terça-feira, 24 de outubro de 2017

Um Benfica de pequenos passos

"1. Há semanas, escrevi aqui que se Rui Vitória não mostrasse rasgo nas opções técnicas, seria vítima das suas próprias hesitações. Podemos identificar muitas insuficiências no futebol do Benfica de hoje, é impossível não reconhecer ao treinador coragem. Vitória promoveu mudanças na equipa: podem não ser suficientes ou até darem mau resultado, mas antes isso do que ficar paralisado.
Também é verdade que o efeito das mudanças é, por definição, incremental. O Benfica perdeu com o Man. Utd., e até melhorou ligeiramente (na organização defensiva), e venceu sem contestação na Vila das Aves. Contudo, persiste o futebol previsível, com falta de objectividade e pouca profundidade. Quererá isto dizer que a situação é igual ou pior do que há umas semanas?
Não. Desde logo porque o primeiro passo para melhorar o futebol jogado e recuperar índices físicos é começar a vencer jogos. São as vitórias que dão confiança e é esta, por sua vez, que traz, de volta, as boas exibições.
Todavia, talvez o essencial esteja num outro aspecto. O Benfica tinha problemas na baliza, no centro da defesa e nos equilíbrios no meio-campo. Perante isto, Vitória não hesitou em lançar um guarda-redes imberbe, mas que tem as características certas para jogar num grande (mobilidade, propensão ao risco e autoconfiança); e um central autoritário e com um posicionamento irrepreensível, designadamente tendo em conta a idade. Svilar e Rúben Dias são soluções que podem vir a não funcionar, mas tem de fazer parte do ADN do Benfica de hoje correr estes riscos. A sustentabilidade desportiva e financeira do clube depende disso.
No meio-campo a insistência num 4x4x2 com um ‘8’ pouco participante nas tarefas defensivas e fisicamente exaurido não era sustentável. Filipe Augusto não tem a qualidade individual de Pizzi e com o brasileiro a equipa fica curta a atacar, mas há alturas em que um passo atrás é um requisito para dar dois à frente. Equilibrar o meio-campo era uma condição fundamental para nos reaproximarmos das vitórias. Falta, agora, percorrer o caminho para as exibições convincentes.

2. Este fim-de-semana, Quim passou a ser o jogador mais velho de sempre a actuar no campeonato. Contra o Benfica, ficou evidente que o guardião do Aves continua a ter muita qualidade. Como benfiquista, o novo recorde serve para relembrar um momento baixo do clube, quando, na ressaca da conquista do título de campeão, Quim foi dispensado pelo treinador em directo na televisão. Acima de tudo, é um pretexto para recordar com muita saudade um capitão insubstituível, o grande Manuel Galrinho Bento, até agora detentor do recorde. O Bento fez parte de uma última geração de jogadores de inclinação popular, de antes quebrar que torcer e com paixão incondicional pelo Benfica. São tempos que não voltam, mas cuja memória estamos obrigados a preservar."

