terça-feira, 14 de junho de 2016

À sombra do vulcão...

"Em Março de 2010, a Europa do Norte ficou às escuras. O fumo do Eyjafjallajokull tapou o céu e deixou os aviões em terra como pássaros tristes. Será mais difícil pronunciar este nome ou derrotar a Islândia?

Marselha - Aí estamos nós outra vez! Eu diria que o Tempo (assim mesmo, com maiúscula) viaja à velocidade da luz, isto é, mais coisa menos coisa, a trezentos mil quilómetros por segundo. E não o digo por graça nem por chalaça. Ainda há pouco, há vinte aninhos bem contados, fui de malas às costas, primeiro para a Irlanda, num estágio de uma semana, depois para Inglaterra e para o Europeu de 1966 («Football is Coming Home») no qual Portugal procurava repetir um pouco da brilhante façanha de 1984, em França.
Pois é - até 1996, só por uma única vezinha havia a «Equipa de Todos Nós», como lhe chamou um dia o grande Ricardo Ornellas, nome cada vez mais injustamente esquecido nas páginas dos jornais contemporâneos, se tinha qualificado para uma fase final de um Campeonato da Europa das Nações, segundo a designação no patriarca, o francês Henri Delaunay que já em 1927 sonhava com a competição que só veria a luz, serôdia, em 1960. Aqui desmonto-me logo nos segundo parágrafo: o Tempo às vezes também passa devagar. Razão tinha o Baptista Bastos quando falava de um Portugal sempre à espera na paragem do eléctrico da História.
Prossigamos. Em 1966, Portugal fez contas com a Dona da Pensão da Vida. De aí até hoje, não mais falhou a presença na fase final de um Europeu, e já lá vão seis. Este escrevinhador que vai partilhando páginas com leitores tão bondosos como pacientes, passou por todas. Mais intensamente, ou menos; mais por dentro, ou mais por fora, mas já se encontra em França, em Marselha no caso, para adiantar semana a semana, no seu jornal, o que se vai por cá passando.
Diria que em nenhum desses cinco Europeus pelos quais atravessei a pena ou o besunto, deixou de haver um Portugal de sofrimento. Vamos lá por partes e pelo princípio (e deixo de fora o sofrimento da meia-final contra a França no Euro-84). Inglaterra teve tudo para ser brilhante e ficou-se pelo quase: uma derrota mal amanhada com a República Checa no chapéu de um tal Poborsky que não tardou a vir para a beira Atlêntico ganhar a vida. Holanda e Bélgica foram palco de uma Selecção Nacional estrepitosa como poucas (ufa! Aquele Inglaterra-Portugal de Eindhoven!!!) mas a prova terminou tristemente na meia-final contra a França (irra que é pirraça!) do «penalty» do Abel Xavier e das expulsões de Paulo Bento e Nuno Gomes. Estive lá, em Bruxelas, nesse jogo maldito. E dois dias depois no Luxemburgo apontando no bloco notas a decisão do Comité Disciplinar da UEFA. Triste.

E agora, a Islândia...
Veio o 2004. O Europeu português. Os alegres dias do país triste. Tanta alegria desperdiçada! «Uma espinha de silêncio atravessada na garganta», podia ter dito a propósito Eugénio de Andrade.
Tropeçou Portugal na gota de água, como no tempo em que voltava a ter medo da derrota. Estive lá, também, nessa selecção de infinitas amizades, na noite mais longa de todas as noites. Ninguém nunca o esquecerá. É impossível! Mas vieram outros jogos e outras noites. Outros meses de Junho, sempre nos meses de Junho.
Quatro anos mais tarde, o sofrimento teve a aura teutónica de quem prefere conquistar com sangue o que se pode ganhar à custa do suor. Em Basileia, Portugal não resistiu à Alemanha nos quartos-de-final mas, pior ainda, foi a queda em Donetsk, nas meias-finais (outra vez!), decidida em pontapés de grande penalidade frente à Espanha.
Não sei quando chegará o dia de Portugal ser, finalmente, campeão da Europa. Não acredito que, por maior que seja a fé, haja quem possa adivinhá-lo. Sei que na próxima terça-feira, dia 14 de Junho, pelas 21h00 francesas pois então, a Selecção Nacional entrará no Estádio Geoffroy Guichard, em Saint-Étienne, para dar início à sua sétima participação numa fase final de um Campeonato da Europa. Nas seus anteriores estreias, uma maçadora contabilidade, duas vitórias, dois empates e duas derrotas. A última, em Lviv, na Ucrânia, foi face aos alemães.
O adversário chama-se agora Islândia, país mais famoso pelos seus impronunciáveis vulcões (conta com cerca de 130) do que pelo futebol que pratica. Em 2010, a Europa ficou às escuras. O fumo tapou o céu do Norte e os aviões ficaram em terra como pássaros aos quais cortaram as asas. O responsável pelo transtorno chama-se Eyjafjallajokull...
Malcolm Lawry escreveria: à sombra do vulcão...
Eu aceito. E lá estarei!"

Afonso de Melo, in O Benfica

Amor num frasco de camarão

"Um romance que começou com um simples frasco de crustáceos!

