quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Lições a tirar do defeso (e a Luz à espera...)

"Mais uma vez, este período vestibular do Benfica foi desolador, em termos de resultados, mas não só. Sinto-me algo desconfortável.

Defeso
1. «Aleluia, os jogos a feijões estão no fim», assim escreveu José Manuel Delgado na passada segunda-feira. Ainda bem! Chegou ao fim a chamada pré-época. A minha antipatia não tem a ver, apenas, com a natureza entediante da maior parte das partidas que se fazem e das experiências entre jogadores-que-já-sabe-que-não-ficam-nos-plantéis e atletas-que-ainda-não-chegaram-de-férias. Também não gosto da própria expressão, preferindo antes dizer primeira fase da época. É que só o prefixo pré é, em si mesmo, indutor de provisoriedade e de complacência que a todos parece contagiar, desde os técnicos, às equipas e aos adeptos.
Mais uma vez, este período vestibular do Benfica foi desolador, em termos de resultados, mas não só. Na altura em que escrevo bem poderia escudar-me nos lugares-comuns que sempre se ouvem e lêem nestas circunstâncias. «Que a seguir é que é a doer», que «o resultado é o que menos interessa», que «na segunda parte com as substituições as coisas naturalmente pioraram», que «as pernas ainda pesam muito» (constatação, aliás, deveras curiosa, pois parece que, do outro lado, estão equipas de pernas leves...), etc. Aliás, o relator (agora parece que a moda é dizer narrador) da BTV, mal acabou o jogo contra o Leipzig, não poderia ser mais explícito: «A sério vai ter já no próximo sábado». A sério? Então estes jogos não foram sério? Então os rapazes não são profissionais para assim jogar sempre, a maioria paga a peso de ouro?
Não julguem o que escrevo como uma crítica inoportuna ou injusta. Desejo, do fundo do meu coração bem vermelho, que tudo o que aqui exprimo seja totalmente desmentido pelos factos (e vitórias) durante esta temporada. Acontece que o meu benfiquismo é muito exigente e radical. Não me consolo com frases planfletárias atiradas para cima dos reptos que enfrentamos, como se, só por si, tivessem o condão de obnubilar as coisas que correm menos bem.
Também estou consciente que o Benfica escolheu (alguns) adversários fortes, não entrando, por exemplo, na lógica portista de fazer brilharetes com clubes de plano inferior, bem mais simpáticos, e que permitem legendas, tais como «nasceu um novo dragão» ou «50 mil adeptos em êxtase», na apresentação perante o poderoso Corunha.
Também poderia apelar à tradição recente de más pré-épocas que resultaram em excelentes temporadas, com vitórias e campeonatos ganhos. É verdade, e assim espero que continue a ser. Mas não transformemos em aparente regra o que não se pode induzir como tal. Sempre prefiro uma boa pré-época, até pelo ânimo que nos fornece e nos contagia e pelo respeito que incute nos adversários. Em qualquer caso, cometer erros pois que seja agora e não depois.

