Férias para que vos quero

"Causou grande espanto que, num momento em que a equipa tem tido maus resultados, Rui Vitória, aproveitando a quadra natalícia, tivesse concedido umas férias prolongadas (seis dias) ao plantel do Benfica. Percebem-se as críticas: para muitos, se a equipa se apresenta em campo com menor fulgor, o que deveria acontecer era precisamente o contrário – mais treinos e maior empenho. Permitam-me discordar do que tenha ouvido de muitos benfiquistas por estes dias.
Rui Vitória fez muito bem ao conceder férias extra aos jogadores. Desde que, em Guimarães, escolheu mudar o sistema de jogo que o treinador do Benfica não tomava uma decisão tão acertada. Em momentos como este, contribuir para a descompressão emocional do plantel é mais importante do que reforçar a carga de trabalho. Uma vez mais, Rui Vitória demonstrou que, mesmo que, por vezes, possamos discordar das suas opções tácticas, tem uma percepção correta do que é gerir um grupo de atletas de alta-competição e a pressão competitiva que estes enfrentam. Neste aspecto, o contraste com Jorge Jesus continua a jogar a favor de Vitória – sendo que tacticamente poucos terão dúvidas em reconhecer as imensas qualidades do agora treinador do Sporting.
Para lá dos equívocos tácticos (responsabilidade do treinador) e dos erros de planeamento da temporada (responsabilidade da estrutura), uma equipa que alterna uma série de bons resultados e melhorias exibicionais no campeonato – ao fim-de-semana – com péssimos resultados nas restantes competições – durante a semana – precisa de promover algum tipo de estabilizador emocional. Até porque a próxima partida do campeonato se vai jogar a uma quarta-feira, até ver, dia aziago para o Benfica 2017/18.
Aliás, a consequência imediata de chegarmos a Janeiro apenas com uma competição (o que não acontecia desde a longínqua temporada de 2002/03 com Jesualdo e depois Camacho), é que, no primeiro mês do ano, o Benfica tem a temporada em jogo: com a recepção ao Sporting na Luz, seguida de duas difíceis saídas consecutivas ao Minho, primeiro a Moreira de Cónegos e depois a Braga.
Ora, mais do que reforçar o plantel (o que aliás, considerando o tempo de integração das eventuais contratações, só terá efeito lá para o final do mês), ou de trabalho táctico necessário para consolidar um sistema novo, que não foi trabalhado no defeso, a prioridade imediata para enfrentar os desafios de Janeiro, é oferecer ao Benfica um equilíbrio emocional que não tem tido. Se olharmos retrospectivamente para o que aconteceu nas duas últimas temporadas, Rui Vitória dá todas as garantias de saber gerir os tempos emocionais do plantel. Há, contudo, uma diferença este ano: Vitória já não pode mobilizar o inimigo externo para unir o balneário. Agora, o desafio é outro: contrariar o cepticismo dos adeptos face ao jogar do Benfica."

