terça-feira, 4 de julho de 2017
Ainda o videoárbitro
"O protocolo aprovado pelo IFAB é rígido e aplica-se apenas a situações claras.
Sou e sempre fui um defensor acérrimo da arbitragem e da qualidade profissional dos nossos árbitros. Mas a verdade é que a distância que percorri nos últimos dois anos permite-me ver, com outra clareza, os dois lados da caixa: e do dentro, onde vivi e cresci durante toda a minha vida profissional. E o de fora, onde existe um mundo que teima em olhar, desconfiado, para tudo o que tenha a ver com a classe.
Perante duas perspectivas tão contrárias, tento posicionar-me sempre no ponto que julgo ser o mais sensato: o do equilíbrio, que mora no meio daqueles dois extremos.
Aceito que possam existir comportamentos menos próprios ou desviantes, mas estou convencido de que a esmagadora maioria das pessoas que estão na arbitragem são sérias, honestas e honradas. E isso nada tem a ver como facto de poderem ser mais ou menos competentes, mais ou menos experientes.
Parto deste pressuposto pessoal para vos falar, novamente, sobre o Projecto Videoárbitro.
A famosa tecnologia que o futebol português decidiu abraçar e que nos fará companhia já a partir do próximo mês, na Liga NOS.
Primeiro. A ideia é muito feliz e a tecnologia é boa. Muito boa.
Ou seja, existe uma variável objectiva, bem pensada e melhor elaborada, que permite que um árbitro, confortavelmente sentado numa sala bem apetrechada, possa ver imagens de qualidade de alguns incidentes de jogo. Perfeito.
Segundo. Para que esta inovação seja bem-sucedida e sobretudo, para que convença todo o universo do futebol, é imprescindível que as outras variáveis onde assenta não falhem.
E que variáveis são essas ? O árbitro e o videoárbitro.
O problema, como já perceberam, é que, ao contrário de primeira, estas têm um componente de subjectividade elevadíssima. Estamos a falar de árbitros. De pessoas. De homens. Homens por detrás da máquina. Ora, para contornar as diatribes da interpretação e limitação humanas, o protocolo aprovado pelo IFAB é rígido. É rígido e aplica-se apenas a situações muito claras e objectivas.
A ideia é evitar o erro grosseiro (aquele qe for evidente para todos), desde que tenha eventual influência no jogo. Se tudo isto fosse uma equação matemática, diríamos que a soma de uma variável objectiva (tecnologia de qualidade) com duas subjectivas (árbitro e VAR) resultariam no sucesso do maior e mais arrojado projecto alguma vez criado para o futebol. Certo?
Problema. Se é verdade que a tecnologia em si, não sendo infalível, é muito fiável, não menos verdade que com os árbitros as coisas podem não ser bem assim. Naturalmente.
Essa convicção aumenta se nos lembrarmos que estamos a falar de pessoas que só agora estão a mergulhar nesta nova realidade. Que só nos últimos meses começaram a familiarizar-se com as novas funções. E essas são bem distintas das que estavam habitados a desempenhar até então.
Um bom árbitro não será, necessariamente, um bom videoárbitro.
As competências, técnicas e humanas, que uma e outra requerem são totalmente distintas. Passar da dinâmica de um jogo vivido num relvado, para outra sentida na frieza distante de uma sala repleta de écrans e slow motion não é tarefa fácil. Não é algo que se ensine ou aprenda de um dia para outro.
Requer, em si, é fantástico.
Mas o seu sucesso, dependerá sempre desta componente. Da forma como um grupo de profissionais conseguirá adaptar-se a uma realidade totalmente diferente, numa função completamente nova e num universo de tolerância - como o nosso - reduzindo a zero.
Ao contrário de dois ou três maus exemplos recentes (Taça de Confederações), onde falhou o homem, não a máquina, eu confio totalmente na qualidade técnica, independência e serenidade dos nossos árbitros. Confio na sua capacidade de aprendizagem rápida, na sua frieza de análise e sobretudo, na sua coragem. Na coragem de tomar a decisão certa no momento exacto.
O projecto tem tudo para dar certo, desde que ninguém se esqueça que há muita coisa que poderá inicialmente não correr bem. Por alguma razão, a fase de testes dura até meados de 2018..."
Duarte Gomes, in A Bola
Com a grandiosidade de um Hermitage...
"Palco da final da Taça das Confederações, o Estádio de São Petersburgo, inserido no Parque da Vitória Marítima, na Ilha de Krestovski, é uma obra formidável que merece uma visita e jogos de futebol de topo. Portugal venceu aqui a Nova Zelândia por 4-0.
Já passa da meia-noite em São Petersburgo e ainda há uma luz sobre a cidade. Parece que a noite nunca se põe, aqui na beira do Báltico.
No momento em que escrevo, terminou a primeira fase da Taça das Confederações e Portugal, como se esperava, cumpriu o seu Destino, assim mesmo, com maiúsculas.
Um empate com o México, em Kazan, a abrir, com alguma dose de desilusão por via do golo consentido no minutos final, uma vitória seca mas segura frente à Rússia, tão fraquinha, benza-a Deus, e uma goleada frente à Nova Zelândia, grupo de rapazes com boa vontade, mas apenas abana-pinheiros vindos lá do Pacífico Sul.
Nota surpreendente: o Estádio de São Petersburgo.
Já jogou o Benfica nesta cidade por mais de uma vez. Mas no Estádio Petrovski, que consigo espreitar da janela do meu quarto, aqui em frente, na outra margem do Neiva. Estádio muito soviético, entalado entre pequenos canais que o rodeiam e nos quais, ao fim da tarde, os homens vêm pacientemente pescar. Compará-lo com o novo, para já apenas Estádio de São Petersburgo, mas com o naming já vendido para os próximos anos, casa do Zenit que até tem sido de boa memória para os encarnados. É preciso caminhar bons quilómetros a pé até chegarmos a essa espécie de disco voador, erguido na ilha de Krestovski.