2. Não é que esteja pessimista. Há todas as condições para alcançar o penta e ter bom percurso na Europa. Mas sinto-me algo desconfortável por vários aspectos:
Em primeiro lugar, pelos resultados, que é o que, depois do decurso do tempo, fica no registo do passado. Sete jogos, três vitórias e quatro derrotas. As vitórias contra formações de trazer por casa ou perto de disso, em particular um clube da 2.ª divisão helvética (Xamax) e um ignoto clube inglês do 3.º escalão (Swindow Town). Um total de 15 golos sofridos e duas goleadas, uma das quais de todo impensável (5-1 contra o Young Boys).
Em segundo lugar, pelas modestas exibições que, por exemplo, num torneio com algum prestígio e no magnífico Emirates londrino, foram quase indigentes.
Em terceiro lugar, julgo que se perdeu tempo a fazer experiências, sabendo os técnicos, os próprios jogadores (pelo menos, desconfiando) e até nós, adeptos fervorosos, que não valia a pena insistir. André Horta vai ser emprestado (com muita pena minha), mas continua a fazer uns minutinhos. Hermes não tem lugar na equipa (e suspeito que Pedro Pereira também não), mas estão no plantel desde Janeiro. Já agora, ainda vale a pena fazer experiências com Carrillo?
Em quarto lugar, pela inusitada série de lesões que já chegou ao plantel. Se não me engano, até agora, sete, ainda que o prometedor Krovinovic esteja impedido por razões diferentes. Sou leigo na matéria, mas voltando-se a repetir, em parte, o início da passada época, pergunto-me qual a razão para tanta enfermaria, sobretudo quando penso que tal não aconteceu nos nossos rivais.
Em quinto lugar, com a magna questão da defesa. Já aqui escrevi que as transferências de três pilares da época transacta são difíceis de colmatar e não há golpe de magia para, de um momento para o outro, os fazer esquecer. Acontece que não foi só perder 3 dos 5 titulares indiscutíveis. É que Luisão e Júlio César tem mais um ano de idade. Os negócios foram óptimos, mas acontece que «sol na eira e chuva no nabal» é cada vez mais uma impossibilidade. Visto de fora - e peço antecipadamente desculpa de eventualmente estar a cometer alguma injustiça por natural insuficiência de informação - o rombo foi grande e o despertar para o problema está a ser tardio e ainda longe de ser colmatado a dias do início das competições. De qualquer modo, espero que se encontrem boas e duráveis soluções para o sector que ganha campeonatos. Por momentos, volto ao relator da BTV para o citar quando, por volta dos 35m. do jogo com os alemães, o promissor Bruno Varela fez duas magníficas defesas na mesma jogada. Disse: «É uma resposta para quem está sempre a falar que é preciso contratar um guarda-redes». Perante tão preclaro silogismo - o rapaz fez duas defesas, as defesas foram boas, logo não há necessidade de contratar ninguém - calo-me já.

3. Finalmente, uma nota de alguma perplexidade. Refiro-me ao facto de este ano não ter havido - na dita pré-época - jogo de apresentação no Estádio da Luz. Bem sei - e aplaudo - que a equipa jogou na Suíça (e mesmo na Inglaterra), assim satisfazendo muitos compatriotas dessas paragens. E até jogou no Algarve. Mas, na Catedral, só se estreará no jogo do campeonato contra o Sp. Braga! Tenho pena e é quase inédito. Acresce que também ainda não se disputou a Eusébio Cup, o que também lastimo. Há certamente motivos para explicar estas omissões, mas lá que é pena, é.

Faça-se Luz
«Luz interditada pelo Instituto Português de Desporto e Juventude», assim dizia (e sonhava) o Jornal de Notícias, diário de indisfarçada preferência clubista regional. Tudo por causa de um regulamento de há anos e de umas tarjas e bandeiras que incomodam outros clubes. Vai daí, umas queixinhas e o despertar do tal douto Instituto. Luís Filipe Vieira já esclareceu e bem este gravíssimo problema da Segunda Circular. Ele há coincidências... Moral da estória: vale tudo, menos arrancar olhos, para tentar impedir novo campeonato para o Sport Lisboa e Benfica. E ainda estamos no adro do... dito!

Contraluz
- Palavra:
Bascular, cada vez mais no futebol metaforicamente empinado. Não confundir com vascular.
- Equipamento (de que mais gosto a seguir ao tradicional do meu Benfica, este ano 5 estrelas):
O da Roma, numa sábia mistura de tons de vermelho, laranja e branco.
- Terra:
Grândola. Saúdo a chegada da equipa do Hóquei Clube e Patinagem de Grândola à primeira divisão de hóquei em patins. É o clube de Portugal Continental mais a sul, desde sempre, na competição!
- Pensamento:
«Porque é que estranhas tanto que um deputado deixe o partido e vá ser deputado para outro lado? O jogador de futebol também muda de clube»
(Vergílio Ferreira, 1916-1996)"

Bagão Félix, in A Bola

Seferovic é uma semente de esperança

"Pode nunca vir a ser um enorme goleador; mas evoluindo como se espera, e se a equipa o ajudar poderá chegar facilmente a números nunca atingidos na carreira, tem tudo para consegui-lo: talento, inteligência e capacidade de adaptação.