Svilar e os paradoxos

"Mile Svilar tem servido para atestar o quanto podem conviver, em simultâneo, dois olhares desiguais e, aparentemente, opostos. Claro que haverá sempre quem estranhe quando, de um lado, se certifica que o guarda-redes do Benfica tem qualidades raríssimas para a função e, praticamente em paralelo, outra sentença alega que a utilização do mancebo belga frente ao United foi um risco excessivo e oneroso. Mas não há aqui qualquer paradoxo. Porque uma e outra opiniões, mais do que serem compatíveis, acabam até por ser complementares. Ser guarda-redes é uma arte e, não tenhamos dúvidas, Svilar nasceu com o dom das balizas. Não foi por acaso que Mourinho garantiu que ele "não tem apenas algumas qualidades: é um fenómeno". Porque, explicou, prefere sempre quem aproveite o espaço e não se limite a ficar em cima da linha fatal. Mas foi o próprio treinador do Manchester a deixar escapar que usou uma estratégia, especialmente nos cantos e nas faltas ofensivas, capaz de deixar ainda menos cómodo Svilar na sua estreia na Champions. E Matic foi ainda mais sintomático: "O treinador disse-nos que tínhamos de tentar rematar e fazer cruzamentos, porque ele era novo e era o seu primeiro jogo". Ou seja, Mourinho tem obviamente razão quando refere que Svilar tem todas as condições para se tornar num guardião de top. Mas foi o primeiro a tentar tirar partido das fragilidades que um guarda-redes estreado quatro dias antes no futebol profissional (frente ao Olhanense) jamais poderia encapotar num jogo daqueles da Liga dos Campeões. Ou seja, em condições normais Svilar nunca teria sido titular. E isto não tem tanto a ver com o facto de ter sido lançado com apenas 18 anos e 52 dias na prova mais importante do calendário internacional e logo frente a uma equipa treinada por um técnico matreiro como poucos. Não tem também a ver com o suporte psicológico de Svilar, que até nos momentos mais difíceis parece estar na baliza com a mesma desinibição e naturalidade com que é capaz de lambiscar um sorvete – e isso nota-se até na forma como já gere a carreira, não só na mudança para a Luz, mas também na provável opção pela selecção da Sérvia, para não ficar demasiado tempo na sombra do belga Courtois. Svilar não estava suficientemente preparado para um jogo daquele cariz, essencialmente porque ninguém naquelas condições o poderia estar. É que não devemos esquecer que nunca alinhou pela principal equipa do Anderlecht e, mesmo pelos sub 19, só fez 14 jogos (em três épocas).
Os três C dos guarda-redes são: calma, concentração e controlo. Relativamente aos dois primeiros, Svilar já tem para dar e vender, mas não se pode exigir suficiente autocontrolo a quem tanto queria mostrar-se ao futebol adulto e nunca havia jogado num estádio tão grande e repleto. Se já tivesse essa temperança teria sido um pouco menos afoito e percebido que Rashford, antes de o surpreender, já tinha tentado, por duas vezes, aproveitar a sua colocação adiantada – e, sublinhe-se, esta vontade de controlar a profundidade faz todo o sentido numa equipa como a do Benfica. Foi também por lhe faltar ainda esse comedimento que, logo aos quatro minutos do jogo na Vila das Aves, tentou antecipar a trajectória da bola e, como ela saiu na direcção contrária, teve de fazer uma defesa de recurso. Boa parte dos adeptos deve ter apreciado o golpe de rins, mas o belga levou foi ali mais uma lição neste curso rápido de integração no profissionalismo.
Vítor Baía também foi lançado por Quinito, quando ainda estava a dois meses de completar os 19 anos, num jogo em que o FC Porto empatou (1-1) em Guimarães. E, dois dias depois, já sob o comando de Artur Jorge, estreou-se a vencer (2-0) na Taça UEFA frente aos romenos do Flacara Moreni. Há alguma similitude nas duas situações, até porque os portistas tinham Mlynarczyck lesionado e Zé Beto a cumprir castigo disciplinar. Desta feita, Rui Vitória também não terá deixado de levar em conta os problemas físicos que afectam Júlio César. Ficou claro que a sua única dúvida para o jogo da Champions foi sempre entre o veterano brasileiro e o calouro belga. Podia ter optado pelo guarda-redes medalhado e experiente. Mas, terá pensado, este já passa mais tempo na enfermaria do que no relvado e tem cada vez mais dificuldade em sair da sombra dos postes. Preferiu, por isso, o risco total, numa decisão com perspectivas de futuro e que, por isso, não poderia nunca ser condicionada pelo desfecho e incidentes do jogo com o United. Haverá, no meio disto tudo, quem releve muito o diferente tratamento a que foi sujeito Bruno Varela, a quem, de facto, não foi reconhecido a mesmo direito ao erro. A explicação, nada palpável, é certo, encontramo-la quando olhamos para Svilar e Varela na baliza. Este último até pode vir a ser um belíssimo guarda-redes, mas não nos transmite as mesmas sensações. Svilar provoca, até no olhar esgrouviado e na forma como segura a bola, uma impressão de proeminência e magnitude. Deve ter sido isso que fez Vitória arriscar. E perdoar-lhe.

Cinco estrelas -- CR7 já é imortal
Cristiano Ronaldo há muito que garantiu a imortalidade e um lugar entre o restrito grupo daqueles que são mesmo diferentes. O segundo "The Best" consecutivo e a Bola de Ouro que se lhe seguirá são apenas as chancelas mais recentes para uma divindade que só tem paralelo em Pelé, Maradona e Messi.

