terça-feira, 3 de outubro de 2017

Para onde vais Benfica?

"1.O Benfica encontra-se num daqueles ciclos viciosos em que uma equipa de futebol vai acumulando maus resultados (e piores exibições), em parte, por vir de maus resultados. Esta espiral depressiva está a afectar o comportamento colectivo, levando a que os mesmos jogadores que ergueram vários troféus aparentem ser, agora, banais. Mas está bem longe de explicar tudo.
Temos assistido à revelação de problemas larvares, presentes no jogar do Benfica há demasiado tempo. Neste sentido, permanece um mistério perceber a razão porque contra equipas mais fortes (ou até face a equipas assim-assim – que é o que são Basileia e Marítimo), o Benfica teima num 4-4-2 com Jonas a nove e meio. Este sistema, que funciona quando a equipa está bem e quando tem o jogador da posição oito em forma, revela-se curto em partidas mais exigentes e, ainda mais, quando é preciso gerir vantagens no marcador.
Continua a ser difícil compreender a razão para o Benfica insistir, apenas e só, num sistema que está condenado a não funcionar demasiadas vezes, que exige muito dos jogadores, enquanto coloca o meio-campo frequentemente em inferioridade numérica e sem rasgo na organização ofensiva.
É manifesto que o Benfica perdeu demasiados jogadores de grande qualidade na defesa e não encontrou substitutos. Como já aqui escrevi repetidamente, esta lacuna tem mais consequências na participação dos defesas no ataque do que na forma como a equipa defende. Mas o que dizer da pizzidependência do Benfica? Não só não existe um substituto claro para o bragantino (é Chrien? é Krovinovic?), como, pior, não se vislumbra um sistema alternativo que permita encaixar outros jogadores e até proteger as baixas de forma de Pizzi.
Para além de questões conjunturais, o problema do Benfica é, ao mesmo tempo, falta de arrojo táctico e ausência de flexibilidade estratégica na forma como aborda os jogos. É isso que se quer nos maus momentos, em lugar de se insistir na mesma tecla. Se nada fizer, Rui Vitória será vítima das suas próprias hesitações.
2. Em Basileia, e, sintomaticamente, também na Madeira, o Benfica entrou em campo de pijama. Não no sentido figurado, como se a explicação para os maus resultados fosse a atitude competitiva. A equipa jogou de pijama porque utilizou um equipamento inenarrável, de um cinzento que nada tem a ver com as cores do Glorioso. A uma das noites europeias mais negras da história do Benfica fica, por isso, associada uma imagem carregada de simbolismo negativo. Pior mesmo só o símbolo do clube estampado a preto e branco. A menos que os regulamentos tenham sido alterados, o Benfica está obrigado a ostentar um símbolo com cores, que "corresponde ao respeito e à dignidade do próprio Clube". A nossa História deveria levar a que, entre as necessidades comerciais da ADIDAS e a fidelidade à identidade do Benfica, não se hesitasse por um momento na defesa do Clube."

E a bola pedia-me: 'Chutem-me, por favor!'

