"Benfica e Estoril já jogaram da Taça de Portugal. Os encarnados conseguiram um resultado histórico - 8-0. E Rogério Pipi marcou cinco golos!!!
Gosto de vir aqui, a estas vossas páginas, e recusar no tempo. Assim uma espécie de tempo do outro tempo, abusando eu da vossa infinita paciência, ou pelo menos daquela dos que me fazem o favor de ler as linhas que assino. Também gosto de trazer, volta e meia, palavras dos outros, testemunhas privilegiadas dos acontecimentos que recordo.
O Estoril-Benfica desta semana, a contar para as meias-finais da Taça de Portugal, trouxe-me à memória Rogério Lantres de Carvalho: o Rogério Pipi.
Fácil é explicar porquê.
No dia 28 de Maio de 1944, nas Salésias, Rogério marcou cinco (5!!!) golos ao Estoril. E, caramba!, logo na final da Taça de Portugal. 13, 56, 69, 75 e 86 - os minutos dos golos. O Benfica marcaria ainda mais três - dois de Julinho e um de Arsénio.
As equipas jogaram assim:
BENFICA - Martins; César Ferreira e João Silva; Carvalho, Francisco Ferreira e Albino; Julinho, Espírito Santo, Joaquim Teixeira, Arsénio e Rogério Pipi.
ESTORIL - Valongo; Júlio Costa e Pereira; Alberto de Jesus, António Nunes e Gomes Bravo; Canal, Elói, Sbarra, Raul Silva e Petrak.
O húngaro Janos Biri era o treinador do Benfica.
O grande Augusto Silva treinava o Estoril.
O tenente-coronel Ribeiro dos Reis foi uma das mais influentes figuras do futebol em Portugal,
Jogador, treinador, jornalista.
Cobriu o acontecimento para o extinto Diário de Lisboa.
Vamos lê-lo. E ver como falou de Rogério. O Pipi.
As brincadeiras de Pipi...
«Rogério está ganhando estofo e acreditando melhor nas suas possibilidades. É um habilidoso, com dois pés formidáveis. Marcou ontem cinco 'goals', excedendo assim a proeza de Soeiro que estava em quatro 'goals'. O estremo-esquerdo do Benfica merece reprimendas severas por algumas tentativas antipáticas de 'brincadeiras' para diminuir o adversário quando a vitória já não merecia dúvidas». Pois, pois, nesses anos era mesmo assim. O fair-play não era treta nenhuma. Havia que respeitar adversários, árbitros e público.
Em seguida, o natural reconhecimento da superioridade encarnada: «Venceu o Benfica e venceu bem, sem margem para dúvidas, embora o Estoril tenha a grande atenuante da inferioridade numérica com que lutou quase desde o início do jogo. (...) Como já temos dito, os desafios estão sujeitos a uma lei inexorável que se chama a lei das lesões, a qual caiu em cheio sobre o Estoril, retirando-lhe todas as ilusões. A inutilização de Elói desarticulou o 'team', fazendo vir ao de cima todas os defeitos e só os defeitos do grupo. Dir-se-á que o Benfica também foi imolado pela célebre lei. Precisamente por isso. De resto, não há comparação possível, para as duas vítimas. O mal, para o Benfica, chegou na altura em que o corpo já não podia ser afectado».
E continua: «O Benfica atacou a fundo. Não o fez, porém, precipitadamente, mas com inalterável serenidade, como quem diz que o pássaro já estava bem agarrado na mão. Enleou o adversário, não o deixando mover-se ou respirar. O jogo quase que deixou de ser uma partida formal, tornando-se numa espécie de treino. Nunca vimos, numa final, um espectáculo semelhante».
Claro que não teve o Benfica culpa da infelicidade contrária. Havia uma final da Taça de Portugal para ganhar, ganhou-a e de forma inequívoca. O pássaro agarrado na mão era um canário que vestia de amarelo e não voltou a chegar tão longe na prova.
Francisco Albino, o capitão, seria protagonista de uma exibição em cheio. Escreveu Ribeiro dos Reis: «Foi a grande figura sobre o terreno. Lição esplêndida da sua juventude de trinta e tal anos. Alegria. Vontade. Energia infatigável. Consciência técnica. Bravo! Três vezes bravo! Quase ao cabo de noventa minutos de luta ainda possuía reservas de energia para tentar alguns arrancos impressionantes para forçar o ataque!»
Francisco Albino, portanto. E Rogério Pipi, a despeito das brincadeiras que desagradaram ao tenente-coronel. Uma grande equipa do Benfica. Não deu para ganhar o campeonato - seria segunda atrás do Sporting -, mas tinha um leque de jogadores extraordinários. Ficaram para a história."
Afonso de Melo, in O Benfica