Os jornais da época chamaram-lhes 'noivos do ano' e foram-no, de facto. O casamento de Eusébio e Flora, ou Lolita como era conhecida em Lourenço Marques, parou a cidade de Lisboa. E tudo começou com um frasco de camarão...
Corria o ano de 1963 e a jovem Lolita, promissora ginasta, estava de malas aviadas para Lisboa integrada na equipa de ginástica da Associação Africana. Assim que soube, a mãe de Eusébio aproveitou para lhe pedir um grande favor: que entregasse ao filho um frasco de camarões, petisco que ele adorava. Ela, solícita como sempre, assim fez, longe de imaginar que aquele frasco de crustáceos lhe iria mudar a vida. O que seria um encontro rápido transformou-se em horas de conversa, que se prolongaram após o regresso de Flora a Lourenço Marques através das cartas que trocaram incessantemente. Em entrevista ao jornal A Bola, dois anos depois e já noiva do 'Pantera Negra', Flora confessou que Eusébio era nas cartas como era ao vivo: 'Muito delicado, muito amável, encantadoramente simples'.
A 22 de Setembro de 1965, casaram pelo registo, ela com 22 anos e ele com 23, e a 8 de Outubro fizeram a cerimónia religiosa debaixo de chuva torrencial que não assustou os noivos, nem os convidados e muito menos os curiosos. A Igreja de Benfica era pequena para todos os queriam assistir à cerimónia. Nunca o casamento de um desportista tinha despertado tanto interesse popular! Eusébio bem tentou manter o local em segredo mas não conseguiu... 'Eu tinha pedido a vocês e aos outros jornais que não dissessem mas infelizmente houve quem me traísse'. Quando questionada se estaria preparada para todo o mediatismo e as ausências a que o futebol obriga, Flora respondeu com segurança: 'Já vinha preparada. Gosto dele e estou preparada para receber a vida como a vida é'.
Depois do copo-d'água, onde o monumental bolo da noiva que pesava uns simpáticos 45 Kg surpreendeu os cerca de 200 convidados, os recém-casados rumaram a Linda-a-Velha, onde iriam viver. Dali a três dias, Eusébio partia para a Áustria, onde o Benfica iria disputar um jogo amigável, mas nem os compromissos desportivos do Clube os impediam de sonhar. Lua de mel, possivelmente, só no defeso. E para onde iriam? 'Para o fim do mundo. Sozinhos, os dois'.
Pode saber mais sobre a preenchida vida de Eusébio na área 24. O 'Pantera Negra' e outras lendas, no Museu Benfica - Cosme Damião."

Marisa Furtado, in O Benfica

11 contra 1 !!!

O Cristiano provavelmente nem é o mais culpado, apesar do discurso demasiado egocêntrico que tem quase sempre...
Mas esta bajulação a um jogador, em detrimento de todos os outros, deixa-me agoniado.
O Futebol é um desporto colectivo, nunca ninguém ganhou sozinho... no caso do Cristiano, nas Fases Finais das grandes competições, nunca atingiu o seu máximo... em algumas delas, ficou mesmo muito abaixo do seu normal!

O Eusébio fartou-se de destacar os seus colegas, em todas as entrevistas que deu, em todas as conversas que tinha, a adoração e respeito que tinha pelo Sr. Coluna, pelo Sr. Águas... etc... etc... por todos os seus companheiros, era genuína e justa!

As capas de hoje deviam ter mostrado uma equipa unida, com o País a apoiar, em vez disso, parece que vai ser 1 contra todos... os restantes são só figurantes!!! A cultura desportiva, nos profissionais do jornalismo desportivo português, é realmente muito baixa...!!!

A Europa vista do Euro

"O futebol pode bem ser a continuação da política por outros meios, pelo que a história do Euro se confunde com a da Europa: em 1960, ano da primeira Taça das Nações Europeias, apenas quatro selecções participaram na fase final. Dos três primeiros classificados, nenhum país existe e da sua fragmentação nasceram dezenas de novas nações. A União Soviética venceu a Jugoslávia na final, enquanto a Checoslováquia derrotava a França no jogo para o 3.º lugar. Três repúblicas socialistas e uma potência colonial - que, entretanto, também, perdeu o seu império.
Nas décadas seguintes, a integração europeia progrediu, o Bloco de Leste colapsou e a democracia chegou ao sul. O futebol europeu beneficiou da revolução cultural dos 60. Num torneio já com uma fase final alargada, a Laranja Mecânica liderada por Cruyff, ainda que nunca cumprindo as expectativas, mudava a face do futebol europeu, questionando as regras estabelecidas. Depois, perante a desagregação política a Leste e o alargamento da U.E. às jovens democracias, o multiculturalismo tomava conta das selecções, que juntavam filhos de emigrantes de todas as proveniências. A Europa respirava optimismo histórico e o futebol espelhava o ar dos tempos.
Hoje, o Euro é de novo retrato da Europa. Uma competição alargada para além do razoável (24 selecções!), num continente fragmentado, dividido por novas clivagens e movido a ressentimento. Regressaram em força os confrontos entre adeptos, as tensões nacionalistas e até a Alemanha - que no fim tenderá a vencer - se revela, em campo, uma potência hegemónica relutante."

Maior do que a morte

"Esta é a história do jogador que parou um Benfica-Sporting à procura de um brinco, que aparecia no Estádio da Luz de Jaguar e motorista, que levava um cão para os treinos e o amarrava a uma baliza, que não tinha medo de pôr a cabeça onde outros só punham os pés. Vítor Baptista teve tudo e tudo perdeu, na droga, na noite e em maus negócios

Eram quatro miúdos que se mexiam em bando. Onde um ia, os outros iam, e juntos metiam-se por atalhos e em trabalhos, porque se julgavam imbatíveis. Toda a gente os conhecia nos bairros de barracas de Setúbal por estas ou por aquelas razões — raramente boas, geralmente más. Não tinham medo de nada. De roubar maçãs, ameixas e laranjas das quintas da Camarinha, para serem comidas ou vendidas aos jogadores do Vitória por 10 tostões — e no entretanto escapar à GNR montada a cavalo. De andar à bulha, porque o tamanho não importava, mas sim a força com que se dava — e o Jaime, o Pedro e o Florival davam como gente grande. De apostar nas futeboladas feitas com bolas de pano, porque eles eram bons de bola — sobretudo, o Vítor era bom. E, se o Vítor não chegava para ganhar, tinham sempre o Pedro, o Jaime e o Florival para darem conta do recado. Ou as pernas para fugirem a oito pés. Descalços e calejados.
Dos quatro, o Vítor era o mais corpulento, mas também o mais calmo. Anos mais tarde, seria conhecido como “O Maior”.
Naquele tempo, o Vítor punha-se um bocadinho à margem das confusões daquele bando. Como daquela vez em que os quatro correram com sete ou oito rapazes do Campo dos Arcos para ocupar o largo. Ou da outra, junto à Praça de Touros, em que o Florival pegou num lavatório de rua e rachou-o na cabeça de um dos tipos que se metera com eles no cinema. Mais tarde, o mesmo rapaz que ficara a tremer e ensanguentado no chão pagou-lhes umas cervejas para saldar as contas. No Campo dos Arcos, o Vítor ficou a ver, e na noite do cinema apanhou o autocarro e foi para casa.
O que ele tinha era mau feitio. Era orgulhoso e refilão e odiava perder — chorava e chorava muito quando a coisa não lhe corria bem às cartas, aos matraquilhos ou no futebol. Não que isso acontecesse muitas vezes, é verdade, porque ele tinha pedalada para toda a gente.
“Não éramos nada ao pé dele.” É o Pedro quem o diz, mas poderia ser outro qualquer que se lembre de o ver jogar na rua com os pés nus e depois nos clubes de bairro. Num desses clubes, o Rio Azul, o Pedro, o Jaime, o Florival e o Vítor ganharam tudo, e o Vítor foi o que deu mais nas vistas, porque tinha aquele jeito dos predestinados. Era mais rápido, mais forte, mais habilidoso. Se alguém ia chegar longe e deixar a vida nas barracas para trás era o Vítor.

