terça-feira, 28 de março de 2017

Rimais soltas de um poema mágico


"Há 50 anos, no início da Primavera, houve na Luz uma tarde vermelha em flor. Eusébio marcou quatro golos ao Braga (4-0). Corria para a bola, chutava e era golo. Mais simples seria impossível!


No início da Primavera de há 50 anos, Eusébio abriu em flor. Uma explicação primordial qu deu pelo nome de Eusébio.
O adversário foi o Braga. Melhor dizendo: a vítima foi o Braga.
No mesmo dia, o ciclismo do Benfica estava em festa. O ciclismo foi sempre centro de muita festa.
No Campeonato Regional por Equipas, os encarnados tinham vencido o Sporting. José dos Santos, Pedro Rodrigues, Wilson de Sá. Uma equipa coesa na qual todos foram alternando no comando. Um acerto e uma colaboração de destacar. A Venda do Pinheiro foi a etapa decisiva...
Mas voltemos à Luz nessa tarde de sol.
Primeiro movimento eusebiano, que era assim uma espécie de personagem de Machado Assis - um livre a queimar as mãos do guarda-redes do Minho, de nome Armando.
Em seguida, penálti. Não havia, em Eusébio, angústias nos momentos dos penáltis, como a do keeper de Peter Handke.
Eusébio corria para a bola, chutava e era golo. Mais simples era impossível!
Nessa tarde de Março chutou para o lado esquerdo enquanto Armando adivinhava o lado direito. Golo. Eu bem disse agora mesmo: mais simples era impossível!
Depois houve Simões. António Simões esgravulhando lá do lado esquerdo como um Gavroche. Finta corrida, passe milimétrico. Eusébio corre ao encontro da bola, adora a bola e quere-a junto aos pés à moda do cachorrinho de Nelson Rodrigues; odeia-a na violência com que a projecta na sequência dos seus remates explosivos.
A bola embaraça-se na rede. Golo. Mais um golo.
Benfica: 2-0!
Eusébio: 2-0!
O povo sorri nas bancadas vermelhas ao sol.
O sol vermelho. Sorrisos vermelhos. Tarde vermelha em flor no início da Primavera de mil novecentos e sessenta e sete.

E a fome...
A Pantera tinha fome. A Pantera Negra na tarde vermelha em flor. Primeiro um livre. Também não havia angústias para Eusébio no momento de um livre directo. Inclinava o corpo para a frente, começava por dar uns passinhos curtos, só para tomar balanço, e depois lançava-se no repente felino do golpe. A passada alargando. Rápida como o movimento dos tirantes de um locomotiva em pleno movimento. Imparável.
A bola, aí odiada, chutada com violência inaudita!
Um relâmpago? Um trovão? Eusébio explodia de pé direito no couro submisso. Um som que se ouvia lá longe, na linha do horizonte, mas não ali, no estádio cheio, gritos e incentivos, bandeirinhas esvoaçantes, almofadas-para-a-bola atiradas ao ar de chapéus nas touradas, talvez com Ricardo Chibanga fazendo festas no focinho do touro, o touro e o couro, o couro e o coro: vozes uníssonas, braços erguidos, um céu azul claro a prometer noites mais longas e a suavidade do pôr-do-sol.
Um dia alguém escreveu: 'Vocês julgam que os pores-do-sol trabalham de graça?'
Ainda faltava uma hora ou duas para que o Sol caísse nesse dia de Lisboa e Tejo e tudo.
A bola ia a meia altura, parecia uma pedra atrás de um pássaro. Tinha um alvo e não falharia esse alvo. Eusébio já se preparava para o salto alegre, o soco no ar. Bola entrando na baliza de Armando. Rimas soltas de um poema mágico. Profundamente Eusébio.
E mais e mais e mais.
3-0. Três vezes Eusébio.
Seriam quatro.
O drible pela direita, e a corrida. O galope, talvez seja mais correcto. A Pantera elástica, plástica, indomável.
Ninguém segurava a Pantera. Nem Armando nem sequer Sandokan de Mompracém, a ilha-que-desaparecia.
Galgando metros, suportando cargas, rasteiras, desembrulhando-se adversários. E a vontade sobre todas as vontades. Golo - quatro vezes golo.
A bola e as redes de novo juntas. Como a mão direita e a esquerda.
Eusébio no ar, voando. Voando como um Mercúrio negro de asas nos pés.
23 golos para Eusébio. 23 golos na jornada número 20.
Os adversários aterrados.
Março, começo de Primavera em tons de vermelho."

