terça-feira, 8 de novembro de 2016

Entre os mortos havia um que respirava

"Minervino Pietra. Lembro-me de o ver jogar de camisola azul com uma cruz de Cristo no peito. E de jogar de encarnado em qualquer posição que lhe pedissem. E de um golo inesquecível contra uns suecos em férias...

Apetece-me escrever sobre Pietra. Figura única, diria. Minervino José Lopes Pietra. Lembro-me dele em tantos jogos do Benfica, que já lhes perdi a conta. Imenso! Tinha uma disponibilidade de santo à procura de um altar. Teve-o. O altar digo eu. Um altar vermelho de jogador eterno. Depois ficou. Ainda aí está, no banco, ajudando com os seus conhecimentos extraordinários sobre o jogo que os ingleses inventaram e ao qual chamaram association. Olhem para lá, para o banco, insisto, e vejam como vive os acontecimentos em seu redor. Confesso: a primeira vez que o vi jogar envergava uma camisola azul com a cruz de Cristo ao peito. Era do Belenenses. Esteve lá cinco anos. Equipas boas essas, do Belenenses. Valentes e inesperadas. Pietra mandava. Sempre teve um jeito especial para mandar dentro do campo.
Depois veio para o Benfica. Acho que foi o clube ideal para ele. Entre 1976 e 1987 vestiu a camisola vermelha com a águia de asas abertas, como num abraço. Era duro, inquebrantável. Agora está na moda ser jogador à isto ou àquilo. Jogador a qualquer coisa. Eu não tenho paciência para essas coisas. Não tenho paciência para modas e modinhas. Estou-me nas tintas para os desenhos em papel cavalinho que explicam, por A mais B, como se os jogadores fossem desprovidos de personalidade. Se me perguntarem se Pietra era um jogador à Benfica, eu respondo que Pietra era um jogador à Pietra. E não vi mais nenhum igual a ele. Nem parecido.

Texas Jack
Vi Pietra ser defesa direito e defesa esquerdo. Vi-o ser trinco e até ponta-de-lança como no jogo contra uns dinamarqueses toscos do BK 1903, mas davam água pela barba de tanto correrem e de tanto massacrarem aquela equipa do Benfica que ganhou os dois jogos para a Taça dos Campeões por 1-0 e 1-0. Golos de Pietra. Na Luz e em Copenhaga. Também o vi marcar um golo contra a Suécia, no Estádio da Luz, pela selecção nacional. Jogo nojento, como diria o meu bom amigo Luiz Filipe Scolari. Portugal precisava de vencer e perdeu. Os Suecos já estavam eliminados da fase final do Campeonato do Mundo de 1982, na Espanha, e vieram passar uns dias de férias lá para os lados de Cascais. A imprensa caiu-lhes em cima como o gato se faz ao bofe. Havia fotografias nas primeiras páginas com rapazes altos e loiros deitados ao sol, à beira da piscina, acompanhados por namoradas altas e loiras. Não era possível perder com gente tão aligeirada, tão displicente. E ainda assim, perdeu-se. Pietra não perdeu, sublinho eu, testemunha dessa noite desiludente. Uma multidão encheu o estádio e viu aquilo que vi e agora conto: com um à-vontade de vilão em casa de seu sogro, os suecos, esturricados de sol lusitano, foram ganhando, ganhando sempre. Mas alguém não se deu nunca como derrotado. Como se dizia nos velhinhos livros aos quadradinhos de cowboys: 'Entre os mortos havia um que respirava - Texas Jack.' E Pietra era Texas Jack. Subiu lá no meio de todos aqueles suecos loiríssimos e desferiu o seu golpe como se sacasse do Colt num duelo ao pôr-do-sol. O seu tiro foi certeiro. Os índios suecos destruíram os cowboys portugueses. Mas Pietra manteve-se de pé, inteiro, e o seu revólver fumegava."

Afonso de Melo, in O Benfica

O moço tem jeito para o samba!

"Adeptos, atletas, técnicos e dirigentes juntaram-se para festejar 'à Benfica' o nono título de campeão nacional.