A CASA
Onde hoje está a Avenida Infante Dom Henrique estava a Azinhaga do Mal Talhado. Foi lá que o Vítor nasceu, a 18 de Outubro de 1948, filho de Sebastião Baptista, trabalhador na lota de Setúbal, e de Cecília Baptista, que ganhava a vida na indústria das conservas. O Vítor tinha dois irmãos, o Eduardo, dez anos mais velho, e o Idaliano, cinco anos mais velho. Viviam todos numa barraca cuja porta de entrada era uma folha de lata e madeira; tinha um só quarto, uma cozinha e uma pequena sala. Eram pobres. Passavam fome. Uma sopa de feijão com repolho e ossos de animais dava para uma semana inteira e havia festa nos dias em que se fazia um caldo com as amêijoas da Marinha. O Baptista mais pequeno era esquisito com a comida e fazia fita quando não gostava.
O Vítor, o Eduardo e o Idaliano puxaram todos à mãe, que era robusta, mulher para um metro e oitenta; o pai era frágil mas duro de quebrar e carregava o peixe à cabeça desde a lota até à praça. Um dia, morreu. “Foi do trabalho.” A explicação do Jaime é mais poética do que a dos irmãos do Vítor: para eles, Sebastião caiu na casa de banho e bateu com a cabeça no chão. Foi um ataque que o levou.
Para o Jaime, falar dos Baptista é como falar da família, porque o Vítor era como um irmão mais novo. Um mês e sete dias mais novo. “Nasci a 11 de setembro e ele a 18 de outubro. As nossas mães davam-nos de mamar uma ao lado da outra.”
O Jaime e o Vítor conheciam-se desde sempre e depois conheceram o Florival e o Pedro, do Bairro Carmona, onde jogavam à bola num campo que lá havia. Montavam ratoeiras e armadilhas, iam aos pássaros e à fruta. E faziam rimas. O Vítor costumava dizer esta: “Santo António comigo vai,/ São João comigo vem./ Quando eu estiver a roubar,/ Não quero que apareça ninguém.”
No dia em que o pai desapareceu, o Vítor tinha 10 anos, mas esse assunto nunca foi discutido com os irmãos. Era um miúdo fechado, calado e melancólico. E, quando a mãe se casou pela segunda vez, o Vítor tinha 14 anos. Saiu de casa e foi viver para a pensão da Ti Chica, que ficava num largo como quem vai para os Pachecos, junto à capela. Nessa altura, já o Vítor era jogador do Vitória, que tinha ficado impressionado com o que vira no clube Rio Azul — para trás ficava um emprego como electricista na Junta, ofício para o qual não tinha jeito. Nem paciência.
O Vitória instalou-o na Ti Chica e dava-lhe comida, dormida e 500 escudos por mês, porque os irmãos estavam no Ultramar. Todos os dias, o Vítor guardava os restos que lhe sobravam do almoço e levava-os aos três amigos, que esperavam por ele nas escadas de madeira da pensão — o Jaime, o Pedro e o Florival não tinham andamento para o Vitória e seguiram para o Independente, um clube popular.
Aos poucos, o Vítor fez-se senhor do seu nariz: órfão de pai, longe das saias da mãe, sem os irmãos por perto, ninguém tinha mão nele. Começou a fumar, a beber cerveja e a andar na noite antes de tempo. A vida era dele. E foi isso que o irmão Eduardo percebeu quando regressou da guerra.

OS IRMÃOS
O Eduardo casou com a Sofia e foram morar para um andar na Tobaida, que fica ali perto do hospital; o Vítor deixou a pensão da Ti Chica e juntou-se ao casal. Ele e a Sofia conheciam-se desde os tempos em que ela começara a namoriscar o Eduardo, tinha o Vítor 4 ou 5 anos. Diz a Sofia que aquele miúdo reguila e rebelde que ela vira crescer na Azinhaga do Mal Talhado se transformou num rapaz bonito e jeitoso. E vaidoso. Queria sempre andar aprumadinho, com a roupa da moda, e ela lavava-lhe as calças e passava-lhe a ferro as camisas e as t-shirts preferidas a troco de nada. Ela gostava dele e tratava-o como uma irmã trata um irmão. Mais tarde, quando o Vítor se meteu “naquilo”, a Sofia tratou-o como uma mãe trata um filho.
Ele era magnético, toda a gente gostava dele. “Lembro-me de ele chegar e perguntar por mim: ‘Ó Sofia Loren! Ó Sofia Loren. Estás aí?’ E quando ia a casa da minha mãe gritava: ‘Eh, Ti Noémia! Há aí almoço para mim?’ E ela respondia: ‘Vítor, já está ali o pratinho, está ali à mesa.’”
O Vítor não tinha horários, e o Eduardo deixava-o andar. O que é que ele podia fazer? Castigá-lo? Bater-lhe? O irmão já era homem e ganhava mais do que ele — o Eduardo também jogara pelos sadinos, como central, mas o Ultramar trocara-lhe as voltas à vida.
No apartamento da Tobaida, onde ainda hoje o Eduardo vive com a Sofia, o Vítor chegava, sentava-se, comia e saía sem pedir licença. Tinha dinheiro, mas não o emprestava ao irmão, mesmo que ele estivesse desempregado. E quando arrancou o namoro com a Mimi, uma boa moça, bonita, a Sofia começou a sentir-se usada de cada vez que levava o almoço a casa das futuras mulher e sogra do Vítor. Mas a Sofia desculpava-o: “Ele não fazia por mal.” O Vítor era mesmo assim.
O Idaliano também acha que ele era mesmo assim mas que aquilo não lhe ficava bem. Para o irmão do meio, que nunca teve jeito para a bola e gostava das artes, o Vítor não dava valor ao dinheiro — nem à família. E conta um episódio em que o Vítor estava num grupo de amigos e fingiu não o conhecer na Praça do Bocage. “Meteu-se comigo por ir de livros na mão. E eu disse-lhe: ‘Oiça, amigo, você é tão rico que não precisa de estudar. Mas daqui a uns anos, quando você não tiver nada e eu não tiver nada, serei mais rico do que você.’” Aquilo teve algo de premonitório.
Há outros momentos que mostram como ele vivia desligado da família. O Idaliano conta que o Vítor não foi ao seu casamento nem lhe emprestou o carro comprado com o salário do Vitória para levar a noiva. Mais tarde, passou o mesmo carro para as mãos de um amigo, que o espetou contra uma parede num acidente. “Não sei o que ele tinha na cabeça.”