Afonso de Melo, in O Benfica

Balões com história

"Passados 49 anos, os balões de Costa Pereira contam histórias.

No dia em que se despediu dos relvados, a 11 de Outubro de 1967, Costa Pereira, um dos maiores guarda-redes portugueses e do Clube deixou um marco na história do Sport Lisboa e Benfica e na memória de muitos benfiquistas. Não só pelo facto da festa em sua homenagem ter sido pautada pela originalidade, mas também pela programação característica, pelas muitas prendas que foram oferecidas por miúdos e graúdos - recorde-se a curiosa oferta de um frango pelo seu filho - e, em especial, pela largada de balões comemorativos em pleno relvado do Estádio da Luz. A importância deste momento está, não na acção em si, mas na história que suporta o curioso legado documental que integra, hoje, o acervo do Clube: um conjunto de cartas manuscritas e reclamos.
De acordo com a imprensa da época, naquele dia foram largados três balões, com a seguinte inscrição: «Costa Pereira Agradece». Cada um dos balões era acompanhado de um pequeno reclamo que prometia 'lembranças' a quem os encontrasse e escrevesse ao Clube. Assim fez António Matos Júnior, um dos participantes: 'Como desportista e grande Benfiquista envio ao grande Costa Pereira um grande abraço de despedida desejando-lhe as maiores felicidades pela vida nova que tomar e iguais (glórias) como as que teve na vida que deixou'. Sem o saber, as suas palavras ficariam para sempre inscritas na história do SL Benfica.
Estes três reclamos chegaram até hoje acompanhados da respectiva carta manuscrita, pelo que é de estranhar... haver uma quarta carta. Terá havido um quarto balão lançado sem aviso ou teria escapado esta importante informação ao jornalista de O Benfica, que naquele dia cobria o evento?
Certo é que os balões voaram com 'chama viva', trazendo à memória um dos famosos slogans publicitários da marca patrocinadora do evento, Gazcidla. Uma das cartas foi enviada de Lisboa, outras de Alcanena, Sertã e um uma outra, ainda, testemunha a viagem de um dos balões até Viseu, a cerca de 290 Km.
Pode ficar a conhecer mais sobre a carreira de Costa Pereira e de outros jogadores do Clube na área 20 - Águias-Mores do Museu Benfica - Cosme Damião."

Milene Candeias, in O Benfica

"E eu pensei: ‘O Eusébio é o gajo que faz os golos. O Eusébio não está. Tenho de fazer mais qualquer coisa’"

"Bem, há vários clássicos dos quais me recordo.
Tive a felicidade de fazer muitos golos nos clássicos. Benfica-FC Porto e FC Porto-Benfica. Joguei imensos, ainda por cima. E marquei muitos golos para aquilo que era o meu perfil como jogador. Acho até que foi o clube contra o qual marquei mais golos – com a cabeça, com o pé, com tudo. 
Lembro-me de um, e esse ficou-me mesmo na memória, na Luz, em que fiz o golo de cabeça. Era uma coisa invulgar, apesar de ter marcado de cabeça a todos os grandes guarda-redes portugueses. É muito curioso, mas isso não é assim tão importante. O importante é que esse jogo foi determinante para o título e por outra coisa: o Eusébio estava magoado e não jogou.
Foi em 1972, um pouco antes de uma eliminatória com o Feyenoord, em que perdemos lá 1-0 e aqui demos 5-1. Entretanto, por acaso, até parti o braço. Outra coisa curiosa, porque assim não joguei num desses jogos. Mas estava numa grande forma. Há coisas que marcam e não vou aqui inventar nada. 
Lembro-me perfeitamente, como se fosse hoje, de um sentimento. A ausência do Eusébio fez-me sentir, como capitão de equipa, que tinha de fazer mais qualquer coisa para além de jogar bem – chegar à frente, fazer golo, ser mais atrevido na zona de finalização, essa coisa toda.
Recordo-me da pensar antes do jogo: “Como vamos ganhar isto se o Eusébio não está?”.
Não digo que o resto da equipa tenha sentido isso. Foi um sentimento interior, foi no meu silêncio. Não foi da equipa. E eu pensei: “O Eusébio é o gajo que faz os golos. O Eusébio não está. Tenho de fazer mais qualquer coisa”. E parece que alguém me protegeu e me deu inspiração para fazer esse golo, porque ganhámos 1-0. Esse foi o jogo que mais me marcou.
Claro que, depois, houve muitos outros: um 6-2 no final de uma Taça de Portugal [1964], em que também fiz um golo de cabeça, curiosamente; outro jogo para a Taça, na Luz [1962], em que ganhámos 3-1 e eu fiz dois golos; depois fomos às Antas ganhar por 2-1 e também diz um golo de cabeça [1963].
Quando me começo a lembrar dos clássicos, lembro-me que me aconteceu muitas vezes isto, mas sempre com o FC Porto. Mas diria que aquele 1-0 na Luz, com o estádio cheio, em que fiz o único golo, e de cabeça - é por isso que não esqueci."