Em Fevereiro de 1999, Batistuta era o melhor ponta-de-lança do Mundo, no mais conservador campeonato do planeta (o italiano), ao serviço de uma equipa que não era uma potência (Fiorentina). Certa noite, em Lisboa, cruzou-se com Mário Jardel- foram apresentados e estiveram um bom pedaço à conversa. O argentino, que estava lesionado (lesão que terá custado o título aos viola), conhecia Super Mário do FC Porto e o diálogo teve o golo como pano de fundo. Rui Costa interrompeu a conversa: 'Bati, sabes quantos golos marcou este tipo a época passada?' Como não obteve resposta, o Maestro esclareceu: '40!' O bombardeiro reagiu com espanto, sorriu e dirigiu-se a Jardel: 'Mário, os defesas em Portugal têm duas pernas?'

Integrado numa equipa estruturada, mas que lhe permite usufruir de alguma liberdade; habituado a cumprir guiões rígidos e a jogar quase exclusivamente de memória, Seferovic terá descoberto, em poucas semanas, as virtudes da intuição e do instinto; cresceu e habituou-se a entender o jogo como aula prática da teoria aprendida nos treinos, mas bastou-lhe ter por perto um génio como Jonas para estimular as virtudes mais infantis e criativas do jogo. É essa capacidade para desenvolver outros conceitos, dar seguimento a mais sugestões, correr alguns riscos, no fundo, descobrir-se a si próprio, que está a fazer dele um jogador melhor; é a conclusão de que todos os problemas não têm sempre as mesmas soluções que o tornará um avançado mais interessante, valioso e goleador.

O Benfica é, também, a equipa mais dominadora que já integrou; aquela com mais obrigações ofensivas, com maior e melhor arsenal bélico para alimentar os especialistas do último toque. Tal como tantos outros que vieram de longe com números pouco exuberantes para a tarefa que desempenham, Seferovic parece condenado a marcar no Benfica mais golos do que em qualquer dos clubes que representou até hoje. Tem tudo para consegui-lo: talento, inteligência e capacidade de adaptação.

Seferovic veio para Portugal como jogador competente, trabalhador, solidário, disciplinado, corajoso, obediente e razoavelmente eficaz. Chega também na idade perfeita (25 anos) para atingir o máximo das suas potencialidades. Se até agora entendeu como dogmas as instruções dos treinadores, despojando do reportório toda a pompa mas também toda a superficialidade, chegou o momento de mostrar argumentos para depurar improvisação, assombro, ousadia e golo. Não sendo um virtuoso que tira coelhos da cartola, é um bom exemplo da sempiterna distinção entre técnica e habilidade. Nunca lhe detectámos um truque de magia mas já o vimos desmarcar-se em alta velocidade, deixar a bola correr ao seu lado e, de longe, porque o guarda-redes estava adiantado, aplicar um tiro fabuloso com o pé direito (ele que é esquerdino) para um golo inesquecível.

Participa e dá critério ao desenho de aproximação à baliza; sendo atacante, está nos antípodas daqueles que não dão a bola nem à mãe se sentirem que têm 1% de probabilidades de fazer golo. Não tarda, essa aparência desprendida acabará por ganhar evidência mais focada na estatística - no dia em que tomar gosto à glória do último toque as coisas vão mudar (mudam sempre) um pouco de figura. Essa é, de resto, a evolução mais preciosa que poderá fazer, acrescentar à aparência de funcionário cumpridor, que nada tem a esconder e chega a ser gentil com os adversários, o perfil de um homem com instinto assassino, que toma decisões contundentes e não tem contemplações com as vítimas. Pode nunca vir a ser um enorme goleador, mas evoluindo como se espera, e se a equipa o ajudar, poderá chegar facilmente a números nunca atingidos na carreira - entre os 20 e os 30 golos numa época. É uma semente de esperança no Benfica 2017/18.