O VITÓRIA
Na cabeça do Fernando Tomé está o Vítor no Vitória de 1966. Ele já era sénior e o Vítor ainda júnior, mas treinava com os adultos. Era tímido, por ser novo e o mais novo ali, mas não gostava de ser praxado pelos mais velhos. Respondia-lhes coisas como: “Então, mas eu não sou igual a vocês?” O que não faltava ao Vítor era moral.
Conta o Tomé que os dirigentes perceberam que estava ali um craque ao qual faltava o petit nom do futebolista — ficou simples, Vítor Baptista, nome próprio e apelido. Mas Vítor Baptista era uma pessoa bem diferente do Vítor. Como a saúde é da doença. Ou o dia é da noite. O Tomé não se esquece da conversa que teve com ele lá mais para o fim: “Ele dizia-me: ‘Eh, pá, estes gajos são uns burros. Então não me passaram uma carta de condução, olha lá, irmão, até 2012? Não sabem que o mundo vai acabar em 2000?’”
Para o Vítor, o mundo acabou em 1999.
Mas antes sequer de o Vítor tirar a carta, era à boleia do Fernando Tomé que ele andava. O amigo ia buscá-lo a casa do irmão Eduardo no carro emprestado pelo pai, João Tomé, também ele antigo jogador do Vitória. Tornaram-se confidentes do peito, daqueles que o Vítor tratava por “meu irmão”. Comiam na casa dos Tomé, normalmente peixe ao almoço porque à tarde havia treino, e passeavam pelas terras de Setúbal. Uma vez, num Carnaval, foram ambos a um baile de máscaras em Algeruz, chegaram às duas da manhã, e o pai do Fernando disse-lhe: “Se queres fazer esta vida, pegas na mala e vais-te embora.” O Vítor ter-se-á rido. Noutra vez, a polícia prendeu o Vítor por andar a jogar futebol com amigos na praia de Troia e por se embrulhar com o cabo do mar. A polícia esperou por ele na cidade, levou-o preso e pô-lo a dormir na esquadra. No dia seguinte, o Vítor foi a tribunal, pagou 80 escudos e saiu; ninguém tocou nos amigos. Em Setúbal, conheciam-lhe a cara e já lhe tinham tirado a pinta. Para o bem e para o mal. Não seria a última pernoita numa cadeia.
Dentro do campo, as coisas corriam bem. Vítor Baptista era internacional júnior quando foi lançado a titular pelo treinador Fernando Vaz — a quem chegou a vender laranjas que roubava na Camarinha — na mais longa final da Taça de Portugal da história. Aconteceu a 9 de Julho de 1967: o Vitória de Setúbal e a Académica jogaram durante 144 minutos (90 minutos e dois prolongamentos) e os sadinos ganharam por 3-2.
Do outro lado da trincheira estava Toni, que guarda duas lembranças daquela tarde: a coreografia das claques e um puto do Setúbal que tinha cabedal e técnica para outras andanças. O puto era Vítor Baptista, e os destinos de ambos cruzar-se-iam no Benfica. Mas, antes disso, o Vítor tinha um encontro marcado com a fama.
É a cunhada, Sofia, que relembra: “Quando jogou a final da Taça de Portugal contra a Académica, fez um jogão. Chegou aqui, e a casa estava cheia de gente, e ele todo inchado.”
De lá saiu inchado para um restaurante, onde pediu uma imperial e uma lagosta. O Vítor percebeu que os clientes estavam a olhar e decidiu dar espectáculo — bebeu a cerveja de penálti, comeu um bocado da lagosta e mandou-a para trás, como quem diz: como lagosta todos os dias.
Ali estava “O Maior”, e “O Maior” não tinha tempo a perder e tinha dinheiro para gastar. E tinha outras alcunhas. Como “Meu Deus”, que o Fernando Tomé ouviu pela primeira vez num estágio na Pousada de São Filipe, em Setúbal. Acontece que ele, o Vítor e o Pedras, o trio do meio-campo, ficaram juntos num quarto onde só havia duas camas e um divã — e o Vítor ficou no divã. Na manhã seguinte, acordou mais cedo do que os outros, pôs-se a fazer poses ao espelho e soltou: “Ó, meu Deus, porque me fizeste tão belo?” O Pedras e o Tomé ouviram tudo, desmancharam-se a rir e espalharam a história por toda a gente. 

O EFEITO PEDROTO
O que ficou para a história são os golos do Vítor, mas o que muita gente se esquece é que “O Maior” começou no meio-campo e só se tornou ponta de lança com José Maria Pedroto. Em duas épocas com Pedroto (1969/70 e 1970/71) fez 33 golos e disputou o título de melhor marcador com Artur Jorge, do Benfica, em 1971. Ganhou estatuto e um isqueiro de ouro a Pedroto. “Quere-lo? Se marcares dois golos, é teu.”
Naquela tarde de verão de 1970, o Vítor fez o que tinha a fazer ao FC Porto, nas Antas, e estendeu a mão para Pedroto. O que estava prometido era devido, e ele devia estar prometido para algo maior do que Setúbal. Em Lisboa, havia já quem o namoriscasse.
António Simões lembra-se das conversas que havia no Benfica sobre o “homem robusto e atrevido” do Vitória de Setúbal. À época, só entravam portugueses na Luz, e os que lá andavam não eram uns quaisquer: Jordão, Nené, Artur Jorge, Simões, Torres... e Eusébio. Mas o Vítor tinha o que os outros não tinham: era louco o suficiente para pôr a cabeça onde os outros apenas punham o pé. Não tinha medo da dor nem dos adversários.
O clube da Luz ultrapassou o Sporting e contratou-o ao Vitória de Setúbal em 1971, dando em troca José Torres, Matine e Praia — e três mil contos. Na altura, foi a maior transferência de sempre do futebol português. O Vítor tinha 23 anos e o mundo a seus pés. E a tropa à perna.