Quatro estrelas -- Quim, o campeão juvenil
A poucos dias de completar 42 anos e após ter-se consagrado como o mais veterano de sempre nos relvados da Liga, Quim é hoje um guarda-redes mais consensual do que alguma vez havia sido. Um prémio justo para um profissional de primeira água e que mantém a deleite juvenil pelo jogo.

Três estrelas -- "Guedesmania"
Após um conjunto de grandes exibições, a última abrilhantada com dois grandes golos e uma assistência, a "Guedesmania" tomou conta do iluminado Valência. O jovem Guedes prova que, às vezes, é preciso dar um passo atrás para ser visto com outros olhos até em Paris…

Duas estrelas -- Lineker perdeu o senso
Gary Lineker já teve epigrafes deliciosas, mas perdeu o senso quando disse que Benzema está sobrevalorizado. O futebol não se mede só pelos golos (e o francês somou 182, o sétimo melhor registo na história do Real). Quem tiver dúvidas que veja a assistência deliciosa para Marcelo.

Uma estrela -- Rui Costa e a incompetência
É quando vejo o árbitro Rui Costa ir duas vezes espreitar o ecrã televisivo e, mesmo assim, manter a decisão errada de não marcar penálti sobre Gélson que tenho ainda mais certeza de que a incompetência só diminuirá quando a decisão final for do vídeo-árbitro."

