terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Como se fosse o eco de um poema

"Os jogos entre Benfica e Sporting voltaram a estar na moda. Talvez por razões menores que o tempo reduzirá à sua verdadeira dimensão. E se alguém julga que estes são dias conturbados, regressemos aos primórdios para comprar realidades incomparáveis.
Os jogos entre Benfica e Sporting parecem estar de novo na moda.
Moda por moda, deixemos as modinhas mal ajeitadas dos bate-bocas de mau gosto e vamos dar uma volta a tempos que lá vão. E como vão...
O livro de Júlio Araújo, «Meio-século de Futebol (1888-1938)», é um grande repositório da realidade da primeira  década do Século XX. Também nos socorremos dele para ir tentando ficar com uma ideia clara de génese desta rivalidade que marcou até nos dias de hoje a vida do País. Nada como ir beber água fresca da mais pura das fontes.
Orgulhoso das suas instalações e da sua sede, com lugar num edifício que era propriedade da sua família, ali ao Lumiar, José Holtreman Roquete sonhava agora com um grande team de Futebol. O descontentamento dos jogadores da primeira categoria do Sport Lisboa entreabria-lhe uma porta que não tardou em abrir às escâncaras. De uma assentada, traz para o Sporting oito deles: José da Cruz Viegas, Emílio de Carvalho, Albano dos Santos, António Couto, António Rosa Rodrigues, Cândido Rosa Rodrigues, Daniel Queirós dso Santos e Henrique Costa.
Um autêntico terramoto! Deixem lá estas brincadeiras de Jesus para lá e de Jesus para cá. Isto sim: foi tremendo! Tonitruante!!!
Parecia o fim da linha para o Sport Lisboa, até porque a sangria não ficava por aqui. Manuel Mora, o guarda-redes, partiu para a Argentina (um destes dias trataremos aqui a história interessante desta figura, se tudo se encaminhar para tal); Fortunato Levy para Cabo Verde; outros optaram por seguir a sua carreira no Ginásio Clube Português, no Grupo Sport Benfica, no Cruz Quebrada, no Académico de Lisboa, no Nacional, etc.
Deserção? Dessedência? Traição?
Quem souber que responda. Mas com franqueza!
A voz de Marcolino Bragança
Ao longo dos anos, este episódio da vida dos dois clubes foi visto por diversos prismas. Um deles, o mais curioso, assumido por Cândido Rosa Rodrigues, declarando que não se poderia falar em dissidência ou de traição até porque não existia rivalidade entre Sport Lisboa e Sporting, e apenas entre Sport Lisboa e Internacional, o velho CIF.
Temeu-se, assim pela vida do Sport Lisboa.
Ah! Como diria Mark Twain: «As notícias sobre essa morte foram manifestamente exageradas».
Terminada a época do Futebol, entrava-se na época dos desportos de Verão. Os protagonistas eram os mesmos. Isto é: jogador de Futebol que se prezasse, chegando o calor, dedicava-se a desportos sem botas, fosse ele a Natação, a Vela, o Ciclismo ou o Automobilismo.
E o sol parece ter auxiliado o olvido e cicatrizado feridas.
Era tempo para que se abrissem no azul claro do céu novos horizontes rubros. Vozes se levantaram; peitos encheram-se de esperanças; o mundo estava aí para os que usavam a gadanha da coragem.
Um belo dia, Marcolino Bragança, um dos melhores jogadores das segundas categorias do clube, ainda jovem estudante do 4.º ano do Liceu, lançou a ideia, tão óbvia que parecia pecado ninguém ter feito eco dela até aí:
- Ouçam lá, e por que é que não passamos o segundo team a primeiro?
Era bem visto, sim senhor. Não houve quem se pusesse. Pelo contrário.
Fez-se o apelo geral. Juntou-se a linha dura dos resistentes: pouco menos de 30 rapazes empenhados em continuar com o clube.
Houve até quem regressasse: gente que tinha ido para o Cruz Qubrada, o Sport Benfica, o Académico de Lisboa...
Os do Sporting não voltaram.
Félix Bermudes e Cosme Damião tomam as rédeas do clube que ressurgia. Todos se dispuseram ao pagamento da quota de dois tostões por mês. Félix Bermudes, escritor bem conhecido pelos seus poemas, peças de teatro e operetas - como foi o caso da famosa «O Timpanas», curiosamente grande amigo e tertuliano do bisavô deste que se assina, Acácio de Paiva -, um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Autores à qual presidiu durante 32 anos, num gesto magnânimo, ofereceu cinco mil réis para um boa nova.
Aqui sim, o Benfica, que ainda não era completamente Benfica, começava a ver medrar as suas raízes populares. Bem ao contrário do Sporting.
O tempo passou.
Houve lutas duras, combates violentos, jogos menos amigáveis do que outros e até uma final da Taça de Portugal em que os adeptos do Sporting fizeram parte da falange encarnada que bateu o FC Porto no Estádio Nacional.
Benfica-Sporting ou Sporting-Benfica: leiam como quiserem - é como se fosse o eco de um poema...
De cima para baixo. Da esquerda para a direita. Defesa e guarda-redes: Henrique Teixeira, João Persónio e José Neto; Avançados: Félix Bermudes (capitão), Eduardo Corga, Leopoldo Mocho, António Meireles e Carlos França; Médios: Luís Vieira, Cosme Damião e Marcolino Bragança."

