"O Prof. José Antunes de Sousa, quando ambos leccionávamos (e, para leccionar, estudávamos) no Instituto Piaget, em Almada, muitas vezes me acompanhou em diálogos vários sobre um desporto de perfil humanista, onde o facciosismo clubista não cabe – um desporto que fomente o civismo e a cidadania e portanto se transforme num espaço privilegiado de socialização e de integração. E terminava a sua colaboração, nos meus trabalhos, com uma frase que não esqueço: “A crença gera biologia”.
Relembro, neste momento, o Konrad Lorenz que distinguia no Desporto uma inigualável forma ritual de luta, que nos ensina a dominar, a humanizar o que, em nós, é instintivamente violento. Não há competição desportiva que, para ser verdadeiramente desportiva, não se afirme, pela competição, por uma vontade imparável de vitória, mas… com normas, com regras, com ética. São precisamente estas normas, estas regras, esta ética, que fazem do Desporto uma indispensável pedagogia. A combatividade, a agressividade, no Desporto, só se justificam, quando reguladas, quando eticamente responsáveis. Daí, que possamos escrever, sem medo de errar, que o Desporto tem, como poucas outras actividades sociais, uma indiscutível missão civilizadora, começando pelo ensino de uma linguagem de não violência. O desenvolvimento do Desporto, designadamente o de alta competição, ou de alto rendimento, supõe planeamento e gestão, organização e produtividade e ainda medidas integradas e especialistas, interessados numa tarefa comum. Ora, tudo isto recusa, dispensa, exclui a violência, a desordem, o caos. O Desporto é um jogo competitivo e portanto uma práxis que não pode deixar nunca de perder a sua condição lúdica, o seu espírito lúdico. Por isso, porque é jogo e não é guerra, ganhar ou perder, no Desporto, exige um clima de respeito mútuo, pois que os que ganharam e os que perderam foram iguais, no esforço, no pundonor, na vontade de vencer.
Um estudioso, como o Prof. Sílvio Lima, escreveu, na década de 30 do século passado, que “o verdadeiro desporto não é para ser fruído como espectáculo senão de quando em quando e à maneira helénica, pura, cultural. Quem considera o desporto uma disciplina formadora do homem, isto é, quem faz do desporto um método pedagógico, maiêutico, humanístico, sentirá sempre um arrepio invencível (um sacer horror) por todo o exibicionismo estadial. Há um pudor, uma frágil pudicícia desportiva, que importa defender” (Desportismo Profissional, Editorial Inquérito, Lisboa, p. 40). Confesso o meu pecado: no Desporto, sempre fui mais espectador do que ator. Em rapaz, as Salésias foram a minha “segunda casa”, mas sem nunca pisar a relva do primeiro campo relvado do País. O futebol, o basquetebol, o andebol, o râguebi nunca os pratiquei, como jogador federado. Mas sempre alegremente os acompanhei, desde criança, ao lado do meu saudoso Pai, para aplaudir os atletas de camisola azul e cruz ao peito. Nesses recuados anos (se bem me lembro) os treinos eram trissemanais; a preparação física poderia assim sintetizar-se: corridas à volta do campo e um pouco de Ling, para completar; e, no “treino de conjunto”, já se topavam treinadores tacticamente engenhosos. Só que o profissionalismo ainda não se implantara e, tecnologicamente, nada havia ainda de significativo. Sim, havia de facto um “amor à camisola” que morreu, anos depois, quase definitivamente. Mas era pouco, muito pouco, diante do que hoje prescreve a metodologia do treino desportivo e a própria medicina desportiva e as exigências, de rigor extremo, do profissionalismo no futebol. E, assim, com este panorama como ponto de partida, o futebol que eu contemplava, embevecido, nas Salésias, não poderia ter o ritmo, a intensidade, a força do futebol actual.