O guarda-redes que baralhou Estaline

"Era fácil imaginá-lo encostado a um dos postes com o seu ar de desafio, boina na cabeça, puxando fumaças de um cigarro. Aliás, era fácil imaginá-lo de cigarro na boca. Ou melhor: era fácil vê-lo de cigarro na boca. Fumava três maços por dia.
Falo de Zamora, El Divino.
O grande soberano dos ângulos.
Era guarda-redes como podia ter sido médico, como seu pai, a quem contrariou teimosamente a vontade. Mas era, sobretudo um arquitecto. Ou um matemático. Dominava os arcos, os fustes e os capitéis. Um passo apenas, ou só meio. De repente a baliza passava a ser do seu tamanho sem um espaço que fosse por onde a bola entrar.
No Mundial de 1934, contra a Itália, foi tão perfeito que os seus movimentos ganharam uma designação como as chicuelinas das touradas: zamoranas.
A zamorana não era uma brincadeira qualquer. Era um ato de coragem e, ao mesmo tempo, científico. O braço e o antebraço formavam um ângulo recto. Como se ele tivesse estudado as interações dos ossos e dos tendões na Faculdade de Medicina da qual fugiu a sete pés. Houve uma altura em que todos os guarda-redes queriam aplicar uma zamorana. Era assim uma espécie de passagem à fase adulta das balizas. Um curso, se quiserem. Quem fizesse uma zamorana perfeita, evitando o golo inevitável, tornava-se um doutor da grande-área.
Certa vez, a selecção de Espanha veio jogar a Lisboa, no antigo Stadium da Alameda das Linhas de Torres. Mais de 20 mil pessoas enlataram-se no peão e nas bancadas, uns às cavalitas dos outros, automóveis e side-cars entupiram o Campo Grande à uma hora da tarde do dia 17 de dezembro de 1922.
Os jornais da época descreviam: «Um verdadeiro acontecimento desportivo e mundano».
Nesse tempo, Zamora jogava no Barcelona depois de ter passado pelo Espanhol. Ah! O grande Zamora! Toda a gente esticava o pescoço e abria os olhos de espanto perante El Divino Zamora.
«O dominador emérito da bola!!!».
Assim mesmo, cheio de pontos de exclamação.
Zamora não se esteve absolutamente nas tintas para a medicina. Chegou a completar umas cadeiras na Faculdade Condal, talvez tenha vindo daí o seu à vontade no domínio da anatomia. Não era apenas aquela coisa da zamorana, braço e antebraço, eram também os punhos e os cotovelos. Ninguém como Zamora para causar medo-pânico aos avançados contrários. Ele partia cabeças de cada vez que saltava ao encontro da bola, socando-a com a raiva de um endemoninhado. Socava tudo: bolas, occipitais, parietais, frontais, narizes e dentes. Às vezes dava ares de Genghis Khan: «Eu sou um castigo de Deus!».
Voltou ao Espanhol. E o clube viajava um pouco por toda a parte levando Zamora e cobrando sete mil pesetas por jogo.
Cerca de dez anos antes desse Portugal-Espanha do Campo Grande, tinha estado em Lisboa outro fenómeno das balizas: Chayriguès. Monsieur Chayriguès, do Red Star de Paris. Um revolucionário! A vida dos guarda-redes mudou por causa de Chayruguès: deixou a expectativa. Passou à acção. O francês encantava multidões com as suas saídas a mãos ambas, com a forma como se atirava aos pés dos adversários e, sobretudo, com os seus extraordinários plongeons, mergulhos tão espectaculares como arriscados e que lhe valeram uma carreira marcada pelas lesões. Nada parecia ser capaz de vencer a sua elasticidade, a sua valentia, a sua técnica com as mãos.
A sua aura era de tal forma grande que se tornou conhecido por toda a Europa e chegou a receber um convite milionário para jogar pelo Tottenham Hotspurs pela verba de 12 mil francos/mês. Recusou. 
Ricardo Zamora não recusou o convite do Real Madrid. Um absurdo! 150 mil pesetas em 1930. Parece que o guarda-redes ficou com 40 mil desses 150. O dinheiro valeu-lhe chatices, um processo fiscal e o diabo a sete. Ainda por cima, Zamora não tinha o cadastro completamente lavado. Já fora acusado de contrabando de charutos cubanos. Era tão universalmente famoso que, quando confrontado com certas declarações pouco abonatórias à União Soviética feitas pelo Presidente da República de Espanha, o seu homónimo Niceto Zamora, Estaline encolheu os ombros. «Ah! Pois. Aquele guarda-redes...».
A camisola de lã, a boina arredondada, as zamoranas, encantaram o mundo do futebol. E a boneca de pano que Zamora levava sempre consigo debaixo do braço e colocava no fundo da sua baliza, acrescentavam-lhe o toque de ternura que devolve os deuses à companhia dos homens. «Zamora na Terra; São Pedro no Céu!», gostavam de dizer os espanhóis.
Tinham ambos, dependuradas à cintura, as chaves do Paraíso."

Reconciliação

"Chegados ao Natal gostaria, em primeiro lugar, de desejar uma quadra feliz a todos os agentes desportivos, dirigentes, trabalhadores dos clubes, treinadores, árbitros e, em especial, os jogadores. Voto extensivo a toda a redacção e leitores de Record.
Numa época que simboliza a família, a partilha, a harmonia e a paz, quero destacar um exemplo do que o desporto pode e deve ser, tocante pela simplicidade. Os épicos rivais na NBA da década de 80, 'Magic' Johnson e Isaiah Thomas, símbolos maiores dos Los Angels Lakers e Detroit Pistons, aproveitaram a quadra para demonstrar que a reconciliação é sempre possível. 26 anos depois souberam reconhecer que há valores maiores na base do desporto e na vida, entre os quais a amizade e o respeito.
Transpondo para a realidade do futebol português, 2017 tem sido um ano demasiado duro, azedo na troca de palavras e nas acusações, desprestigiante para quem acompanha a modalidade, com demasiadas acções negativas, que só podem envergonhar cada um dos agentes desportivos.
Os meus desejos para o futuro do futebol português, a começar pelo ano de 2018, são que o respeito impere e não tenhamos de esperar por um momento "Magic and Isaiah" daqui a 30 anos para ter harmonia e reconciliação. Ao desporto o que é do desporto, nos seus valores fundamentais, à justiça o que é da justiça, para que caia o sentimento de impunidade e seja reforçada a credibilidade no sistema, à esfera pessoal o que deve ficar na esfera pessoal. Cada agente desportivo é filho do seu tempo, incumbido de uma função que não dura para sempre.
Honremos o nosso país, o futebol e o desporto, quem dele faz profissão e os seus adeptos, com seriedade e na procura de compromissos. Um abraço à família do futebol e que sejamos inspirados pelo Natal."