quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

O que é a Cavalgada das Valquírias comparada com a Vaca da Luz?

"Há dias em que o mundo, ainda que por breves instantes, parece perfeito. Senão reparem: num jogo da Liga dos Campeões, uma equipa portuguesa derrota um adversário alemão e o marcador do golo que decidiu a partida é grego.
Que mais se poderia pedir aos deuses do velho Olimpo?
Uma breve, simbólica mas saborosa vingança contra a troika, os mercados, o intratável Schäuble e as diatribes racistas contra os PIIGS. E tanto mais deliciosa quanto o treinador do Borussia veio declarar no fim do encontro que o resultado “tinha sido ridículo”. Talvez. Mas não mais do que uma equipa com 64% de posse de bola e 14 remates não conseguir meter nem um golinho para a amostra. O digno herr Tuchel não levará a mal mas, há perto de um século, os britânicos inventaram uma coisa chamada fair play que, tal como o álcool, as febras e o bailarico, é para consumir, mesmo que em doses mínimas.
Dito isto, foi uma noite digna dos velhos tempos? Não! Na primeira parte o Benfica viu completamente asfixiada a saída de bola e teve de recorrer ao pontapé para a frente. Houve momentos de verdadeiro terror junto à baliza sul, com a bola a passar a centímetros da barra ou a percorrer perigosamente uma trajectória paralela à linha de golo.
Na segunda parte houve arreganho, sorte a marcar (que melhor prenda poderia Luisão ter querido no 500.º jogo pela sua equipa?) e competência a defender, a começar por esse notável guarda-redes chamado Ederson que não se deixou enganar por um penálti batido (perdoe-se a expressão) à cagadinha.
Na bancada os últimos dez minutos foram de verdadeira loucura, com 50 mil aos saltos, a gritar, a aplaudir, a rir, a chorar. A começar pelo meu improvável vizinho do lado, um rapaz que se apresentava enrolado numa bandeira vermelha com uma águia bicéfala preta e que me explicava “eu sou albanês”, enquanto gritava pelo Benfica com um sotaque mais que aceitável.
E agora? Como vai ser em Dortmund? Não sabemos, mas estes momentos de glória, mesmo mal jogados e com alguma sorte à mistura, ninguém nos tira. De resto, se o futebol fosse uma ciência exacta seria jogado por físicos de partículas e engenheiros aeroespaciais. E as equipas com mais dinheiro e mais nome ganhavam sempre. Vêm aí 90 minutos verdadeiramente infernais mas o que é a Cavalgada das Valquírias comparada com a Vaca da Luz? E, afinal, como a História demonstrou, os panzer, esses prodígios de engenharia, também tinham marcha atrás."

A sorte (e não só)

"No rescaldo da Luz, a primeira coisa que ouvi, ouvindo-a num tom ressequido, ressequido e amargo, foi:
- É verdade, o Benfica ganhou ao Dortmund, mas levou um banho de bola...
Exagero, claro - e não foi só esse exagero que me levou a pensar no Mujammad Ali, no Ali ter dito:
- Não são as montanhas à nossa frente que nos cansam ou que nos vencem, o que nos cansa e o que nos vence é a pedra que vai no nosso sapato...
Sim: o Benfica não se cansou e venceu porque fez o seu jogo (mesmo quando andou entre o susto e o negrume...) sem que se vissem os seus jogadores a jogá-lo de pedras nos sapatos.
Outra coisa que ouvi, ouvindo-a num tom displicente, displicente e ressabiado:
- ... Rui Vitória levou do Thomas Tuchel um banho de táctica ainda maior...
Disparate, claro - e não foi só esse disparate que me levou a pensar no Alex Ferguson, no Ferguson ter dito:
- Não se é capaz de construir uma grande equipa com almas irrequietas...
Sim: perante esse Dortmund que é uma trituradora máquina de ataque, nunca se viram, no Benfica, almas irrequietas - e se isso é mérito dos jogadores que as não têm, mais mérito é do treinador que é capaz de fazer o que faz dos jogadores.
Outra coisa ouvi, ouvindo-o num tom oblíquo, obliquo e farisaico:
- O resultado é ridículo. Jogámos muito bem, fizemos grande exibição...
Engano, claro - porque ninguém joga bem perdendo como o Borussia perdeu, ninguém joga bem falhando o que o Borussia falhou. E não, não foi só esse engano que me levou a pensar no Jorge Valdano, no Valdano ter dito:
- No futebol ou se luta ou não se luta - e muito pior do que não se utar é um jogador colocar a agressividade errada no sítio errado... porque o que o Benfica fez foi colocar a agressividade certa no sítio certo - tendo debaixo da sua baliza duas mãos de um deus qualquer. Foi sorte? Sim, foi - foi a sorte do ponto onde a competência se encontrou com a oportunidade..."