"Albert Stubbins: muita gente nunca terá ouvido falar de Albert Stubbins..
Gosto de nomes. Os nomes desenham personalidades. Vamos lá ver: Eusébio não seria Eusébio se se chamasse Ernesto. E Pelé? Seria o quê se não lhe tivessem dado essa alcunha mágica que se confunde com futebol?
Não são perguntas fáceis de responder.
Eu não sei responder a elas.
Mas sei que não há ninguém mais napoleónico do que Napoleão ou mais garboso do que Greta Garbo.
Ou mais salazarento do que Salazar.
Há nomes que se adjectivam. Albert Stubbins não é um deles.
Bob Spitz escreveu um livro extraordinário sobre os Beatles: verdadeira enciclopédia.
Refere, a determinada altura, que John Lennon era, basicamente, desligado do desporto. E do futebol em particular.
Talvez não fosse bem assim.
Albert Stubbins foi um avançado-centro do Newcastle United e do Liverpool dos anos-40 e 50. John Lennon usou-o para aporrinhar Paul McCartney e, de facto, eles eram especialistas em aporrinharem-se mutuamente.
A brincadeira surgiu durante a escolha de personagens históricas que haveriam de compor aquela capa inesquecivelmente psicadélica de Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band Hearts Club Band.
O facto é este e já o contei por mais de uma vez: no meio de Fred Astaire, Groucho Marx, Alistair Crowley, Aldous Houxley e outros quejandos, Paul decidiu incluir um rapaz que cometera a proeza de marcar 60 golos num campeonato com a camisola do Everton. John não quis ficar atrás: Gandhi, Nietzsche, H.G. Wells, o Marquês de Sade e Albert Stubbins figuravam na sua lista.
Bem, mas eu quero é falar de George Robledo: Jorge Robledo Oliver, nascido no dia 14 de Abril de 1926, em Iquique, no Chile, filho de pai chileno e mãe inglesa.
Aos 5 anos já estava na Europa. Em Inglaterra, pois claro! Em Brampton, que não é dos lugares mais cosmopolitas da Grã-Bretanha mas que tem minas de carvão nas quais o jovem Robledo começou cedo a escarafunchar.
Nos intervalos da fuligem, jogava como avançado no Huddersfield. Em 1946 assinou um contrato profissional com o Barnsley e mandou às malvas o chapéu com a lanterninha na pala.
Dir-me-ão: a que propósito aparece aqui este tal de Robledo, vindo de parte nenhuma com o Che?
E eu respondo: por causa de John Lennon.
Em 1951, Jorge Robledo tornou-se no primeiro sul americano a disputar a final da Taça de Inglaterra. Ah! A Taça de Inglaterra!!! Quem não gostaria de jogar uma final da Taça de Inglaterra?
Robledo jogou duas. E venceu ambas. Com a camisola do Newcastle United, derrotou o Blackpool na primeira e o Arsenal na segunda, logo no ano seguinte. E aí ficou para a história.
Minuto 84: uma bola vem lá de um lado qualquer pedindo - «chutem-me! Chutem-me por favor!». 
Jorge Robledo era um cavalheiro. Não ficava imune aos desejos de uma dama, sobretudo quando essa dama era a mágica senhora das paixões: a bola.
Por isso não pediu licença nem fez uma vénia: simplesmente chutou.
Foi golo.
E Jorge, que nessa altura já era George, ficou congelado numa fotografia no momento do remate, preso ao golo indefensável e irretocável.
Em 1974, John Lennon editou Walls and Bridges. Vivia uma fase conturbada da relação com Yoko Ono e aproveitou para se escapulir para a Califórnia com a assistente pessoal de Yoko, May Pang. Talvez tenha sido uma certa influência oriental a conduzi-lo para um disco com muito de saudosismo. Nobody Loves You /When You-re Down and Out, Scared ou Old Dirty Road, revelam um Lennon muito entregue aos seus próprios fantasmas.
Talvez por isso tenha decidido ilustrar o álbum com desenhos seus de infância. Entre eles há um que fica particularmente bem emoldurado na parede branca de uma crónica: é de John Winston Lennon com apenas 11 anos; representa o golo de Jorge Robledo ao Arsenal na final da Taça de Inglaterra. 
Difícil seria, apesar do que dizem os compêndios, que um rapazinho de Liverpool não gostasse de futebol.
Um fascínio como o que sentia por uns olhos verdes. E cantava: The green eyed goddamn straight from your heart.
Isso! Direito ao coração. Como o golo de Robledo."

Como se o mar se lembrasse do nome dos seus afogados

"Os Benfica-Sporting ou Sporting-Benfica são sempre motivo infalível para uma crónica. Ou, então, falar de muitos deles. Tenho tantos e tantos na memória, que seria impossível recordá-los a todos. Mas relembro o ritmo do romance do dérbi.