Porque a ciência (também) ajuda muito o futebol

"Durante as minhas formações reforço que o que une todos os desportos colectivos é mais do que aquilo que os afasta. E afirmo desportos colectivos porque confesso que a minha curiosidade de trabalho é mais focada nos desportos colectivos do que nos individuais. E aquilo que une é o facto de nos desportos colectivos todos terem uma grande fatia de importância da liderança, dos dinâmicas e processos de grupo e dos liderados, da partilha, do alinhamento colectivo naquilo que são os resultados obtidos.
Por vezes leio algo em torno da ideia de que o futebol não é uma ciência. Creio que a grande maioria das pessoas que o afirma tem dois pontos de partida: teme que o cheiro de balneário ou a intuição que considera ser a principal razão na sua crença de se chegar à vitória seja um dia descredibilizado de modo simples; e tem dificuldade em perceber o que de facto é a ciência e acreditar que a ciência é conseguir criar uma receita para se chegar sempre ao objectivo de modo a ou b.
Existem vários campos da ciência que hoje permitem compreender e usufruir daquilo que é o espectáculo de que tanto gostamos. As ciências sociais permitem hoje aos clubes apurar melhor como criar as tais tribos tão importantes em qualquer marca que quer crescer e necessita de adeptos que estejam ligados aos clubes e até às selecções.
As ciências comportamentais permitem perceber melhor os comportamentos dos treinadores nos bancos, nas palestras, nos vídeos que são virais, exactamente porque existem bastantes pessoas interessadas em compreender os comportamentos e as reacções dos jogadores e dos treinadores que vencem mais vezes que todos os outros. Isso é ciência. As ciências da comunicação, que permitem que cada vez mais tenhamos acesso a ângulos do jogo e despertam a curiosidade quanto aos dados indicadores existentes. As ciências médicas e do desporto, que permitem que os jogadores e as equipas hoje trabalhem mais aprofundadamente alguns detalhes. Visualizar estatísticas e jogos com outras perspectivas. E poderíamos ficar aqui vários parágrafos.
A ciência é fundamental para compreender por que um Mourinho ou um Guardiola, um Ronaldo ou Messi (parece que o português funciona com este paradigma que temos de preferir um relativamente ao outro) são tão bons hoje. E sim, a ciência dá-nos pistas sobre o talento de Messi, o talento e o trabalho árduo de Ronaldo, sobre as técnicas de motivação dos dois treinadores. E certamente estes treinadores e todos os outros deveriam levar em linha de conta a ciência, quando decidem. Porque até a intuição acaba por estar estudada, motivo pelo qual existem pessoas que tomam melhores decisões por intuição do que outras. Vezes e vezes sem conta.
O que a ciência não faz é adivinhar. E não explica tudo. Mas é claramente uma ferramenta que tem o seu lugar no futebol e noutro qualquer desporto. E que não se trata de comparar e discutir se uma decisão sobre um recrutamento deve ser analisada por parâmetros matemáticos ou humanos. Uma ajuda e é criada pela outra."