Figo esquecido? Eusébio em 23.º?
O primeiro lugar de Maradona tranquiliza o adepto e a presença de Coluna é um ato de justiça. Mas Eusébio não pode ficar em 23.º lugar (é uma vergonha sem precedentes nestas listas) e é um escândalo que Figo não esteja lá. A ausência do ex-sportinguista, Bola de Ouro e reconhecidamente um dos mais extraordinários futebolistas de todos os tempos, corrói de indignidade a iniciativa da revista inglesa.

A defesa da águia e o golo do Leipzig
Recuperar a bola depende de estratégia, funcionamento colectivo, posicionamento em campo e orientação do treinador. Mas para defender bem é fundamental o contributo de cada um dos elementos integrantes no processo – o seu comportamento, a sua inteligência e a correta utilização de todas as armas. Nesse lance a defesa estava completa e no lugar. Mas nenhum jogador fez o que devia. Assim é difícil. (...)"

Futebol é festa!

"Enquanto o presidente do Sport Lisboa e Benfica fala das obras de ampliação do Caixa Futebol Campus e do futuro, outros em descalabro financeiro vivem num desespero diário de plantar notícias que a realidade desmente.
No próximo sábado na Supertaça, em Aveiro, e no dia 9 com o regresso dos campeões ao nosso Estádio, no arranque da Liga NOS, rumo ao penta. É esta a festa do futebol que devemos celebrar."


PS: Estou à espera da queixa e consequente processo, que como é óbvio dará em condenação, ao Benfica, devido a este comunicado!!!

Os negócios no futebol

"Há o desporto e há o futebol. São duas realidades distintas. O futebol nasceu como desporto - ainda há quem o jogue com esse espírito -, mas tornou-se sobretudo uma indústria globalizada, organizada num sistema que tem no topo uma meia dúzia de equipas que passaram a ser gigantes no entretenimento.