António Simões, in A Bola

Canadá, o 20 no Benfica e Paris iluminada

"Não se esqueçam que passa entre os pingos da chuva sem se molhar ou que teve de lutar em campo enquanto a filha lutava pela vida. Não se esqueçam do Fideo...

Lionel Messi.
Deixem-no ali, no topo, no lugar dele. Esqueçam-no, imaginem que não existe.

América do Norte, 2007.
José Couceiro com 21 futebolistas.
Leva um guarda-redes campeão europeu por Portugal e um outro pela lateral-esquerda do Real Madrid. O técnico não o sabe. Nem eles ainda o são.
Leva Zezinando, Paulo Renato e Feliciano Condesso. Bruno Pereirinha, Bruno Gama, Nuno Coelho ou Zequinha.
Já o Japão leva um tal Shinji Kagawa.
A Polónia um guarda-redes chamado Szczęsny e o Canadá tem outro de nome Begovic.
Espanhóis: Adrian Lopez, Alberto Bueno, Mario Suárez, Piqué, Granero, Javi Garcia, Juan Mata.
O México tem Giovani dos Santos, Carlos Vela e Javier Chicharito Hernández.
Os EUA Jozy Altidore, Michael Bradley e a mais espantosa das estrelas cadentes: Freddy Adu.
O Brasil, claro, nunca esquecer o Brasil: Alexandre Pato, Luiz Adriano, Renato Augusto, Marcelo, Willian, David Luiz e Leandro Lima que não tinha o direito de lá estar.
E o Chile? Arturo Vidal, Gary Medel, Mauricio Isla e Alexis Sanchez.
Agora o Uruguai: Edinson Cavani e Luis Suárez. Martin Cáceres também.
Atenção que entra a Argentina em campo!
Sergio Romero, Gabriel Mercado, Federico Fazio, Emiliano Insúa. 
O-novo-Fernando-Gago-que-até-já-é-o-novo-Fernando-Redondo: Ever-Banega. Pablo Piatti e… …Sergio Kun Aguero….

América do Sul, 2007, tempos antes.
Riquelme, Pablo Aimar, Lucho Gonzalez, Javier Zanetti, Carlitos Tevez.
E apenas para treinar na preparação para a Copa América na Venezuela:
«Alfio Basile pôs um miúdo. (…) Vinha com todas as dificuldades físicas que pode ter um rapaz de 19 anos, mas via-se logo que era diferente, um jogadorzaço.»
Hernan Crespo, in Mundo Deportivo 

Península Ibérica, 2007, ao mesmo tempo.
Fernando Santos, treinador do Benfica: «Perder Simão Sabrosa seria um pesadelo».
O 20, capitão, sai mesmo.
Iliev, Jordão, Hugo Leal, Maniche, antes de Sabrosa.
Nico Gaitán e Gonçalo Guedes depois.

O Grande Octágono, 2017.
Praticamente nove anos e meio passados, em França: Verratti, Cavani, Matuidi, Rabiot, Pastore e Lucas.
Piqué, Busquets, Iniesta, Luis Suárez, Neymar.
Desde o início do texto e no Parque dos Príncipes também, Messi esquecido..

Futuro...
Não se esqueçam é de quem iluminou Paris pelo menos por uma noite. Nem se esqueçam do escolhido por Basile para treinar com a constelação argentina, aos 19 anos.
Não se esqueçam de quem caminha ao lado de Piqué, Luis Suárez, Edinson Cavani ou Aguero: todos eles emergentes do Mundial sub-20 de 2007, no Canadá, um dos que deu mais estrelas ao futebol mundial.
Não se esqueçam de Simão, mas lembrem-se de Di María.
Que foi memorável numa das noites mais memoráveis do Parc.
Que foi campeão europeu em Lisboa pelo Real Madrid. Que «caiu» no Manchester United e reergeu-se em Paris.
Que foi o melhor 20 da Luz.
Que esse número que Simão tornou pesado, o argentino sublinha de cada vez que brilha numa carreira de nível altíssimo.
Lembrem-se que lhe chamam Fideo.
Que passa entre os pingos da chuva sem se molhar.
Que teve de lutar em campo enquanto a filha lutou pela vida.
Que nos últimos anos, na Argentina - a que esteve mais próxima do Mundial desde a era Maradona - não há ninguém acima dele!
E não se esqueça de voltar ao topo do texto, se ainda tiver dúvidas."