O BENFICA
Foi parar ao quartel de Elvas com o Fernando Tomé. Lá, o Vítor portava-se mal, era posto de castigo, e muitas foram as vezes que o Tomé saiu para ir à vida dele e o amigo ficou dentro. O Vítor era insolente e descarado, mas com a tropa não se brinca, e ele lá andou de cabelo à escovinha a contar os dias para se juntar ao Benfica. Mas, quando entrou na Luz, descobriu que ali também não se brincava.
Diz Toni: “O Jimmy Hagan era exigente, e o Vítor ou trabalhava como os outros ou não calçava.”
Jimmy Hagan foi o primeiro treinador do Vítor no Benfica, de 1970 a 1974. Teve outros três: Milorad Pavic, em 1974/75, Mário Wilson, em 1975/76, e John Mortimore, de 1976 a 78. Em sete épocas no Benfica (e ele era benfiquista), o Vítor Baptista fez 150 jogos, marcou 62 golos, conquistou 5 campeonatos e uma Taça de Portugal. Era rijo e potente e habilidoso, e as defesas não davam conta dele — quando ele jogava. E no futuro o Vítor não jogaria sempre nem jogaria sempre bem. Iria lesionar-se, fingir-se lesionado, seria dado como desaparecido.
A carreira do Vítor Baptista começou a ser escrita pelo próprio e por linhas tortas, que ele endireitava sempre que entrava no campo. Lá dentro, o Vítor não precisava nem de conversas nem de palmadinhas nas costas. Era o jogo que o motivava, e ele jogava o jogo pelo jogo, indiferente às porradas que levava ou ao adversário que lhe aparecia pela frente. Ele sabia o que valia e dizia ser “O Maior.” “Mas o que é que tu queres, pá? Sou ‘O Maior’, pá.” Que é como quem diz: vocês ao pé de mim não são nada.
Toni tem uma história ou outra para contar sobre o Vítor Baptista; Simões também. E ambos garantem que o Vítor tinha um ego incontrolável, que jogava e falava como os melhores; e que julgava estar a um passo de ser o segundo Eusébio.
Nos primeiros anos, o Vítor Baptista foi aquilo que ele dizia ser e andou certinho e certeiro com a baliza: em 1971/72 fez 41 jogos e 14 golos; em 72/73, 16 jogos e 6 golos (esteve lesionado); em 73/74, 39 jogos e 11 golos; e em 74/75, 32 jogos e 3 golos. Hagan e Pavic punham-no a avançado ou a médio e ele rendia nos dois lugares. Se fosse sempre assim, o resto era irrelevante. Mas não foi sempre assim.

A DROGA
O Vítor já tinha episódios mal explicados no currículo. Um deles é o corte no pé com uma garrafa (de água, disse ele), na digressão ao Brasil em 1971/72, que o fez aterrar em Lisboa numa cadeira de rodas. Toda a gente achou aquilo estranho, porque a acompanhar a versão dele (há quem defenda que aquilo aconteceu numa rixa com Eusébio) vinha o seu relato incrível em “A Bola”: “O Maior” viu um assalto no aeroporto do Galeão, no Rio, e safou-se arrastando-se de rabo pelo chão com o pé ferido no ar.
Mais incrível ainda foi o facto de a história do pé ter cruzado o Atlântico e aterrado num posto médico do Montijo, onde o irmão Idaliano recebeu tratamento de estrela porque alguém o confundiu com o Vítor. “Eu tinha uma fractura na perna e ele tinha cortado o pé no Brasil. Abriram os corredores todos, as portas, porque pensavam que era o Vítor Baptista que ali estava. ‘Eh, pá, não sou o Vítor Baptista, sou o irmão!’” 
Esses eram os dias em que a mãe e os irmãos não lhe punham a vista em cima, apesar de viverem todos na mesma cidade. O Vítor saía de manhã para Lisboa e para o Benfica e regressava tarde para o pé da primeira mulher — e dos amigos. Ele exibia-se perante eles, mostrava-lhes que tinha chegado longe, convidava-os para almoçaradas e jantaradas, para experimentarem o carro novo. Ou a erva nova que comprara.
O Pedro, um dos quatro do bando da Azinhaga do Mal Talhado, chama-lhe ‘parpalhos’ e sabe que Vítor os fumava antes de ir para o Benfica — e antes de o Benfica saber. E o Benfica só ficou a saber na digressão por Angola e Moçambique, no verão de 1974, depois da Revolução de Abril. Numa dessas noites africanas, Simões entrou no quarto que partilhava com o Vítor e sentiu o cheiro a qualquer coisa que ele não sabia o que era. Apalpou a nuvem de fumo que por lá andava. “Eh, pá, ó Vítor, o que é isto? Assim não consigo dormir.”
Abriram as janelas, dormiram no terraço, falaram os dois durante a noite, e na manhã seguinte falaram a três: ele, Simões e Fernando Neves, que era o chefe do departamento de futebol do clube. Aquilo ficou por ali, varrido para debaixo de um tapete. Era o primeiro sinal.
Simões via o Vítor como a família do Vítor o via: um bom rapaz, que não fazia por mal, que era mesmo assim. E também o desculpava como a cunhada o desculpava. Mas não esquecia. Porque é difícil esquecer que no início dos anos 70 houve um futebolista português que comprou um Jaguar e o equipou com um motorista para o guiar de Setúbal a Lisboa só porque sim. E que esse futebolista usava sandálias de tacão alto, jeans rasgados, camisas abertas, brinco, cabelo e barba compridos, quando todos os outros vestiam fato e gravata. E que esse futebolista fora do tempo era o mesmo que trazia couves e batatas da quinta dele para distribuir pela malta.
Simões nunca tinha visto alguém parecido com o Vítor Baptista, a não ser Barry Gibb, dos Bee Gees. Qualquer trapinho lhe assentava bem, e os homens e as mulheres adoravam-no. E ele fazia rir os colegas com aquelas maluqueiras e excentricidades que saíam da cabeça dele — até que aquelas maluqueiras e excentricidades se transformaram em manias. E ninguém atura maníacos.
O Vítor tinha o rei na barriga e achava-se intocável. Em Março de 1975 disse a Mário Wilson que não estava para ser suplente contra o Vitória de Setúbal — o seu Vitória — e mandou o treinador, os colegas e o clube às urtigas. Passaram-se cinco semanas sem que o Vítor fosse visto com a camisola do Benfica. Começou a disparar para a imprensa que ganhava pouco, que queria mais e que era por isso que não treinava — o Vítor dizia que dispensava o treino, porque as outras equipas estavam cheias de coxos a quem podia ganhar ao pé coxinho.
O Benfica pôs-lhe dois processos disciplinares em 1976, e é nesta altura — em que está suspenso e sem salário — que dá a entrevista a “A Bola” em que se diz o “melhor futebolista português”. Havia muitos, mas ele era “O Maior”, e os outros teriam de habituar-se à ideia. E é também nesta altura que é expulso da selecção por chamar “estúpido” ao seleccionador Juca antes do jogo de Portugal com Chipre. Fez apenas 8 jogos e 6 golos pelo Benfica e acabou a época 1976/77 acabado — para renascer no fim do verão. É um padrão na vida do Vítor: ele tentaria ressuscitar várias vezes até ao último fôlego.