A crença gera biologia

"O Prof. José Antunes de Sousa, quando ambos leccionávamos (e, para leccionar, estudávamos) no Instituto Piaget, em Almada, muitas vezes me acompanhou em diálogos vários sobre um desporto de perfil humanista, onde o facciosismo clubista não cabe – um desporto que fomente o civismo e a cidadania e portanto se transforme num espaço privilegiado de socialização e de integração. E terminava a sua colaboração, nos meus trabalhos, com uma frase que não esqueço: “A crença gera biologia”.
Relembro, neste momento, o Konrad Lorenz que distinguia no Desporto uma inigualável forma ritual de luta, que nos ensina a dominar, a humanizar o que, em nós, é instintivamente violento. Não há competição desportiva que, para ser verdadeiramente desportiva, não se afirme, pela competição, por uma vontade imparável de vitória, mas… com normas, com regras, com ética. São precisamente estas normas, estas regras, esta ética, que fazem do Desporto uma indispensável pedagogia. A combatividade, a agressividade, no Desporto, só se justificam, quando reguladas, quando eticamente responsáveis. Daí, que possamos escrever, sem medo de errar, que o Desporto tem, como poucas outras actividades sociais, uma indiscutível missão civilizadora, começando pelo ensino de uma linguagem de não violência. O desenvolvimento do Desporto, designadamente o de alta competição, ou de alto rendimento, supõe planeamento e gestão, organização e produtividade e ainda medidas integradas e especialistas, interessados numa tarefa comum. Ora, tudo isto recusa, dispensa, exclui a violência, a desordem, o caos. O Desporto é um jogo competitivo e portanto uma práxis que não pode deixar nunca de perder a sua condição lúdica, o seu espírito lúdico. Por isso, porque é jogo e não é guerra, ganhar ou perder, no Desporto, exige um clima de respeito mútuo, pois que os que ganharam e os que perderam foram iguais, no esforço, no pundonor, na vontade de vencer.
Um estudioso, como o Prof. Sílvio Lima, escreveu, na década de 30 do século passado, que “o verdadeiro desporto não é para ser fruído como espectáculo senão de quando em quando e à maneira helénica, pura, cultural. Quem considera o desporto uma disciplina formadora do homem, isto é, quem faz do desporto um método pedagógico, maiêutico, humanístico, sentirá sempre um arrepio invencível (um sacer horror) por todo o exibicionismo estadial. Há um pudor, uma frágil pudicícia desportiva, que importa defender” (Desportismo Profissional, Editorial Inquérito, Lisboa, p. 40). Confesso o meu pecado: no Desporto, sempre fui mais espectador do que ator. Em rapaz, as Salésias foram a minha “segunda casa”, mas sem nunca pisar a relva do primeiro campo relvado do País. O futebol, o basquetebol, o andebol, o râguebi nunca os pratiquei, como jogador federado. Mas sempre alegremente os acompanhei, desde criança, ao lado do meu saudoso Pai, para aplaudir os atletas de camisola azul e cruz ao peito. Nesses recuados anos (se bem me lembro) os treinos eram trissemanais; a preparação física poderia assim sintetizar-se: corridas à volta do campo e um pouco de Ling, para completar; e, no “treino de conjunto”, já se topavam treinadores tacticamente engenhosos. Só que o profissionalismo ainda não se implantara e, tecnologicamente, nada havia ainda de significativo. Sim, havia de facto um “amor à camisola” que morreu, anos depois, quase definitivamente. Mas era pouco, muito pouco, diante do que hoje prescreve a metodologia do treino desportivo e a própria medicina desportiva e as exigências, de rigor extremo, do profissionalismo no futebol. E, assim, com este panorama como ponto de partida, o futebol que eu contemplava, embevecido, nas Salésias, não poderia ter o ritmo, a intensidade, a força do futebol actual.
Hoje, ganha quem tem os melhores jogadores, os melhores treinadores, a melhor organização e… sabe o que faz e porque faz! Chega a ser uma crença, inteiramente necessária à coesão do grupo. Já num dos meus anteriores artigos eu citei Bruce H. Lipton autor do livro The Biology of Belief (tradução portuguesa da Sinais de Fogo, Lisboa, 2015). Volto a ele: “A ciência revelada neste livro define o modo como as crenças controlam o comportamento e a actividade genética e, consequentemente, o desenvolvimento das nossas vidas” (p. 243). Há valores em que se torna absolutamente indispensável acreditar, se queremos uma sociedade mais humana. O meu Amigo, Doutor Pedro Abreu, professor de engenharia informática da Universidade de Coimbra, teve a gentileza de facultar-me uma entrevista de Nuccio Ordine, professor, filósofo e crítico literário italiano, especialista em Giordano Bruno (1548-1600), um dos mais conhecidos filósofos do Renascença, onde colhi o seguinte:
“Temos gente superespecializada e que perdeu o sentido geral e global do saber. Hoje, as escolas e as universidades preparam os alunos para seguirem uma especialização e isso é perigoso, porque as escolas e as universidades não proporcionam uma cultura geral. Einstein já dizia que a especialização pode matar a curiosidade e esta está na base do avanço da ciência e da tecnologia. Por exemplo, a actual directora do CERN (o laboratório europeu de física de partículas) é uma italiana, Fabíola Gianotti, que fez estudos clássicos, aprendeu piano durante dez anos e é, simultaneamente, uma especialista em Física de renome mundial. Os maiores arquitectos italianos, como Renzo Piano, fizeram estudos clássicos. Uma cultura geral de base é absolutamente indispensável a qualquer especialista”. No meu modesto entender, é indispensável porque sem prévia revolução das mentalidades não há revolução científica…
Sou tentado a folhear, de novo, a entrevista de Nuccio Ordine: “O que vemos na City, em Londres, no centro financeiro britânico, são pessoas de grande elasticidade mental, pessoas que vêm dos estudos clássicos ou da filosofia, porque compreendem melhor o mundo do que os especialistas em economia e programação”. Para mim, as escolas e as universidades não devem ensinar aos alunos “generalidades”, ou um confuso sincretismo, ou um maçudo enciclopedismo, mas os princípios estruturantes, ou fundantes, do saber. Qualquer especialidade nasce de um tempo e de um espaço; tem a sua individualidade histórica; deverá exercer-se criticamente, para esclarecer o sentido e a significação da sua prática. Todos estes grandes sectores pedem bem mais do que é habitual fazer-se, numa prática profissional. Numa palavra só: pedem “cultura”, que se concretiza na crença e na vivência de determinados valores. Sem iniciação ao pensar, não há ciência. A formação universitária será absolutamente lacunar, se ensinar uma ciência que não é cultura, se esquecer os valores que humanizam a própria vida. Recordo o Gilles Deleuze de L’Image-Mouvement:
“Os grandes autores de cinema são comparáveis não só a pintores, a arquitectos, a músicos, mas também a pensadores”. E Jean-Luc Godard, em Jean Luc-Godard par Jean Luc-Godard (Ed. de Minuit, Paris, 1983) esclarece: “Há muitas maneiras de fazer filmes. Como Jean Renoir e Robert Bresson, que fazem também música. Como Serge Eisenstein, que fazia também pintura. Como Stroheim, que também escrevia novelas faladas, nos anos do cinema mudo. E como Rosselini que faz simplesmente filosofia” (p. 238). Enfim, para saber de cinema, é preciso saber mais do que cinema. Em tudo, há um perfil cultural, que é preciso descobrir, para entender o conhecimento científico, para nos entendermos a nós mesmos e ao mundo onde somos. Em tudo, há valores, para além das ciências, em que é preciso acreditar e que até podem tornar mais forte e consciente do seu valor uma equipa de futebol."