É um negócio que tem os palcos principais na Europa e público diante de ecrãs, cada vez mais a Oriente. É comandado por investidores americanos, fundos de investimento das petro-monarquias do Golfo, patrocinadores chineses e, entre outros, interesses milionários russos. Em fundo a este negócio estão os suculentos direitos de difusão dos jogos e a exploração da imagem das estrelas associadas, os jogadores e alguns dos treinadores.
Um estudo publicado no começo do ano pela UEFA mostra que um pequeno grupo de grandes clubes que são empresas, estão seis vezes mais ricos que há 20 anos. Esse grupo de elite é sempre o mesmo: Real Madrid, FC Barcelona, Bayern de Munique, Manchester United, Liverpool e Juventus de Turim. O Paris Saint-Germain faz por se juntar, tal como o Manchester City e o Chelsea. O Milão perdeu o estatuto de parceiro no topo. Há outras equipas alemãs, holandesas, espanholas e portuguesas com aspirações, mas o clube de elite fecha-se cada vez mais.
O negócio do futebol parece entrado em perigosa fase de bolha financeira. Até hoje, só houve três futebolistas cuja contratação tenha roçado ou ultrapassado os 100 milhões de euros: Paul Pogba, Gareth Bale e Cristiano Ronaldo. Mas, neste último ano, o pagamento de valores exorbitantes, desproporcionados, tornou-se moeda comum. Pagar 30 milhões por um jovem futebolista cuja classe está por testar com consistência, tornou-se vulgar. Todos vemos transferências multimilionárias em que o jogador contratado acaba por ficar sentado entre os suplentes. Apesar disso, a espiral inflacionista está generalizada.
O Manchester City já vai, neste verão, em 220 milhões de investimento em novos futebolistas (49 milhões para receber o português Bernardo Silva), sendo que 138 milhões foram destinados para defesas laterais: Mendy (58 milhões), Walker (51 milhões) e Danilo (30 milhões por este brasileiro ex FC do Porto e ex-Real Madrid). O Manchester United, de Mourinho, desembolsou 85 milhões pelo belga Lukaku e o espanhol Morata foi transferido para o Chelsea por 80 milhões.
Agora, a notícia de que o Paris Saint-Germain, nas mãos de um multimilionário do Qatar, se dispõe a pagar ao Barcelona a cláusula de rescisão de Neymar, de 220 milhões, desconcerta. É sabido que o valor de mercado corresponde ao que alguém se dispõe a pagar. Mas estas quantidades que o futebol está a movimentar encaixam mal, parecem absurdas. O dinheiro deste anunciado contrato dava para proporcionar soluções que permitissem atenuar a crise dos refugiados, dava para reconstruir lugares que a guerra devastou, dava para que a ONU tivesse meios de que necessita para intervir e ajudar. Até dava para criar vários museus que iniciassem mais gente no gosto pelas artes.
Há sinais inquietantes. No último ano vimos como os todo-poderosos presidentes da FIFA (Blatter) e da UEFA (Platini) caíram, acusados de benefícios impróprios. Há duas semanas, foi outro patrão do futebol europeu, Ángel Villar, presidente, há 28 anos, da Federação Espanhola e homem forte na UEFA, obrigado a demitir-se, detido e acusado de corrupção continuada.
Ultimamente, viu-se como a China quer tornar-se potência no futebol. Mas a Confederação Asiática acaba de avisar que 18 clubes, incluindo 13 de elite, poderão ser excluídos das competições oficiais por terem salários em atraso aos seus futebolistas. Entre os clubes mencionados estão equipas ambiciosas como o Shangai Shenhua e o Guangzhou Evergrande, que têm contratado estrelas do futebol europeu e sul-americano.
Será que a bolha do futebol asiático está à beira de rebentar? E no futebol europeu? Para além dos 222 milhões de Neymar para o PSG, o Real Madrid mostra-se interessado na nova pepita francesa, Kylian Mbappé, avançado de 18 anos, por quem o Mónaco, treinado por Leonardo Jardim, faz preço em 160 milhões de euros – o negócio alimenta-se de novidades e o Real entende que precisa de preparar um sucessor para Cristiano Ronaldo, a ficar veterano.
No meio de tudo isto, vários serões televisivos portugueses estão cheios de futebol falado, preenchido com discussões e intrigas em volta dos clubes, jogadas e jogadores, alguns com o único resultado de envenenamento da possibilidade de boa convivência. Quando o que se espera dos artistas, também os do espectáculo de futebol, é que contribuam para mais satisfação na nossa vida.
(...)"

Aquela bola alta vinda lá da extrema

"Não é a bola alguma carta que se leva de casa em casa:
é antes telegrama que vai
de onde o atiram ao onde cai.
Parado, o brasileiro a faz
ir onde há-de, sem leva e traz;
com aritméticas de circo
ele a faz ir onde é preciso;
em telegrama, que é sem tempo
ele a faz ir ao mais extremo.
Não corre: ele sabe que a bola,
Telegrama, mais que corre voa.
(João Cabral de Mello Neto)

