terça-feira, 10 de novembro de 2015

As feridas verdes queimavam como sóis...

"Às cinco horas em ponto da tarde, como escrevia Garcia Lorca, o adversário estava em agonia. Havia um céu claro sobre a Luz desde o momento em que o Benfica começou a destruir o seu rival com uma vitória que não se esquece: 5-1!

Desta vez, se não vos incomodo ou aborreço, faço tenções de recuar ao dia 27 de Dezembro de 1970, ainda a rescender o Natal mas com um solzinho acolhedor a brilhar sobre a Lisboa de então, ainda muito paradinha no tempo, benza-a Deus, mas com outras virtudes que nos deixam saudades não fôssemos nós um povo tão dado a elas... Às saudades, entenda-se.
Era dia de Benfica-Sporting, o povo foi em romaria até à Luz, de bandeirinha e cachecol, buzinas e almofadinhas. os chapéus eram vendidos ao desbarato, daqueles de cartão branco e elástico pendurado, em cone como dos dos chineses que à época não eram os que agora por cá habitam.
Foi de truz!
Para o Benfica, como está bem de ver. Quando ao 'leão', parecia que pisava grude.
Resultado duro: 5-1.
E Damas defendia tudo, até mosquitos. Dizem que foi dele e grande mérito de uma derrota tão escassa. O «Charuto» voava de um lado para o outro parando bolas disparadas a torto e a direito pela esfomeada linha avançada do Benfica.
Fernando Vaz, o treinador 'leonino', decidira-se por marcações homem-a-homem no meio-campo que tinham muito de sonoras mas zero de eficácia: Tomé/Simões - Manaca/Graça.
Soavam no ouvido, sem dúvidas. Foram desgraçadas: igualmente indubitável.
O árbitro era do Porto: Fernando do Leite.
O Benfica jogou com: José Henrique; Malta da Silva, Humberto Coelho, Zeca e Adolfo; Matine e Jaime Graça; Nené, Artur Jorge, Eusébio e Simões.
E o Sporting? Pois bem, entrou assim: Damas; Pedro Gomes, Alexandre Baptista, José Carlos e Hilário; Tomé e Manaca; Nélson Lourenço, Peres e Dinis.
Nos segundo tempo, Marinho substituiu Lourenço e Chico entrou para o lugar de Peres.
Gente fina de uma lado e do outro. Gente finíssima!
Aos 10 minutos já Damas fora Damas uma e outra e outra vez. Mágico Damas de camisola negra, elegante como um gato, tranquilo como um cavalheiro inglês.
Tantas vezes almoçámos e conversámos horas a fio no «Manel Caçador», ali ao Areeiro. E de todas as vezes o ouvi falar do seu ídolo, Carlos Gomes.
Até que o Carlos Gomes também apareceu e as histórias jorraram sobre a mesa com o volume das cataratas do Niagara.
É pena que os protagonistas do Futebol tenham deixado de ser os jogadores. É pena que quem tem tanto para contar tenha sido afastado das páginas dos jornais cada vez mais entregues à indigência.
Não percamos, no entanto, o fio à meada.

As papoilas brilham ao sol!
Sob o sol de Dezembro, as papoilas brilhavam de vermelho vivo.
Eusébio e Artur Jorge estão endiabrados. São os senhores da bola e do jogo.
Tomé rasteira Eusébio dentro da grande área do Sporting, mas o árbitro faz vista grossa, não se compromete.
Quando Eusébio fez o 1-0, pelo rondar dos 18 minutos, já podia muito bem ser o 2-0 ou o 3-0 tal o atarantamento da dupla de centrais sportinguista.

O público delirava. Era um Benfica à Benfica. Terrível, assustador, imparável!
Se Fernando Vaz apostava em marcações individuais - cá atrás José Carlos à coca de Eusébio e o grande Alexandre Baptista à espera de Artur Jorge -, Jimmy Hagan trocou-lhe as voltas com voltinhas sem descanso: Eusébio e Artur Jorge não paravam quedos um segundo e mandavam ás malvas a férrea pretensão dos seus adversários directos. Quem os agarrava? Ou melhor, agarrar até agarravam, mas agarravam mesmo, pelos calções, pelas camisolas, um nunca mais acabar de faltas em lugares perigosos, verdadeiramente decisivos.