Afonso de Melo, in O Benfica

A bola que transtornou Eusébio

"Dois dias depois do Natal o 'Rei' soube da melhor prenda da sua carreira desportiva

Corria uma fria segunda-feira de Dezembro, dia de descanso para os jogadores do Benfica, e Eusébio saíra para passear com Flora, Coluna e a sua melhor. Na volta de carro para Lisboa, o rádio tocava uma música de dança, tão ao agrado do 'Pantera Negra' que chegara mesmo a dizer que, se não fosse jogador, teria sido dançarino.
A música deu lugar às notícias e era o momento da revelação do vencedor da Bola de Ouro de 1965, do periódico France Football. Três anos antes, Eusébio já quase ganhara este ambicionado prémio, que consagrava o melhor jogador europeu do ano, mas perdera para Masopust (Dukla de Praga). Assim, ouvia com expectativa a voz da locutora, mas '(...) até tinha medo de ter essa esperança para não sofrer uma desilusão', pois 'Julgava que Fachetti (Inter de Milão) seria o jogador escolhido e me caberia de novo o segundo lugar...'. E finalmente foram proferidas as desejadas palavras: 'Eusébio ganhou a votação do «France Football» e é «o melhor futebolista europeu de 1965»'! Eusébio ouviu, riu e chorou. Não conseguia acreditar. Vendo o seu marido tão emocionado ao ponto de largar o volante, Flora ofereceu-se para tomar o seu lugar... apesar de não ter carta! Eusébio riu-se e , já mais calmo, retomou o caminho para Lisboa, mas a sua mente não parava de procurar as razões para a atribuição do título: '- Se calhar, foram os dois golos que meti à Turquia e à Checoslováquia. Não... Foram antes os dois golos de Sófia, ao Levsky...', sem nunca lhe parecerem suficientes.
Longe de se deslumbrar, sentiu o peso da responsabilidade que o título exigia e decidiu: 'Só há uma coisa a fazer: encarar todos os desafios, a partir de agora, como exames à distinção que me foi conferida. Tenho de provar que mereço o título. E isto obrigar-me-á a fazer o melhor possível em todas as condições'. A Bola de Ouro que foi entregue a Eusébio pode ser vista no Museu Benfica - Cosme Damião, na área 24. O 'Pantera Negra' e outras lendas."

Lídia Jorge, in O Benfica