O nome deste poema é esclarecedor: «Carta do Jogador Brasileiro a um Técnico Espanhol».
A Europa descobrira o futebol brasileiro em 1938, no Mundial de França. Descobrira Leônidas da Silva, o Diamante Negro, de quem se dizia ter inventado o pontapé de bicicleta. Não sei se no futebol se pode inventar o que quer que seja. Nesse aspecto, não difere muito da literatura: começa-se pela imitação e acaba-se na criação. O que não é o mesmo do que inventar. Quero dizer: inventar pressupõe fazer algo de absolutamente nunca visto.
Porque nos adiantámos há pouco na narrativa, agora atrasamo-nos. Vamos lá à bicicleta. Poucos movimentos no futebol serão tão fantásticos como o pontapé de bicicleta.
O pontapé à meia-volta, ou o pontapé de moinho, também é interessante, embora não tão extraordinário. Os brasileiros estão convencidos de que o pontapé de bicicleta foi inventado por Leônidas da Silva, o ‘Diamante Negro’.
Os japoneses também: tanto que têm até um chocolate chamado ‘Black Diamond’, em homenagem a Leônidas. Mas, em matéria de futebol, o Japão é uma espécie de colónia do Brasil. E a opinião dos japoneses pode valer muito em electrodomésticos, aparelhagens, máquinas fotográficas e explosão demográfica, mas em futebol vale o que vale: isto é, pouco.
Antes de a televisão tomar conta do jogo, a visão do cronista fazia lenda. De Leônidas da Silva nunca vi, como a maior parte dos que me lêem, mais do que uns segundos de imagens pouco nítidas do Campeonato do Mundo de 1938, em França.
E fotografias.
Mas li muitas páginas sobre ele. Não tenho dúvidas: jogava imensidões! Leônidas da Silva é um dos jogadores mais bem escritos da história do futebol. Eis a prova: «Bem me lembro do dia em que Leônidas fez, pela primeira vez no Mundo, um gol de bicicleta. Jogavam Brasil e Argentina em S. Januário. Atacavam os brasileiros. Veio uma bola alta, lá da extrema, e Leônidas estava de costas para o gol. Sem tempo de se virar, ele deu o salto mais lindo que já se viu. Tornou-se leve, elástico, alado. Lá em cima, deitou-se e fez um maravilhoso movimento de pernas. A jogada, por si mesma, foi um deslumbramento. Mas além da beleza, da plasticidade, houve o resultado concreto: o gol». 
Nelson Rodrigues escreveu estas linhas em 1966, pouco antes do Campeonato do Mundo: como vêem, as coisas encaixam-se. O golo de Leônidas frente à Argentina foi em 1934. Parece que Nelson Rodrigues não via muito bem: era míope. No entanto, o seu futebol era apaixonante. Basta lê-lo. Sobre as dioptrias de Leônidas da Silva, o ‘Diamante Negro’, não há registo. O seu futebol, no entanto, era inacreditável. Basta ler Nelson Rodrigues.
Vinte anos antes de Leônidas da Silva ter inventado o pontapé de bicicleta, numa tarde sem data de 1914, o chileno Unzaga Asla estava de costas para a baliza. Uma bola veio alta, indomável, à altura da sua cabeça. Foi então que Unzaga Asla se lançou no ar e, paralelo ao relvado, pedalou com violência a bola para um golo sem igual. Confesso: não sei mesmo se foi golo. Deve ter sido. Só assim se entende que o seu nome tenha ficado para a história como o do inventor da ‘chilena’. ‘Chilena’ é, em toda a América Latina, o pontapé de bicicleta. Menos no Brasil, claro!
A Europa nunca descobriu Unzaga Asla. Descobriu Leônidas na Silva, carioca de São Cristóvão, o Homem de Borracha, em 1938. Viu-o marcar três golos contra a Polónia, numa vitória por 6-5, domingo de chuva em Estrasburgo. Acreditem ou não: nesse tempo, a vitória mais importante da selecção canarinha. Leônidas da Silva foi também um jogador ouvido como poucos. Em 1938, todo o Brasil se colava aos rádios a pilha. Diziam: radinho de pilha em forma de igrejinha. Luxo de pobre. É assim que se constroem os mitos. E este é um livro sobre mitos. Leônidas da Silva morreu no dia 18 de Janeiro de 2004, um domingo como em Estrasburgo, e não fazia ideia de quem era Leônidas da Silva: a doença de Alzheimer fizera dele uma pessoa diferente."