Nas pontas do ataque, direita e esquerda. Nené e Simões. Que azougue! Que vertigem!
Tornava-se difícil assistir ao jogo sentado nas velhinhas bancadas de cimento. Toda a gente se levantava a toda a hora, adivinhando golos ou jogadas inesquecíveis.
Meia-hora apenas decorrida, e eis o segundo golo. Por Artur Jorge, simples eficácia a culminar a arte.
Damas está solitário como poucas vezes na sua carreira. Dá a sensação que, por vezes, joga sozinho contra dez furibundos diabos de vermelho vestidos. O outro está lá no fim do campo, posto invejavelmente em sossego, e chamava-se José Henrique.
Entre golos falhados e defesas do «keeper» garboso, chega o Benfica ao 4-0. Por Nené, num remate fulminante, e novamente por Artur Jorge.
A voragem vermelha amansa. A vitória é gorda e não sofre discussão. O ritmo do jogo abranda, a bola serve de recreação, os avançados do campeão parecem satisfeitos.
Mas, de repente, num lance anódino, Humberto Coelho corta a iniciativa do Sporting com a mão dentro da grande área. José Carlos chuta o «penalty» incontroverso. O único remate dos leões até então transforma-se em golo.
Ah! Eis que a inquietação regressa ao peito dos homens das camisolas rubras. Recebem o golpe como uma afronta e atiram-se de novo sobre o seu opositor com sede de vingança. Simões força pelo corredor que alarga à custa de dribles; centra e tudo é simples como uma tarde de sol em pleno Inverno: golo de Artur Jorge.
Minuto último de um jogo único! As almofadas tão atiradas para o relvado como chapéus na glória de toureiro em arena monumental.
Cinco horas em ponto da tarde, como no poema de Lorca.
E as feridas verdes queimavam como sóis..."

Afonso de Melo, in O Benfica

Nicodependentes

"É um erro confundir resultados com exibições e, ainda mais, ver nas vitórias o espelho de uma equipa organizada e com princípios de jogo enraizados. O Benfica venceu com facilidade um Boavista medíocre mas revelou uma ideia de jogo frágil e assente em rasgos individuais. Continua, por exemplo, a ser preocupante a incapacidade dos dois jogadores de meio-campo para transportar a bola. Já foram testadas várias duplas de centro-campistas e o problema persiste.
Mas não se pense que a raiz do problema está nos dois jogadores do meio-campo. A questão parece-me mais vasta. O que se tem visto é um Benfica crescentemente dependente da capacidade de Nico Gaitán inventar oportunidades de golo. Isto não seria um problema caso a equipa estivesse organizada para fazer sobressair Gaitán e Jonas - os dois jogadores que melhor combinam qualidade com maturidade no Benfica actual. Não parece que seja assim. Como se viu contra o Boavista, com um Jonas menos exuberante fisicamente, Gaitán brilha muito, mas em jogadas individuais capazes de desatar o jogo. Não é a equipa que arrasta Gaitán, é Gaitán que arrasta a equipa.
A Nicodependência podia não ser um problema, mas é, na medida em que é sintoma de uma equipa com poucas ideias no jogo atacante. Mais, o facto de o Benfica desta época ter menos qualidade individual exigiria que os processos colectivos fossem mais sólidos do que no passado. Num ano em que tem sido feita uma aposta sistemática e notável em jovens talentos, esta exigência é acrescida. Resolver este bloqueio continua a ser o principal desafio de Rui Vitória."

FIFA grotesca

"1. Em vez de fomentar e zelar pelo futebol, como é sua indeclinável obrigação, a FIFA (já profundamente abalada pelos escândalos de que a sua cúpula é acusada) destrói-o. E essa é uma culpa de que nenhum tribunal se ocupa, embora abundem as queixas dos clubes que, em vez de serem por ela tutelados, são explorados. Já não bastam os calendários pejados de jogos, alguns destes separados por apenas três ou até dois dias, para vir ainda esse organismo estabelecer datas exclusivas para a disputa de jogos ditos amigáveis entre as selecções. Daqui resultam quase sempre conflitos insanáveis: por um lado, porque os clubes ficam por vezes privados por semanas inteiras dos seus melhores atletas e, por outro, porque os viram partir em perfeitas condições físicas e regressar lesionados ou mesmo de muletas. Bem sei que, no caso português, isso só acontece porque a Liga e a Federação sofrem de estrabismo crónico e assobiam para o ar quando se lhes diz e se lhes mostra que o país não tem condições económicas mínimas para sustentar dignamente mais do que 12 ou, no máximo, 14 clubes na I Liga. Vejam o que aconteceu às quatro equipas que participaram na Liga Europa com excepção do Sporting de Braga?
2. Continuando no âmbito da FIFA, acrescente-se que os critérios adopta dos para determinar o ranking de cada país são tão abstrusos que acabam por não ter nenhuma aderência com a realidade. Daí não viria nenhum mal ao mundo se, depois na prática, isso não fosse seriamente lesivo nos sorteios para os campeonatos da Europa e do Mundo. Quem, por exemplo, pode compreender que a Argentina que não vence um Campeonato do Mundo desde 1986 (29 anos!) nem uma Copa América desde 1993 (22) lidere esse mesmo ranking? E que a Alemanha, campeã mundial em título, seja terceira atrás da Bélgica, apesar dos resultados por esta ultimamente obtidos e da revelação de novos talentos? À frente, portanto, de Espanha, Itália e Portugal? Simplesmente, grotesco!"