O BRINCO
O Vítor Baptista reapareceu porque precisava de dinheiro, e o Benfica aceitou-o de volta porque estava convencido de que o jogador sabia que tinha de trabalhar. Mas a época começou descamisada.
Conta Toni: “A 28 de Setembro de 1977 íamos jogar a Moscovo para a segunda mão da Taça dos Campeões contra o Torpedo. E o Vítor aparece com chinelas de tacão alto, camisa de meia manga branca e calças de ganga — e nós de fato e cobertos para o frio russo. Eu era o capitão e falei com o [treinador] Mortimore, mas ele estava irredutível. O Vítor com aquela roupa não seguiria viagem. Mas lá lhe arranjámos um casaco, e o Mortimore condescendeu.”
Não ficou por ali. À noite, o Vítor disse a Toni que tinha “um toquezinho” e que não estava em condições para jogar e que eles teriam de ganhar sem ele. Naquele jeito gingão e marialva, “O Maior” foi igual a ele próprio: “Eh pá, ó Toni, sei que é difícil sem mim, mas vocês vão ganhar, não te preocupes.” Toni riu-se — não podia fazer mais nada.
A lesão caiu na imprensa, e a imprensa caiu em cima do Vítor. Os jornais não o largaram mais, porque o lado privado começou a rondar o público como um abutre sobre uma presa. Mas o Vítor foi jogando e marcando (21 jogos e 12 golos, segundo melhor marcador da equipa atrás de Nené), abafando os rumores (noitadas, mulheres e droga) com a bola nos pés e as bocas na língua. Ninguém o calava, nada o parava — mas ele era capaz de parar um jogo.
Aconteceu a 12 de Fevereiro de 1978, e Toni diz que foi mais ou menos assim: “Naquele célebre jogo contra o Sporting na Luz, ele faz um golo na baliza sul em que domina a bola com o peito, roda e sem deixar cair a bola faz um golo de bandeira (Botelho era o guarda-redes de Alvalade). Depois, a primeira reacção não foi festejar o golo, mas andar à procura do brinco. Que não era pechisbeque, mas um brinco a sério.”
O dérbi parou enquanto o Vítor, Toni e outros andaram de rabo para o ar à cata do brinco, que se perdeu para sempre na relva da Luz — o dito custara-lhe 12 contos, mais dois do que o prémio de jogo. Dois dias depois, o Vítor assinou pelo Vitória de Setúbal, porque o Benfica não lhe pagava os 650 contos por mês nem lhe dava o Porsche que ele tanto queria. Foi castigado e depois despedido em Abril e regressou à casa de partida por 100 contos por mês, um valor impossível para os de Setúbal, que fizeram uma colecta entre os comerciantes para pagar ao filho pródigo. Em homenagem à cidade, o Vítor decidiu organizar uma tourada... mas esqueceu-se de arranjar os touros. Já para o fim, seria junto à praça de touros que o Vítor andaria a pedir trocos para o vício em dias de corrida.
Em Setúbal, o jogador desbaratou o dinheiro numa quinta no Faralhão, em vivendas, espatifou um Jaguar, pagou bebidas para ele e para os amigos e abriu restaurantes que deram para o torto porque contas não era com ele. Confiava a gestão a amigos de ocasião enquanto se entregava ao jogo e às apostas. A família ficou sempre fora deste círculo.
“Não me lembro de algum dia ele me ter pagado uma cerveja.” O Idaliano não gostou que o Vítor nunca tivesse falado com um dos irmãos para trabalharem com ele. Afinal, eram sangue do mesmo sangue e podiam tê-lo ajudado com o restaurante que ele perdeu à batota. Só havia um caminho para o Vítor Baptista. E esse caminho era sempre a descer.

