terça-feira, 3 de novembro de 2015

Elogio da derrota

"«O futebol é uma chatice. É um pretexto para as pessoas estarem juntas, para os pais e os filhos não terem de enfrentar o grande silêncio.» Disse-o ao 'Público' Sérgio Oksman realizador de 'O Futebol', que passou há dias no DocLisboa. O filme, esse, é desconcertante: conta a história de um pai e de um filho apartados vai para duas décadas que combinam reencontrar-se no Brasil, para assistir ao Mundial.
Ao longo de 70 minutos, não se vê uma única bola em movimento ou um jogador. A câmara fixa pai e filho a acompanharem jogos em cafés, do lado de fora do estádio e até num hospital. O que conta é a sugestão de que a fragilidade dos laços familiares e dos afectos paternais tem nos jogadores e no jogo formas de aproximação sentimental. O futebol para enfrentar a ausência e o grande silêncio.
Desculpem-me o regresso à derrota do Benfica às mãos do Sporting, mas estive em Alvalade nos 7-1 e sei que não devemos contornar as experiências traumáticas, temos de enfrentá-las. Neste trauma que ainda está bem vivo, a meio do jogo, o meu filho, que nos anos que leva de bancada da Luz nunca havia visto nada assim, disse-me, meio a medo, "não quero estar aqui". Expliquei-lhe que não se abandona as bancadas antes do fim.
É uma questão de princípio e uma experiência formativa. Sem a sensação singular de vivermos as derrotas e de deixarmos que elas se entranhem, não sofreríamos da mesma forma pelo nosso clube. Mais importante, com as vitórias e os abraços emocionados nos golos, está claro, quebramos o silêncio, aproximamo-nos. Já nas derrotas dolorosas, aprendemos a sofrer em conjunto. O que faz muita falta no resto da vida que fica fora dos estádios."

Espírito Santo e as almas penadas

"Guilherme, o negro Guilherme, levantou-se como um fantasma assustador e sôfrego por entre os gansos. O Benfica vencia o Casa Pia por 13-1 e ele marcava golos e golos: nada menos de nove!

A época de 1937/38 teve, para o Benfica, os seus altos e baixos, tal como os alcatruzes da nora da vida. Campeão Nacional, com os mesmos pontos que o FC Porto, perdeu o Campeonato de Lisboa para o Sporting, tal como o Campeonato de Portugal - derrota na final frente aos leões do Lumiar.
Mas fiquemo-nos pelo Campeonato de Lisboa. Prova iniciada em 1906 duraria até 1947, ininterruptamente e cheia de confrontos formidáveis entre os principais clubes da velha capital do império.
Vamos ater-nos à prova da época acima sublinhada. Disputada por Benfica, Sporting, Belenenses, Carcavelinhos, União de Lisboa e Casa Pia.
Pois bem: já desvendámos o nome do campeão, escrito a letras verdes.
Quanto aos 'encarnados', tinham nomes de brilho intenso: Albino - Francisco Alves Albino, magro, fino, resistente como um vime -; o duro e intratável Gaspar Pinto; o grande guarda-redes Augusto Amaro; Alfredo Valadas - o pontapeador emérito; o terrível Rogério Sousa e Guilherme Espírito Santo... Era aqui que queria chegar.
Guilherme Espírito Santo cometeu nesse campeonato de Lisboa uma proeza digna de ficar aqui neste registo semanal de histórias com as quais esgoto a paciência dos mais serenos leitores.
Dia? 5 de Dezembro de 1937.
Estávamos na 8.ª jornada. As coisas não corriam por aí além.
O início fora voluptuoso: oito golos marcados no Campo de Santo Amaro ao União de Lisboa - 8-0. Espírito Santo assinara três deles; Rogério outros tantos.
As vitórias prolongaram-se: 2-1 ao Carcavelinhos na 2.ª jornada (dois golos de Valadas); 4-1 ao Casa Pia, na 3.ª jornada (mais três golos de Espírito Santo); 3-2 nas Salésias, ao Belenenses, na 4.ª jornada (dois golos de Espírito Santo; derrota frente ao Sporting (0-1), na 5.ª jornada; e nova vitória na 6.ª jornada, a primeira da segunda volta, perante o União de Lisboa (5-4), num jogo em que o Benfica recuperou de um surpreendente 0-4 aos 50 minutos da contenda.
Perder com o rival de Alvalade deixava as ´águias' na corda bamba. Havia que ganhar, ganhar e ganhar até que chegasse o momento da desforra, agendado para a última jornada.
Não foi o que aconteceu. No Estádio da Tapadinha, o Carcavelinhos, que ainda não era Atlético, impôs-nos um empate frustrante: 0-0.
Era agora necessário esperar por um tropeção do adversário mais directo.
O jogo seguinte do Benfica era frente ao Casa Pia, no Campo das Amoreiras.
Ficaria registado na lenda negra de Espírito Santo.