Hoje, ganha quem tem os melhores jogadores, os melhores treinadores, a melhor organização e… sabe o que faz e porque faz! Chega a ser uma crença, inteiramente necessária à coesão do grupo. Já num dos meus anteriores artigos eu citei Bruce H. Lipton autor do livro The Biology of Belief (tradução portuguesa da Sinais de Fogo, Lisboa, 2015). Volto a ele: “A ciência revelada neste livro define o modo como as crenças controlam o comportamento e a actividade genética e, consequentemente, o desenvolvimento das nossas vidas” (p. 243). Há valores em que se torna absolutamente indispensável acreditar, se queremos uma sociedade mais humana. O meu Amigo, Doutor Pedro Abreu, professor de engenharia informática da Universidade de Coimbra, teve a gentileza de facultar-me uma entrevista de Nuccio Ordine, professor, filósofo e crítico literário italiano, especialista em Giordano Bruno (1548-1600), um dos mais conhecidos filósofos do Renascença, onde colhi o seguinte:
“Temos gente superespecializada e que perdeu o sentido geral e global do saber. Hoje, as escolas e as universidades preparam os alunos para seguirem uma especialização e isso é perigoso, porque as escolas e as universidades não proporcionam uma cultura geral. Einstein já dizia que a especialização pode matar a curiosidade e esta está na base do avanço da ciência e da tecnologia. Por exemplo, a actual directora do CERN (o laboratório europeu de física de partículas) é uma italiana, Fabíola Gianotti, que fez estudos clássicos, aprendeu piano durante dez anos e é, simultaneamente, uma especialista em Física de renome mundial. Os maiores arquitectos italianos, como Renzo Piano, fizeram estudos clássicos. Uma cultura geral de base é absolutamente indispensável a qualquer especialista”. No meu modesto entender, é indispensável porque sem prévia revolução das mentalidades não há revolução científica…
Sou tentado a folhear, de novo, a entrevista de Nuccio Ordine: “O que vemos na City, em Londres, no centro financeiro britânico, são pessoas de grande elasticidade mental, pessoas que vêm dos estudos clássicos ou da filosofia, porque compreendem melhor o mundo do que os especialistas em economia e programação”. Para mim, as escolas e as universidades não devem ensinar aos alunos “generalidades”, ou um confuso sincretismo, ou um maçudo enciclopedismo, mas os princípios estruturantes, ou fundantes, do saber. Qualquer especialidade nasce de um tempo e de um espaço; tem a sua individualidade histórica; deverá exercer-se criticamente, para esclarecer o sentido e a significação da sua prática. Todos estes grandes sectores pedem bem mais do que é habitual fazer-se, numa prática profissional. Numa palavra só: pedem “cultura”, que se concretiza na crença e na vivência de determinados valores. Sem iniciação ao pensar, não há ciência. A formação universitária será absolutamente lacunar, se ensinar uma ciência que não é cultura, se esquecer os valores que humanizam a própria vida. Recordo o Gilles Deleuze de L’Image-Mouvement:
“Os grandes autores de cinema são comparáveis não só a pintores, a arquitectos, a músicos, mas também a pensadores”. E Jean-Luc Godard, em Jean Luc-Godard par Jean Luc-Godard (Ed. de Minuit, Paris, 1983) esclarece: “Há muitas maneiras de fazer filmes. Como Jean Renoir e Robert Bresson, que fazem também música. Como Serge Eisenstein, que fazia também pintura. Como Stroheim, que também escrevia novelas faladas, nos anos do cinema mudo. E como Rosselini que faz simplesmente filosofia” (p. 238). Enfim, para saber de cinema, é preciso saber mais do que cinema. Em tudo, há um perfil cultural, que é preciso descobrir, para entender o conhecimento científico, para nos entendermos a nós mesmos e ao mundo onde somos. Em tudo, há valores, para além das ciências, em que é preciso acreditar e que até podem tornar mais forte e consciente do seu valor uma equipa de futebol."