OUTRA VEZ O VITÓRIA
No Vitória de Setúbal, o feitio e a pinta de estrela pioraram, e o Vítor tornou-se insuportável até para quem gostava dele. Como Jimmy Hagan, treinador que apanhara no Benfica e que agora o treinava em Setúbal. Um dia, farto das estroinices de “O Maior”, Hagan atirou-lhe uma bola à cara. Ele foi buscar uma pedra e disse-lhe: “Agora, faz lá o mesmo com isto, se tiveres coragem.” Já não era o mesmo dentro de campo: lento e preguiçoso. A droga falava e jogava por ele. Quando se encontravam no café, o Vítor dizia ao Fernando Tomé que “queria experimentar tudo”, e iria viver segundo estas palavras até ao fim.
Os amigos de infância Pedro e Jaime acreditam que “ele começou a dar naquilo” no Benfica, com a malta do espetáculo e alguns atletas da Luz, como o Barros. O Pedro conta um episódio num hotel de Lisboa em que o Vítor e outros ter-se-ão metido numa orgia de drogas e “meninas” e que a uma delas lhe queimaram os mamilos com pontas de cigarro — o Benfica abafou a coisa. E em Setúbal viam-no com a cabeça sobre os tampos das mesas das tascas, com prostitutas encostadas à sua volta à espera do que caía da carteira. Por esta altura, já se separara da Mimi, a primeira mulher, que se cansara dele. O Vítor andava livre, em roda livre, e foi então que o Boavista lhe pôs a mão no colarinho e o trouxe para o Bessa, em 1980. 
Valentim Loureiro, o presidente que o foi buscar, lembra-se bem do Vítor: “Ele mandava uns petardos... Só tinha visto o Eusébio a fazer aquilo. E no Boavista ele era o craque e gostava de dar bolas a marcar ao Folha. Dava-lhe gozo, aquilo.”
Valentim Loureiro levou-o para o Porto numa carrinha Volvo azul que mais tarde seria do Vítor, porque ele gostara dela. Mas não gostou da mobília da casa na Foz onde o instalaram, pediu outra, e o major lá lhe fez a vontade — se o homem estivesse bem, melhor ficaria o Boavista, que acabou a época em quarto lugar. Mas, sem avisar, o Vítor deixou o Bessa e o Boavista e o Porto. Fê-lo por dinheiro que o major supostamente lhe devia; e por amor a uma rapariga que namorava e que o tinha abandonado para voltar ao sul. A rapariga, a segunda mulher, já tinha um filho, chamado Alexandre, que o Vítor perfilhou. No dia do funeral, o Alexandre apresentou-se a Toni como filho do Vítor.
Mas o segundo regresso a casa durou pouco. António Simões entrou em cena com dólares na mão, porque se vivia o boom do futebol nos EUA. O soccer andava a contratar velhas glórias da Europa, e Simões, que era diretor desportivo do San Jose Earthquakes, convenceu os americanos de que o Vítor Baptista era o tipo certo. E lá foi ele.
“Viu um Corvette branco e não descansou enquanto o clube não lhe deu o carro. O Vítor perdia-se na cidade e vinha atrás do meu automóvel porque queria guiar com o cabelo ao vento. ‘Simões, eh pá, estou na América!’”
A aventura nos States durou pouco, mas o suficiente para deixar clara a mensagem a Bill Foulkes, o treinador — ele era “O Maior”. “Ó Simões, diz ali ao homem que ele deve estar maluco se pensa que vou para a barreira. As estrelas não vão para a barreira.”
Depois dos EUA, o Vítor ficou-se pela margem sul, no Amora (1980/81) e no Montijo (1981/82). Seguiu-se o União de Tomar (1982/83), onde jogou ao lado do amigalhaço Florival, um dos do bando de quatro da infância, e ambos seriam despachados como os Templários pelo Papa Clemente V. O Vítor arrastar-se-ia pelos campos por mais dois anos: no Monte da Caparica (1983/84) e no Estrelas do Faralhão (1984/85), da 2ª distrital de Setúbal, cujas bancadas se enchiam só para o ver. A ideia do Faralhão partira dos setubalenses, que viam na bola a única salvação para o Vítor. Porque estava gordo, estranho, desprendido, largado por ele próprio.
Não resultou. A heroína tomara conta dele, viciado por outra namorada, que o arrastou para as barracas do Bairro da Liberdade. Foi lá que o Tomé, o Jaime e o Pedro o encontraram à vez — e contam que aquilo era desumano e sujo. Falar com o Vítor era como falar para uma porta que não se abre por estar ferrugenta e gasta pelo tempo. E pelo mau uso.

O FIM
O Vítor deixou de falar com os irmãos, com a cunhada e com a mãe. Viviam todos na mesma cidade, mas não conviveram durante os anos de glória do jogador, e o Idaliano diz que o irmão era capaz de atravessar a estrada de um passeio para o outro apenas para não ter de o ouvir. “Ó Vítor, já foste ver a mãe?” O Vítor só foi ver a mãe quando já não lhe restavam alternativas. Arrumou as trouxas — a roupa que trazia no corpo —, bateu à porta, e Cecília abriu-lhe a casa para o tratar e depois enxotar, porque os vizinhos e o padrasto não o queriam por ali.
A Sofia, a mulher do irmão Eduardo, conta que chegou a dar com um pacote “daquilo” na casa de Cecília e que deitou “aquilo” tudo para o esgoto. Dias depois, uns quantos malandros assaltaram o apartamento da Sofia e do Eduardo na Tobaida e levaram-lhes o ouro e os cheques — fora o Vítor a dar-lhes a dica.
Da casa da mãe, foi para a do Idaliano, mas não demorou muito a sair. O Idaliano não gostou de ser avisado pela mulher de que o Vítor levara com ele um tipo de mau aspecto para o pé dos seus filhos e lá foi “O Maior” para a rua novamente. Voltava, de vez em quando, para pedir umas botas ou um casaco ao irmão, mas esquisito e vaidoso como era ou os recusava ou vendia-os a quem lhe desse mais. “Eu nem me vestia mal e até havia quem dissesse que eu era peneirento. Mas o Vítor, mesmo na desgraça, tinha aquela vaidade. Queria botas de tacão inclinado e pronto. Não havia nada a fazer.”
Vítor meteu-se em más companhias, ficou a dever dinheiro a quem não devia, passou a roubar salões de beleza, autorrádios, carros, vivendas, apartamentos, até mesmo fornos eléctricos. Roubava-os numa rua e tentava vendê-los na seguinte. Foi detido algumas vezes, chegou a ser representado em tribunal por Odete Santos, mas nem a histórica do PCP e uma alegada inimputabilidade por problemas psicológicos o livraram da cadeia — em Janeiro de 1989, o Vítor foi para a prisão em Sintra. Foi lá dentro que tatuou um relógio no pulso, com os ponteiros marcados às 12h15, porque era “a hora da paparoca”, disse ele numa reportagem a “A Bola”. “O Maior” dava autógrafos aos presidiários, tinha a simpatia dos guardas e alimentava a esperança de voltar a ser jogador de futebol. Se perdesse uns quilinhos e se se deixasse das drogas, a coisa ia lá, mas a família (a mãe, o irmão Eduardo e a cunhada Sofia) que o visitou nunca acreditou muito naquilo.
Quando saiu, o Vítor voltou a perder-se no caminho entre Setúbal e o Casal Ventoso, onde ia procurar a dose com o dinheiro que conseguia nos biscates, nos pequenos roubos, nas esmolas. Outras vezes pedia aos amigos de outros tempos para lhe arranjarem comida, doces, roupa, e Toni deu-lhe uns equipamentos do Benfica que ele vendeu para comprar droga. O próprio Pinto da Costa ofereceu-lhe um blusão numa visita do FC Porto a Setúbal, e o Vítor pô-lo logo no prego para o vício. Não havia nada a fazer. O Tomé, o Jaime e o Pedro quiseram organizar jogos de beneficência e de exibição, a ver se o amigo se recompunha, e ele, aqui e ali, aparecia para depois desaparecer. O Vítor andava pelas ruas, gritava, ria-se, falava alto, fugia de quem vinha cobrar as dívidas dos esquemas em que se metia.
A última saída para o labirinto foi um emprego como cantoneiro no Cemitério da Paz, em Setúbal. Ainda hoje estão lá pessoas que trabalharam com ele e que o descrevem como preguiçoso e “relaxadão”, que pouco fazia por ali a não ser varrer o chão. Foi nesse lugar que os jornalistas o apanharam para as suas últimas entrevistas, quando a fala já se arrastava e os dentes perdidos nos maus hábitos escasseavam. Aquele peito largo onde ele matava a bola antes de rematar ainda lá estava, mas o corpo volumoso e duro perdera amplitude.
Voltou à casa da mãe. E morreu.
Na passagem de ano de 1998 para 1999, Vítor Baptista faleceu no hospital para onde foi levado depois de um AVC. O antigo jogador do Benfica sofria de hepatite C, cirrose, e vestia na pele as marcas dos males a que se sujeitou. Apagou-se a estrela, ficou o mito. Maior do que a morte."