500 Luisões

"O quingentésimo jogo oficial de Luisão no Benfica, ao longo de 14 temporadas e um dia depois de perfazer 36 anos, é um marco assinalável. Para o atleta, para o homem e para o clube. Sobretudo num tempo em que a permanência num clube é uma ideia que se esvanece com uma ligeira brisa de vento, quer dizer de dinheiro, em que a transumância clubista é alucinante e em que as juras de fidelidade eterna são um devaneio de um qualquer entusiasmo de momento.
Gostei de ver as imagens de Luisão no fim do jogo para a Champions a falar embargado pela emoção. Gostei, porque senti autenticidade naquela sua maneira muito peculiar de ser e de estar.
O mágico número 500 é, em numeração romana, D. Neste caso de Dortmund, depois da belíssima assistência para o golo de Mitroglou. No sistema binário corresponde a 111110100, o que não deixa de ser curioso porque o Benfica venceu por 1-0 e nós, no Estádio gritámos efusivamente o 1 (golo) e Ederson, Luisão e & C.ª asseguraram o 0, igualmente festejado com alegria e sorte.
Chegado à Luz com 22 anos, não se pode dizer que chegou, viu e venceu. Precisou dessa variável às vezes tão traiçoeira, que é o tempo. Hoje é vertiginosa a velocidade com que se transforma um jogador banal num astro e se reduz a pó uma antes cognominada estrela. Luisão teve de convencer, com inexcedível profissionalismo, perseverança, determinação e exemplar respeito pela camisola que enverga, o exigente tribunal encarnado. Passo a passo, soube conquistar a consideração e gratidão dos adeptos e construir uma carreira brilhante, enquanto jogador e (eterno) capitão de equipa. Por tudo, obrigado Luisão!"

Bagão Félix, in A Bola

Luisão: uma viagem no tempo

"Luisão chegou ao Benfica numa época em que os jogadores se equipavam numa garagem do velho Estádio da Luz, jogavam no Estádio Nacional, treinavam-se uns dias na Cidade Universitária, outros em Massamá e por vezes no Monte da Galega, na Amadora. Pouco depois de se integrar no novo plantel, teve uma lesão muscular grave motivada por uma cárie. Simultaneamente, via o grande FC Porto de Mourinho assumir-se como uma potência europeia, vencendo uma Taça UEFA e uma Liga dos Campeões. O Benfica era uma testemunha ocular da hegemonia dos dragões em Portugal.
Pensar nesse Luisão e no de agora não é apenas uma viagem no tempo. É identificar um jogador que assistiu de perto à profunda transformação de um clube. Se em 2003 corria o risco de tropeçar num fio às escuras ao sair do balneário em direcção ao parque de estacionamento, hoje tem à volta dele uma enorme equipa multidisciplinar, é tricampeão, aspira ao inédito tetra e tem nova palavra a dizer na Champions.
A cerimónia que ontem se realizou no camarote presidencial pela ocasião dos 500 jogos do capitão das águias foi a de um emblema que atingiu há muito a maioridade, com todos os momentos e elementos pensados ao pormenor. Da luz certa ao verbo, dos abraços ao improviso e até da abertura saudável à imprensa, tantas vezes submetida ao papel de figurantes em ocasiões do género.
É correta a decisão de Luís Filipe Vieira em renovar com Luisão. Não só pelo que o defesa fez em 14 anos (mesmo descontando as vezes em que quis sair, e não foram poucas) mas porque o brasileiro é a prova viva de que com pouco se pode fazer muito. Porque apesar de não ser um Humberto, soube ser Coluna. Uma equipa que ainda sonha com a utopia (Liga dos Campeões) precisa de um líder assim."

Fernando Urbano, in A Bola

Vitória importante, derrota ridícula...

"O Benfica venceu o Borussia Dortmund e ganhou uma vantagem significativa para a partida da segunda mão, a disputar na Alemanha. Foi um jogo complicado para os da Luz, que viram o adversário falhar várias oportunidades, mas ainda mais complicado para os forasteiros, que regressam ao Iduna Park vergados ao peso de uma derrota, por mais que achem que deviam ter ganho...
No fim da partida, o treinador do Dortmund, Thomas Tuchel, classificou o resultado de «absolutamente ridículo», numa manifestação flagrante de arrogância e falta de desportivismo. Quanto muito, ridícula terá sido a forma como decidiu castigar Aubameyang, tirando-o do jogo quando ainda faltavam muitos minutos, para alívio dos jogadores do Benfica, sempre apoquentados pelo goleador gabonês, que embora estivesse desinspirado continuava a representar o maior perigo para as redes de Ederson.
Por falar em Ederson, a exibição que assinou ontem tem entrada directa na galeria das melhores de um guarda-redes encarnado numa noite europeia. A defesa que fez, já à beira do fim, e um remate de Pulisic, que ainda desviou em Jiménez, vai dar a volta ao mundo, pela dificuldade que encerrou, mas também pela beleza plástica daquele movimento corrigido a meio, por asas invisíveis, a dizer não ao golo.
Quanto ao Benfica, deve meditar nas dificuldades que sentiu, especialmente na primeira parte, para poder crescer em qualidade, especialmente a meio-campo, onde se mostrou quase sempre pouco à altura das necessidades. E não há melhor momento no futebol para fazer correcções do que depois de um triunfo saboroso..."