Não tenhamos dúvidas. Eu, pelo menos, não tenho. O Benfica-Sporting ou Sporting-Benfica é, em Portugal, o jogo-de-todos-os-jogos.
Tantos e tantos Benfica-Sporting-Benfica tenho na minha memória, que recordá-los seria como se o mar soubesse de cor o nome de todos os seus afogados.
Mais de 100 anos de nomes e de números, de lugares e acontecimentos.
Mais de 100 anos de páginas de jornais plenas de paixão.
Mais de 100 anos de fintas que mereceriam sonetos. De defesas que mereceriam sonatas. De golos que mereceriam bibliotecas ou óperas inteiras.
'Houve uma vez...'
Haverá sempre 'Houve uma vez...'
Houve uma vez, em 14 de Julho de 1919, no Campo de Benfica, na finalíssima do Campeonato de Lisboa, que o Sporting entrou em campo apenas com dez jogadores, porque não tinha mais para disputar o encontro.
Diria alguém, com requintes de ironia: 'O Sporting estava em inferioridade numérica, mas o Benfica estava em inferioridade psicológica'.
Nada seria mais verdadeiro.
O Sporting venceu por 1-0, golo de Perdigão.
Venceu igualmente a segunda mão da finalíssima, por 2-1. E foi campeão de Lisboa.
Em ambos os jogos houve violência e luta corpo a corpo por entre o público.
E aí ninguém sabe onde acabou a inferioridade psicológica e começou a superioridade numérica.

Quando os benfiquistas faziam barulho a mais
Houve na véspera daquele Benfica-Sporting, nas Amoreiras, de 3 de Março de 1940, que Peyroteo conta no seu livro de memória. Manuel Marques gostava de irritar o treinador Szabo, que falava um português atrapalhado. E interrompia-lhe a prelecção, dizendo: 'Isto está tudo muito bem, mas o senhor não está a contar com os adeptos deles que fazem muito barulho e influem no resultado'.
Szabo zangava-se: 'Sinhor! Carágo! Dar uma cabêçada para si. Não brincar e não rir que não ter graça nênhum!'
E Manuel Marques insistia: 'Eles fazem muito barulho. A gente não vê a bola, não vê nada. Só houve gritar Benfica, Benfica, Benfica. É horrível!'
E Szabo, então, dava táctica definitiva: 'Passar bola bons condições e Fernando fazer calar tudos, gajos não piar mais...'
E Fernando Peyroteo faz calar todos. Com golos: um, dois e três. 'Caréga Maria!'
Houve aquele outro jogo de 17 de Outubro de 1965, no Estádio da Luz, com Lourenço, que viera de Académica e a quem, por piçarra, chamavam a 'Vaca', a fazer quatro golos, dois deles de chapéu a Melo.
'Não foi uma questão de o guarda-redes ser pequeno, foi uma questão de ter ângulo para marcar os golos assim', diria Lourenço, mais tarde, defendendo-se da troça dos que diziam que tinha marcado quatro golos a um guarda-redes anão. E Melo sofrendo o 'síndroma de Persónio' e nunca mais jogando outro derby.
O imarcescível Nelson Rodrigues costumava escrever: 'Tudo é Fla-Flu e o resto é paisagem'.
Pois era mesmo isso que me apetecia escrever.
Mais de 100 anos de nomes. A dimensão dos grandes nomes.
As imensas madrugadas das vitórias as longas noites das derrotas.
'Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...'
Poemas de noventa minutos.
Domingos transformados em catástrofes.
Alfama e Madragoa; a ponte e o Cristo-Rei; e leão do Marquês.
O Chiado e o Rossio. A Estrela e Campolide.
As noites inquietas do Bairro Alto.
As ruínas do Carmo e o sino da Igreja da Trindade.
Da Travessa do Guarda-Jóias ao elevador da Bica.
Da Penha de França à Pampulha.
Do Largo do Conde Barão à Rua do Sol ao Rato.
Tudo isso é também Benfica e Sporting.
Equipas inteiras lidas ao ritmo dos poemas.
Azevedo, Cardoso e Marques; Barrosa, Canário e Veríssimo; Jesus Correia, Vasques, Peyroteo, Travaços e Albano.
Costa Pereira, Mário João e Ângelo; Cavém, Germano e Cruz; José Augusto, Eusébio, Torres, Coluna e Simões.
Carvalho, Pedro Gomes e Hilário; Fernando Mendes, Alexandre Baptista e José Carlos; Figueiredo, Osvaldo Silva, Mascarenas, Geo e Morais.
José Henrique; Artur, Humberto Coelho, Messias e Adolfo; Toni e Jaime Graça; Eusébio, Artur Jorge, Nené e Jordão.
'Tirem-me daqui a metafísica!'
Fados canalhas; homens bêbados; montras de leituras; lençóis dependurados nas janelas.
O rio ao fundo.
'Macio Tejo, ancestral e mudo'.
O transistor pousado sobre o balcão de mármore da taberna: 'Goooolooooooo!'
O grito fugindo ao longo das ruelas estreitas.
Fitas coloridas de plástico nas portas dos talhos.
Miúdos dependurados nas boleias dos eléctricos.
Prazeres e Gomes Freire.
'Houve uma vez': poderia continuar assim e nunca mais acabar.
O romance dos Benfica-Sporting é um poema interminável.
Com Lisboa e Tejo e tudo.
Não me digam que já não têm saudades de um Benfica-Sporting, porque eu não acredito..."