Ameaças e desporto

"Festival Internacional de Ginástica de Burstadt, Alemanha, 1979. Cerimónia de abertura no exterior do pavilhão. O fogo-de-artifício era a apoteose daquelas horas de excitação e felicidade para todos os participantes. Junto à Classe Especial de Homens do Ginásio Clube Português, de que eu era o responsável, muitas das 40 integrantes da delegação israelita, entre os 16 e os 18 anos - após esta idade elas e eles iam cumprir serviço militar - choravam de medo, agarradas umas às outras. Disseram-nos depois que o rebentar dos petardos as remetia para as bombas e tiros frequentes no seu país. Todos nós, portugueses, especialmente os jovens ginastas, constatámos que havia um mundo bem diferente e perigoso do que conhecíamos em Portugal.
Na noite anterior, as delegações de Israel e Portugal, onde também estava a conhecida classe sportinguista Canarinhas, tinham estado juntas numa festa. Permanentemente alerta, vigiando o local e o exterior, andavam dois israelitas, simpáticos e de trato fácil, sempre com um saco ao ombro. Estabeleceram-se amizades internacionais e trocaram-se camisolas. Passados dois dias viam-se portugueses com camisolas israelitas e vice-versa. À noite, um dos homens do saco chamou-me à parte, dizendo-me que, sendo nós já amigos, ele tinha a obrigação de avisar-me do perigo que corriam os portugueses ao usarem ali as T'shirts com símbolos hebraicos. Pediu-me que apenas o fizessemos em Portugal. Estávamos no pós-massacre dos atletas israelitas nos Jogos de Munique-1972.... Agradeci-lhe, dando-lhe uma pancada amigável nas costas onde senti uma arma por baixo da camisa que usava por fora das calças...
Na época era uma situação extraordinária quase limitada aos israelitas. Passados 37 anos, qualquer evento desportivo internacional é rodeado de um ambiente de alerta e risco constante. Atletas e público estão sob ameaça. O mundo piorou. É assustador. Mais ainda porque tendemos a habituar-nos."

Sidónio Serpa, in A Bola

O processo classificativo

"Como nos clubes, as actuações dos árbitros são avaliadas durante a época. E é nas contas finais que se define quem fica no topo e quem fica no fundo da tabela. Que se define quem é promovido ou despromovido e quem é indicado à FIFA. Na prática, não há grandes diferenças entre quem dirige e quem é dirigido. Ambos põem em campo empenho, motivados por objectivos que só valorizam a competição. Mas nas equipas o ranking final resulta do mérito ou demérito das actuações, para os árbitros a avaliação é substancialmente diferente.
Sou da opinião que os árbitros devem ser avaliados, apenas e só, pelos desempenhos em campo. Devem fazer provas físicas e escritas sim, mas só para atestar a condição física e conhecimentos teóricos. Porque essas variáveis são um meio para atingir um fim, não um fim em si. O fim é arbitrar bem. Se continuarmos a permitir que esses testes contem para a avaliação, corremos o risco de estarmos a potenciar bons atletas e excelentes teóricos, mas não necessariamente bons árbitros. A preparação física e psicológica deve ter como foco principal a criação de condições para bem dirigirem os jogos. Apenas isso. É no campo que provam o valor. É lá que exercem a arte de arbitrar, de lidar com jogadores e emoções fortes. É lá que gerem a pressão, o grito do atleta, a intolerância do treinador ou o insulto do adepto. É lá que mostram gualidade, coragem e competência. É lá que adquirem a experiência e se tornam melhores. Mais credíveis e mais respeitados. O que acontece é outra coisa. Tão complexa quanto desnecessária. A realização de várias provas com carácter avaliativo aumentou de forma comprovada, o número de lesões, porque obriga-os a semanas de preparação específica e treino intensivo, longe do habitat natural: o relvado. Mas, além destes, os árbitros estão sujeitos a outros factores de avaliação que não asseguram o princípio da igualdade. Exemplo? Os graus de dificuldade atribuídos a certos jogos. Nem todos os árbitros dirigem jogos de grau máximo, embora sejam todos da primeira categoria. Faz sentido? Um factor profundamente diferenciador usado de forma tão subjectiva? Não. Outro exemplo? As classificações finais poderem variar em função do posicionamento da Secção de Classificações, que tem a premissa de pedir as revisões de notas que entender, com base em critérios que, na verdade, os árbitros nunca perceberam. Subjectividade a mais. Tudo isto é seguramente bem intencionado, mas tornou-se evidente que é demasiado falível para ser justo. As classificações dos árbitros não são meros procedimentos burocráticos. São um assunto sério, que define carreiras, expectativas profissionais, pessoais e familiares. É urgente que passem a obedecer a parâmetros claros, objectivos, factuais e transparentes. Todos devem ser avaliados em igualdade de condições, do mesmo modo e forma. Com os mesmos meios. A única interferência humana deve pertencer ao próprio árbitro, na sua actuação.
Compete à nova estrutura da arbitragem resolver este imbróglio que, diga-se, existe desde sempre. E só por isso permitiu que tantos erros e injustiças fossem cometidas nos últimos anos. Com benefício imerecido de uns e prejuízo desnecessário de outros. O compromisso empenhado dos árbitros merece que, no final, seja dado mérito a quem teve mérito. E honra a todos os que o tentaram. Basta isso. Só isso.»"

Duarte Gomes, in A Bola