O misterioso desaparecimento de Bastos

"O Benfica foi ao Brasil para um grande torneio chamado Charles Miller, considerado o pai do futebol brasileiro. Estávamos em 1955, e a presença encarnada foi tremendamente elogiada. E houve um episódio caricato.

Hoje vamos até 1955, nestas habituais viagens pela história do Benfica e das suas gentes. Voa a águia de Lisboa a 17 de Junho de 1955 com regresso marcado para o dia 3 de Agosto. Mas igualmente popular.
É de estalo!
América do Sul - Brasil.
No primeiro jogo, no Maracanã, frente ao Flamengo, uma enorme multidão acompanha as peripécias da partida.
O Flamengo tem jogadores enormes, internacionais brasileiros como Rubens, Índio, Esquerdinha ou Evaristo, o Evaristo de Macedo, que não tardaria a enfrentar de novo o Benfica, mas já com a camisola do Barcelona e, depois, do Real Madrid. É ele, precisamente, que desbloqueia o resultado de um jogo equilibrado cujo vencedor esteve em dúvida até ao fim. A exibição do Benfica é de enorme categoria, e Coluna é imponente no meio-campo, levando os brasileiros a compará-lo ao famoso Didi. 'Mesmo perdendo, o Benfica fez sucesso', gritava a manchete de A Noite. Por seu lado, A Última Hora deixava claro: 'A sensação do Maracanã foi o Benfica!' Os encarnados estavam na ribalta.
'O Benfica salvou o torneio!'
O Flamengo-Benfica foi o jogo de abertura do Torneio Charles Miller, torneio levado a cabo para homenagear aquele que é considerado como o pai do futebol brasileiro.
Com jogos disputados no Rio de Janeiro e em São Paulo, contava com a presença de quatro equipas brasileiras - Flamengo, América do Rio (que visitara Lisboa dois anos antes), Corinthians e Palmeiras; uma equipa uruguaia - Peñarol de Montevideo; e uma equipa portuguesa - Sport Lisboa e Benfica.
Torneio de envergadura impressionante de pensarmos que as equipas teriam de se defrontar todas entre si. Vejamos como foram os resultados, jornada a jornada, para depois nos debruçarmos sobre os resultados do Benfica.
1.ª jornada - Flamengo, 1 - Benfica, 0; Palmeiras, 2 - Peñarol, 2;
2.ª jornada - Corinthians, 2 - Palmeiras, 1; América, 1 - Flamengo, 0;
3.ª jornada - Flamengo, 0 - Corinthians, 3; Benfica, 2 - Peñarol, 0;
4.ª jornada - Palmeiras, 1 - Benfica, 2; América, 4 - Peñarol, 1;
5.ª jornada - Flamengo, 5 - Palmeiras, 3;
6.ª jornada - América, 4 - Benfica, 1; Corinthians, 2 - Peñarol, 2;
7.ª jornada - Corinthians, 3 - América, 1;
8.ª jornada - América, 2 - Palmeiras, 2;
9.ª jornada - Flamengo, 2 - Peñarol, 1; Corinthians, 2 - Benfica, 1.
Nove jornadas disputadas entre 19 de Junho e 10 de Julho. Um verdadeiro campeonato. Que teve esta classificação final:
1.ª Corinthians, 9;
2.ª América, 7;
3.ª Flamengo, 6;
4.ª Benfica;
5.ª Palmeiras, 2;
6.ª Peñarol, 2.
O Benfica, ainda que ficando longe da vitória na competição, sempre se conseguiu intrometer na ditadura brasileira que apontava quatro equipas para os quatro primeiros lugares, não jogassem elas em casa. Por outro lado, encantava os organizadores da prova que viam com que facilidade a equipa encarnada enchia os estádios onde jogava, tornando-se na grande coqueluche do torneio com um futebol cheio de movimentos e alegria.
Nos cofres da Confederação Brasileira dos Desportos, patrona do Torneio Internacional Charles Miller, tinham entrada nada menos de 8 milhões de cruzeiros só nos primeiros quatro jogos em que o Benfica participara... 'Entre o Maracanã e o Pacaembu, o Benfica salvou o torneio', escrevia a imprensa brasileira. E algumas exibições são de encher o olho, como a do Parque Antárctica, em São Paulo, frente ao Palmeiras do grande Jair Rosa Pinto, vice-campeão do mundo pelo Brasil em 1950, que viera do Flamengo e sairia para o Santos no ano seguinte, com vitória por 2-1 golos de Águas e Coluna. Ou a decisiva para as contas do torneio, também em São Paulo, mas no Pacaembu, face ao Corinthians do famoso guarda-redes Gilmar (e de Luizinho, Baltazar, Rafael e Nelsinho), na qual a arbitragem do alemão Horst Herden fez o resultado tombar para a equipa da casa com um penalty escandaloso contra o Benfica, definindo a vitória dos paulistas. No jogo e no torneio.
Mas o Benfica partia orgulhoso do Brasil. De Lisboa chegava a notícia de que o clube atingira os 27 000 sócios e se iniciava a campanha dos 30 000. Agora, o destino é Caracas. O guarda-redes Bastos vai mais tarde. Queixar-se-ia, depois, de ter sido abordado na rua por uma mulher escultural ao volante de um descapotável vermelho. Desaparece durante três dias: não se recorda de nada. Afirma que tem uma marca de seringa na nádega. E a memória reduzida a zero."