Afonso de Melo, in O Benfica

O golo adversário que a Luz aplaudiu

"De regresso ao Estádio da Luz, Rui Costa, após ter marcado ao Benfica, não conseguiu conter as lágrimas.

Para o jogo de apresentação da época 199/97 do Benfica, o adversário escolhido foi a Fiorentina. A expectativa era imensa, tanto pela oportunidade de ver os novos jogadores, como pelas vitórias na digressão por Itália e Inglaterra. Assim, a 13 de Agosto de 1996, o Estádio da Luz lotou.
Havia ainda uma outra atracção que mexia com o público, o regresso de Rui Costa. O menino que se estreou, de 'águia ao peito', nos infantis na época 1980/81, voltava a um recinto que bem conhecia, no qual conquistou o Mundial em 1991, com as cores de Portugal. Porém, desta vez - pela primeira vez - como adversário do Benfica. Os muitos anos no Clube tinham criado um elo, que se foi tornando cada vez mais forte. O sentimento era partilhado pelos adeptos, neste reencontro 'emocionaram-se (...) os benfiquistas com a recepção a Rui Costa. A saudade que os estrangeiros não sabem traduzir, bateu no coração encarnado'.
O encontro começou de feição para os benfiquistas, que marcaram logo nos primeiros minutos, por intermédio de Valdo, 'na transformação de um livre (superiormente executado)'. A Fiorentina tentava procurar o empate através de uma pressão alta e rápidas transições, e o sector que mais se evidenciava era precisamente o meio-campo, com 'Rui Costa em grande, pois claro, oferecendo lances de eleição a Batistuta'. Os futebolistas profissionais têm, entre outras qualidades, a de se conseguirem abstrair do ambiente à sua volta e suportar as suas emoções durante os 90 minutos, traçar as jogadas na cabeça e executarem-nas com os pés, como se se tratasse de algo puramente mecânico.
Contudo, a um minuto do fim partida, o 'maestro' não se conseguiu conter. 'Após passe de Batistuta, entrou na área e rematou com toda a sua técnica, para belíssimo golo'. De imediato, 'deitou as mãos à cara, como menino que, subitamente deseja esconder as lágrimas de uma multidão que o ovaciona e que, revelando grande sensibilidade, grita o seu nome em coro'. Nem o árbitro da partida, Vítor Pereira, ficou indiferente à situação e 'foi o primeiro a ir ao seu encontro'.
Pode ficar a saber mais sobre este sensacional jogador na área 23 - Inesquecíveis do Museu Benfica - Cosme Damião."

António Pinto, in O Benfica