José Manuel Delgado, in A Bola

Os milhões estão no fim das pedras

"1. O Benfica não foi descobrir Ederson atrás das pedras porque o brasileiro já representava um grande clube brasileiro, o São Paulo. No entanto, o guarda-redes teve de percorrer o caminho das pedras até se consolidar como titular indiscutível nos encarnados, relegando indiscutivelmente para o banco o consagrado Júlio César. Ederson chegou sozinho a Lisboa com 16 anos, apontaram-lhe muitos defeitos, teve de ir ao Ribeirão e ao Rio Ave para mostrar qualidade e voltar ao Benfica. Na primeira prova de fogo, o jogo com o Sporting na época passada, poderia ter saído queimado, tal a responsabilidade associada. Não saiu. Longe disso. O Dortmund, nos jogos em casa, costuma ter uma parede constituída pelos seus adeptos e empurrá-lo para as vitórias. Ontem houve uma parede branca intransponível. Daqui a três semanas, no Iduna Park, ver-se-á qual das paredes terá mais força.
2. Nelsinho veio menino o moço de Cabo Verde para Lisboa. Fez vida na linha de Sintra, o sonho de jogar futebol cumpriu-o no Sintrense. Descoberto pelo Benfica com 18 anos, cumpriu via sacra de final de formação no Fátima, regressou ao Seixal e ganhou apelido: Semedo, Nélson Semedo. A história de sucesso fez-se, certamente, depois de muitas agruras.
Os dois foram dos protagonistas maiores na épica vitória - não pelos números mas pelas circunstâncias - do Benfica ontem sobre o Borussia Dortmund. O golo foi marcado por Mitrolgou, que custou sete milhões de euros e andava meio escondido no Fulham, da II divisão inglesa.
O pote de ouro do Benfica não estará no final do arco-íris mas, nestes casos, no final do caminho das pedras. E não deixa de ser irónico que dois dos heróis. Ederson e Nélson Semedo, tenham custado tão pouco a quem tanto tem investido."

Hugo Forte, in A Bola

Os deuses devem estar loucos

"Há dias assim, dias em que os deuses fazem acertos de contas. Olham para as anotações na folha de cada um dos clubes e procuram equilibrar com um pouco de fortuna aqui, um pouco de azar acolá, para que ninguém fique demasiado queixoso ou seja particularmente beneficiado, independentemente dos argumentos desportivos de cada um (esse já não é o departamento divino).
Quem seguiu o jogo entre Benfica e Dortmund terá pensado que os deuses deviam estar loucos, que não é possível tanta felicidade num só jogo e que só por isso o Benfica conseguiu vencer uma partida que a dada altura parecia destinado a perder perante a superioridade demonstrada pelos alemães. É indesmentível que o Benfica foi uma equipa feliz (embora a explicação para o desfecho da partida não possa ser apenas essa, há sempre mérito de quem ganha, mais que não seja a capacidade de sofrimento), mas talvez valha a pena pensar no dia em que, na época passada, Rui Vitória levou as mãos à cabeça por ter perdido o guarda-redes titular, Júlio César, na véspera de deslocar-se a Alvalade para defrontar o Sporting, num jogo que acabaria por revelar-se decisivo na atribuição do título de campeão. Foi por esse azar que hoje Rui Vitória teve a sorte de ter Ederson na baliza.
Ou talvez valha a pena pensar nos muitos dias, ao longo desta época (e também da anterior) em que o treinador do Benfica levou as mãos à cabeça perante tantas lesões, tanta dificuldade em montar um onze competitivo (ainda não conseguiu ter todo o plantel disponível ou sequer formar o melhor onze possível...).
Mas atenção: jogos como o de ontem não se repetem todos os dias. Os deuses, provavelmente, vão exigir muito mais do Benfica na Alemanha, talvez até tirem folga. E as águias terão de fazer bem melhor para conseguirem o apuramento para os quartos da Champions."

Gonçalo Guimarães, in A Bola