Manuel Martins de Sá, in A Bola

A tempestade que varre a Rússia

"O relatório da comissão independente da agência mundial antidopagem (AMA) é arrepiante. Ele incrimina uma teia aparentemente global de atletas, treinadores, dirigentes, médicos e técnicos de laboratórios russos acusando-a do uso do doping como prática regular, dentro do que consideram ser um género de «cultura de estado» que propõe o sucesso desportivo a qualquer preço. Em função da dureza e da expressão deste relatório, a Agência Mundial Antidopagem recomenda à Federação Internacional de Atletismo que suspenda o atletismo russo de toda a competição internacional, incluindo os próximos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro.
A Federação internacional, liderada pelo britânico, e antigo campeão olímpico, Sebastian Coe já reagiu e, perante a extrema gravidade das acusações, parece admitir seguir a proposta da Agência antidopagem, mas, para já, pede algum tempo para digerir toda a informação e compreender todos os detalhes. Um responsável pelo laboratório russo antidopagem limitou-se, entretanto, a fazer uma declaração pública, referindo que as acusações carecem de prova e o ministro russo do desporto, Vitali Moutko, lembra, apenas, que a AMA não tem poderes para suspender o atletismo russo de todas as provas internacionais. 
Como se percebe, é toda uma tempestade que se abate sobre o atletismo russo, que poderá ficar fora da participação nos Jogos do Rio. E pior ainda: perante a convicção da Agência Mundial Antidopagem, de que se trata de uma «cultura de estado» para o desporto, dificilmente se admitirá que apenas o atletismo russo esteja viciado."

Vítor Serpa, in A Bola

Uma mascote de carne e osso

"A conquista do Bicampeonato europeu de futebol sob a égide de uma ursídea mascote.

A 28 de Abril de 1962, a equipa de honra do Benfica levantou voo em direcção à conquista de mais uma final europeia. De Portugal levou na bagagem 'o bacalhau (...), o azeite (...) e o vinho'. Da Holanda trouxe, dias depois, o título de bicampeão europeu de futebol e, claro a taça. Mas não só...
Após aterrarem em Amesterdão, seguiram viagem para Wageningen, onde ficaram instalados até ao grande jogo. A recepção holandesa não podia ser mais calorosa, afinal 'chegavam os campeões europeus'.
Os primeiros dias foram passados entre treinos e '«passeios higiénicos», depois das refeições', a desfrutar do sossego e da paisagem que o hotel, num local isolado 'à beira do Reno', proporcionava. Mas eis que chega a manhã do dia 1 de Maio e, com ela, um novo hóspede: um urso! Sim, um urso! O Jardim Zoológico de Rhenen ofereceu ao Benfica 'um urso - pequeno, é certo, mas... de carne e osso!... Para mascote...'.
No dia seguinte, o grande dia, o novo membro da equipa não faltou: 'Dávamos o primeiro «grande passo» para a «hora H» e... levámos connosco o pequeno urso'. No Estádio Olímpico de Amesterdão, a equipa 'encarnada' venceu, por 5-3, o Real Madrid e 'pela segunda vez consecutiva o Sport Lisboa e Benfica trouxe para Portugal o título de Campeão dos Campeões dos países da Europa'. O pequeno animal ganhou assim uma 'ligação simbólica com a grande vitória do Benfica sobre o Real Madrid' e acompanhou a comitiva no regresso a casa.
Na chegada a Lisboa levantou-se 'a mais viva curiosidade pela presença tão simpática do ursinho (...) que se tornou mascote popularíssima'. Nem à volta de honra ao Estádio da Luz faltou: 'Entre os jogadores (...) lá ia o ursinho castanho que se transformou em «vedeta» de um dia para o outro'. '- O Urso? Onde está o Urso?' era o que mais se ouvia.
Nesse ano, o urso Benfica, como foi baptizado, foi o grande atractivo do Pavilhão do Clube na Feira Popular onde, todas as noites estava 'em franco convívio com os benfiquistas'. Mas o pequeno ursinho holandês 'cresceu - como tudo o que é vivo' e foi entregue aos cuidados do Jardim Zoológico de Lisboa.
No Museu Benfica - Cosme Damião, na área 12. Honrar o país, encontra exposto um outro símbolo dessa conquista, a Taça dos Clubes Campeões Europeus de 1961/62."

Mafalda Esturrenho, in O Benfica