Não se duvida que quem planeou esta nova arena, já que agora é moda chamar arena a todos os campos de futebol do planeta, pretendeu manter as características do seu antecessor, mas desta vez fugindo do centro da cidade para entrar por um bairro de edifícios bem separados uns dos outros, com pracetas e relvados a dividi-los, e erguendo-o no meio de um parque verdejante e encantador. Pois sim, mas a verdade das verdades é que, ainda por cima com os cortes de trânsito que a polícia russa aplica, um mamífero tem de se levantar cedo pela manhã e encher a mochila de sandes de queijo, para não passar fome quando se meter ao caminho, que isto de ir a um disco voador não é como ir a um moinho e requer bem mais paciência e força de vontade.
O disco no parque
Nada de muito original nesta ideia de disco voador, já o arquitecto japonês que o desenhou, Kisho Kurokawa, lhe chamou Nave Espacial. É isso mesmo que parece, pousado no final do magnífico Parque da Vitória Marítima, a dois passos das águas do Báltico nas quais se espreguiçam os paquetes que carregam milhares de turistas durante estes dias em que o sol nunca se põe. Noites Brancas, chamou-lhes Dostoiévski. E como os russos são como muito nós, no rebuço e no viva lá o seu compadre, ei-los que não prescindem, ali à volta do estádio, da sua barraca dos tirinhos, do seu carrinho de choque e da sua montanha russa, pois então, no meio de toda esta salada.
Moderno, especial. Já se sabe que a cada fase final de uma competição vão surgindo, aqui e ali, estádios completamente fora do que estávamos antigamente habituados. Vimos como isso sucedeu em 2004, no tempo do nosso Europeu, vivido em ambiente de festa como nunca se vira em Portugal desde o 25 de Abril.
Os novos estádios russos pelos quais passei, a Arena de Kazan, o Estádio do Spartak, em Moscovo, e agora este, são de uma funcionalidade admirável. Mas, em São Petersburgo, ficamos surpreendidos pela impotência. A Nave Espacial é gigante, o parque que o rodeia parece infinito, os percursos que nos levam até ele fantasticamente arvorejados, as escadarias decididamente grandíloquas.
Tudo foi feito em grande escala, não fossem os russos gente tão desmesurada como o tamanho das suas terras.
Quando o meu paciente leitor tiver passado os olhos por estas páginas, já saberemos se Portugal regressa aqui para disputar a final. Aconteça o que acontecer, o Estádio de São Petersburgo é, sem qualquer motivo para dúvidas, um dos melhores da Europa. E um palco que merece jogos de toda a qualidade. O Benfica e os benfiquistas já sabem. Da próxima vez que os sorteios das taças europeias mandarem marchar para esta cidade formidável junto ao Báltico, terão à sua espera uma obra de truz. Que fica na memória de quem a visita como se fosse a grandiosidade de Hermitage."
Afonso de Melo, in O Benfica
A resiliência de Espírito Santo
"De todas as adversidades, a doença foi a pior que Espírito Santo enfrentou. Mas, tal como de todas, saiu vencedor.
Em 1936, Guilherme Espírito Santo, com apenas 16 anos, estreou-se oficialmente na equipa principal do Benfica, na 1.ª jornada do Campeonato de Lisboa, frente ao Casa Pia. Em Novembro de 1937, realizou o primeiro jogo por Portugal, contra a Espanha. O seu enorme talento parecia não deixar ninguém indiferente.
Em 1940, após ter estado ao serviço da selecção nacional numa partida realizada em Paris, frente à França, adoeceu gravemente, ficando afastado da prática desportiva por largos meses. Contudo, habituado a driblar as adversidades, o 'Pérola Negra' voltou, meio ano depois, a envergar a camisola de águia ao peito para defrontar o Barreirense, a 23 de Junho. Recebido sobre uma enorme ovação do público, foram-lhe entregues pelos 'seus companheiros e todo o «team» barreirense (...) lindos ramos de flores'. O jogador agradeceu a recepção da maneira que melhor sabia, com uma exibição brilhante coroada com dois golos na vitória 'encarnada' por 5-2. A imprensa elogiou o seu regresso: 'Espírito Santo teve, de facto, uma reaparição feliz, conservando intactas as qualidades reveladas antes da doença'.
Jogou o resto da temporada e a seguinte. Porém, quis o destino pregar uma nova partida e o jogador teve uma recaída que o afastou durante duas épocas inteiras, surgindo a dúvida se conseguiria voltar ao futebol. A resiliência do 'Pérola Negra' e o seu enorme gosto pelo desporto fez com que não desistisse e conseguiu sair vitorioso. A 24 de Outubro de 1943, num encontro da equipa de reservas contra o Unidos, Espírito Santo voltou aos relvados: 'entrou em campo aos ombros dos seus companheiros de equipa (...) uma manifestação vibrante, calorosa, entusiástica, encheu o campo de lés-a-lés. Em todos os sectores, de pé, os espectadores aplaudiram freneticamente'. A partida foi difícil, os benfiquistas jogaram bastante tempo com nove unidades. Ainda assim, venceram o jogo, com a contribuição de Espírito Santo, o que levou a imprensa a afirmar que 'o valoroso jogador fez exibição agradável, demonstrando recursos para voltar à sua anterior posição no Benfica e no futebol português'. Jogou ainda até 1949, altura em que 'pendurou as botas' após uma carreira fantástica.
Pode ficar a saber mais sobre este sensacional jogador na área 23 - Inesquecíveis do Museu Benfica - Cosme Damião."
António Pinto, in O Benfica