"Acompanhem-me neste raciocínio. Asseguro-vos que é o mais o racional, distante e pragmático possível.
O futebol é apenas e só um jogo. Um jogo que os ingleses um dia inventaram com o objectivo de se divertirem e de entreter as pessoas. Certo?
Um jogo que, com o passar dos tempos, evoluiu. Adaptou-se. Modernizou-se. E porque cresceu, industrializou-se.
Por força disso, hoje é um dos mais excitantes espectáculos a que se pode assistir: tem competições regulares, talento, competitividade e muita emoção. Isso chega e sobra para fidelizar bilhões de adeptos em todo o mundo.
O jogo em si é disputado por duas equipas e arbitrado por uma terceira. No relvado. No terreno de jogo.
É depois orientado, de fora, por um conjunto de técnicos competentes.
Cada clube é dirigido pelos dirigentes que são eleitos pelos sócios. E a estrutura, a sua organização, é liderada por uma equipa de pessoas qualificadas, também elas eleitas e que são responsáveis por tudo o que se relaciona com as competições.
Depois há a imprensa, que é a voz de tudo o que acontece. E que transmite - através dos seus múltiplos canais - as emoções reais do antes, do durante e do pós-jogo.
Está por isso claro que cada um tem o seu papel bem definido à partida: os jogadores jogam, os árbitros arbitram, os treinadores treinam, os dirigentes dirigem, a imprensa informa e os adeptos deliciam-se.
Em tese, penso que estamos todos de acordo.
No entanto e como todos sabemos, o que se passa na realidade é diferente. Bem diferente.
Hoje não se joga um mas sim dois jogos em simultâneo.
O original, de que vos falava. O tal que se disputa no relvado.
E o outro, que se joga em várias frentes, longe, bem longe das quatro linhas.
No primeiro, treinadores, jogadores e árbitros fazem o que mais gostam, o melhor que sabem e podem. Uns acertam mais outros menos, uns têm mais talento outros menos, uns são mais competentes outros menos. Certo, certo é que no fim das contas, entre mérito e demérito, sorte e azar, benefício e prejuízo... o mais regular, o mais forte, o melhor, ganha. Ganha sempre.
Agora falemos do "outro jogo".
O outro jogo foi inventado quando o futebol começou a ser bem mais do que um mero desporto.
Aí não há estádios. Não há penáltis, não há golos nem há classificações. Há arenas. Há combate puro e duro. Há mentira, há má educação e há leviandade.
É um jogo pequenino, jogado por estrategas, por derrotados. É feio e mau. Muito mau.
Neste jogo, vale quase tudo: usar a imprensa para confundir as pessoas, manobrar a opinião pública, levantar suspeitas, inventar calúnias.
Com isso, alimentam-se ódios e instiga-se, ainda que indirectamente, à violência.
O resultado final é perfeito: cidadãos são atacados e famílias são ameaçadas, incomodadas e ofendidas.
Partem-se vidros, rasgam-se pneus, vandalizam-se paredes, amedrontam-se idosos.
Cometem-se crimes.
Objectivo: pressionar de tal forma os árbitros para que eles cedam no momento próprio. Não conscientemente, mas no subconsciente. Porque a raiva e o medo toldam a lucidez e afectam o discernimento.
A resposta a todo este cenário dantesco tem sido discreta e curta. Demasiado discreta e demasiado curta.
Sabemos que os homens que são árbitros não estão sós e que a sua estrutura está com eles, mas fica a sensação que estão desprotegidos. Porque se não estivessem isto não acontecia.
Foi criada uma linha telefónica de emergência, sim, mas essa é apenas uma solução à posteriori. Para casos pontuais.
Mas e medidas de fundo?
Medidas preventivas, estruturais, que evitem que tudo isto aconteça, de uma vez por todas?
Será que não está na altura de dar um murro na mesa e dizer, de uma vez por todas: "Chega!"?
Será que não chegou o momento de todas as partes com responsabilidade no futebol - todas sem excepção - sentarem-se à mesa e discutirem este problema com a seriedade que ele merece?
Será que é preciso que um árbitro seja agredido ou esfaqueado por um tresloucado qualquer, para que finalmente se páre tudo?
Já vi e vivi muitos momentos difíceis no futebol.
Sei que as coisas aquecem quando a incerteza pontual aumenta. Sei que manobras de distracção e pressão são consideras aceitáveis num contexto meramente desportivo.
Mas quando a situação derrapa, de forma reiterada e tão clara, para a vida pessoal e privada de agentes directos do jogo, afectando o seu bem estar e das suas famílias... algo está mal. Muito mal.
O futebol português tem que se demarcar desta imagem de criminalidade gratuita.
Tem agora a sua oportunidade."