'Raramente se terá visto em Portugal uma festa tão extraordinária como a que no passado domingo se realizou na Luz'. Assim iniciava, o jornal O Benfica, o relato das festividades que, a 14 de Abril de 1957, a Comissão Central organizou para comemorar mais um título conquistado pelo futebol benfiquista: o de campeão nacional.
Embora tivesse como primordial pretexto a consagração da equipa, com a entrega simbólica das faixas de campeões, a 'bela tarde primaveril' contou com cinco horas de animação non stop. 'Festa rija, bonita, colorida, «à Benfica»', 'onde apenas se respirou o perfume estonteante e delicioso de uma vitória do campeonato'.
Cedo começou a '«romaria» das gentes encarnadas para a Luz'. 'Por todos os lados se viam, agitadas pelo vento ou pelos frenéticos aplausos, bandeiras do Benfica'. Foram milhares de adeptos que quiseram confraternizar com os seus ídolos.
Do programa constaram inúmeras actuações. Entre elas, números de ginástica, entregas de troféus, números musicais e até um jogo de futebol, entre a primeira categoria e a equipa de aspirantes, em que a 'gentil filhinha de José Ricardo Domingues' (presidente da secção de futebol) 'com todo o estilo possível' deu o pontapé de saída. Porém, um dos momentos altos de tarde foi, sem dúvida, o protagonizado por Costa Pereira.
Após um conjunto de números musicais 'no qual tomarem parte os conhecidos artistas Luís Piçarra, Tristão da Silva e Frutuoso França', guarda-redes 'encarnado' deu o seu show. No centro do relvado, acompanhado pelos brasileiros Irmãos Guarás, 'fez a sua estreia - e muito bem! - com artista de variedades', noticiou o Diário de Lisboa. A actuação, a que não ficou alheia a objectiva de Roland Oliveira, proporcionou aos benfiquistas ali presentes, um 'momento folclórico de pura inspiração brasileira' e revelou um artista de grande talento e excelente sentido de humor. O insólito e pitoresco episódio captado na fotografia, em que Costa Pereira cantou e sambou, alcançou tal êxito entre os presentes que, no final, os colegas de equipa o ergueram em ombros perante uma entusiástica ovação do público.
Pode ver esta e outras fotografias na exposição Roland Oliveira, em exibição na Rua do Jardim do Regedor, em Lisboa."

Mafalda Esturrenho, in O Benfica

Os presidentes dos túneis

"Lamentável final do jogo em Alvalade, com uma feia troca de acusações, de ofensas e de tentativas de agressão que envolveram directamente os nomes dos presidentes do Sporting e do Arouca.
Imagem de um futebol marginal e terceiro-mundista, que não tem qualquer razão de coexistir com um futebol maior que, felizmente, Portugal tem oferecido ao mundo.
Não sei quem foi o culpado do início da triste refrega, mas sei que os dois presidentes, Bruno Carvalho do Sporting, e Carlos Pinho, do Arouca, ficaram com os seus nomes ligados a um género de cena canalha de rufias de bairro e basta isso para ensombrarem o nome dos seus clubes.
Admitamos que um dos presidentes, seja ele o do Sporting, seja ele o do Arouca, não tivesse tido culpa directa no lamentável incidente que foi suficientemente zaragateiro para alguém ter chamado a polícia. Mas a verdade é que ambos estavam no lugar errado à hora errada. Um presidente de um clube e, aqui, em especial, no caso do Sporting pela grandeza e responsabilidade histórica da instituição, deve entender que o seu lugar não é no banco de suplentes, algures entre o médico e o massagista de serviço.
No calor das emoções de um jogo de futebol, sobretudo aqueles que mais dificilmente controlam os seus sentimentos, acabam por estar sujeitos a momentos irracionais e o episódios que não são dignos de gente que deveria ser responsável e respeitada.
Um presidente de clube no banco de suplentes é um atestado de menoridade para esse mesmo clube e um atestado de desconfiança para a estrutura que envolve a equipa de futebol."

Vítor Serpa, in A Bola