciclistas davam o seu máximo a pedalar e, no final, 'saiam cambaleantes de sobre a máquina, porque os músculos das pernas se negavam a agir ainda'.
No final da poule, José Maria Nicolau e Gil Moreira ficaram empatados com quatro vitórias cada, sendo necessário recorrer a uma prova de desempate. Nicolau, decidido a ganhar, superou o colega de equipa e venceu com o melhor tempo da noite: 3 minutos e 32 segundos. O conceituado ciclista do Benfica conquistou a taça que ficava 'em poder do club a que pertença o primeiro classificado' e ainda estabeleceu dois novos recordes, dos 500 metros e dois 1000 metros.
Pode conhecer mais façanhas do ciclismo benfiquista na área 3 - Orgulho Ecléctico do Museu Benfica - Cosme Damião."
Ana Filipa Simões, in O Benfica