Afonso de Melo, in O Benfica

"Parecia um milagre o que estávamos vendo!"

"Eram dois milagres num dia só: a vontade dos casapianos concretizara o 'milagre da construção' e Otto Glória transformara a equipa 'encarnada'.

Em pleno Parque Florestal de Monsanto, o Casa Pia Atlético Clube ergueu o seu novo campo de jogos, o Estádio Pina Manique. Ao fim de 14 anos sem campo próprio,  a inauguração desta obra admirável', a 29 de Agosto de 1954, produto da 'dedicação dos casapianos', não deixou ninguém indiferente.
O Casa Pia AC convidou 'algumas das melhores equipas nacionais' para o festival de inauguração - o Benfica, o Atlético, o Belenenses, o FC Porto e o Vitória de Setúbal - para disputarem três desafios particulares que abririam a época de futebol. O Benfica, 'empenhado em obra idêntica', sabia o 'quanto é preciso sacrifício, de esforço, de abandono pessoal, para se levar a cabo uma obra desta envergadura' e acedeu com alegria ao convite.
O 'público da capital, ansioso de bola, deslocou-se em grande número ao novo e excelente estádio', e aguardava 'com o mais vivo interesse a apresentação do «team» benfiquista', pois seria a estreia do novo técnico do Benfica, o brasileiro Otto Glória: 'Diga-se, desde já, que tal expectativa não foi totalmente iludida'.
O terceiro e último desafio da festa era considerado o 'encontro principal, disputado entre o Benfica e o Belenenses'. E foi 'um regalo, este jogo!' A equipa orientada e preparada 'pelo famoso e inteligente técnico brasileiro' apresentou quase as mesmas '«pedras» da época finda' mas parecia 'até, que uma varinha mágica neles tocara, para os transformar...'
Disciplinador, Otto Glória implantaria em definitivo o profissionalismo no Clube, e teve resultados visíveis na equipa que se apresentou no 'tapete fôfo de viçosa relva', tanto fisicamente '(não se notou um quilo de gordura a mais!)', como na união dos jogadores, que não eram 'onze unidades, apenas, mas um conjunto'.
O Belenenses não teve argumentos, especialmente no primeiro tempo, que 'em tantas e tantas jogadas em que os seus jogadores se ficavam «pregados no terreno», imobilizados, como que sob a hipnose dos movimentos coordenados e entontecedores dos atletas benfiquistas'. O Benfica coroou este jogo inesquecível com um golo de Salvador, 'com um pontapé de longe que surpreendeu o guarda-redes belenense', e conquistou a Taça Pina Manique.
Pode ficar a saber mais sobre este inovador treinador no Museu Benfica - Cosme Damião, na área 25 - Mestres da Bola."

Lídia Jorge, in O Benfica