Pés em fogo do negro insaciável
Do lado casapiano alimentava-se esperanças fundadas no nulo da Tapadinha, apenas cinco dias antes.
E a primeira meia-hora do desafio fez com que essas esperanças se consolidassem na firmeza com que os gansos se defendiam das bicadas de um 'águia' pouco enérgica.
Logo aos seis minutos, António Wiza bate Augusto Amaro e causa surpresa.
O Benfica está perro de movimentos no seu ataque. Demora a impor um ritmo forte e, até fazê-lo, conta com a oposição do guarda-redes Armando Jorge.
Xavier e Valadas, ausentes, são saudosamente recordados por um público recalcitrante. Navalhas é um ponta-direita intermitente.
Mas ergue-se a sombra negra de Guilherme Espírito Santo. Poucos como ele até hoje tiveram tão leve agilidade. Pairava sobre a grande área do adversário, ameaçando primeiro, cumprindo em seguida a promessa inquebrável do golo.
Aos 38 minutos faz o empate. Um minuto depois, coloca o Benfica em vantagem.
O intervalo regista a diferença curta, inquietante.
Ninguém poderia sequer adivinhar o que estaria para vir.
A galhardia dos gansos duraria pouco.
Os golos jorraram como champanhe numa taça do mais límpido cristal.
Espírito Santo faz 3-1; Rogério Sousa 4-1.
A velocidade do avançado do Benfica é caprichosa e assassina. As movimentações atacantes são opressivas e desfazem por completo uma defesa suave como algodão-doce.
Espírito Santo aumenta para 5-1, para 6-1 e para 7-1.
Até onde irá a sua ansiedade? Que fim terá essa voracidade de golos que o enlouquece, dançando sobre opositores derrotados, os pés em fogo disparando mortíferos remates quase todos imparáveis?
Agora sim, os espectadores das Amoreiras estão contentes. Ainda não sabem que o Campeonato de Lisboa lhe fugirá e que, daí a quinze dias, o Benfica não conseguirá mais do que um empate (2-2) frente ao Sporting. Vivem o momento e a alegria dos golos que não cessam.
Por breves momentos, Espírito Santo parece saciado.
Baptista faz o 8-1 e Eduardo Oliveira o 9-1 e o 10-1.
Números redondos. O jogo caminha para o seu final. Completamente arrasados, os homens do Casa Pia já nem saem do seu próprio meio-campo, agarrados aos destroços de uma fortaleza em ruínas desde o minuto 37.
Mas Guilherme, o negro Guilherme, ergue-se ainda como aqueles príncipes etíopes de rancho que povoavam as prosas de Nelson Rodrigues. Volta à carga, sanguinário e sôfrego.
Marca mais um: 11-1. E outro: 12-1. E outro ainda: 13-1.
É o relógio que o manda finalizar o massacre. O fim chega. Não há tempo para mais pontapés certeiros e devastadores.
Espírito Santo é para os gansos mais que um espírito: é um fantasma. Assustador. E eles não passam de almas penadas para os quais os três apitos finais são o som aconchegante de um alívio."

Afonso de Melo, in O Benfica 

Festa rija e strip-tease

"Carlos Tavares atleta que se vestia de mulher e animava os bailes de Carnaval do Clube.

Ao longo de décadas o Sport Lisboa e Benfica organizou festas de Carnaval que promoviam o convívio, num ambiente informal, de sócios, atletas e colaboradores do Clube. Essas festas consistiam sobretudo em dois bailes - um baile de variedades e um baile da pinha -, antecedidos por um jantar, e tinham o propósito de angariar fundos para as secções desportivas e para as infraestruturas do Clube.
A partir de meados dos anos 70, os bailes passaram a realizar-se no restaurante do estádio. À decoração com grinaldas de papel e serpentinas juntava-se 'o melhor conjunto musical', 'a alegria das marchas brasileiras' e 'as maiores surpresas', proporcionando 'festa rija até às 6 da manhã'. Toda a gente de divertia 'à farta no «Carnaval da Luz»'.
Durante vários anos, houve uma presença constante nesses carnavais, 'uma «brazuca», das «muito boas»' que brindava o público com um show de strip-tease. Antes do início do espectáculo, as suas peças de roupa eram leiloadas pelos presentes. Depois, 'ao som de compassos langorosos', ia 'sendo «descascada», que é como quem diz despojada das suas numerosas vestes, no meio do maior «suspense» e gargalhadas'. Quando o número de peças de roupa ia escasseando, a verdade ia-se revelando: 'Quando saltou o «soutien» (...) não havia nada... de condição feminina. A «brasa», de cabeleira ruiva e tão postiça como tudo o resto, era um homem': o atleta 'encarnado' Carlos Tavares.
Carlos Simões Tavares (1941-2011), campeão nacional de corta-mato (1964), 3000m obstáculos (1965, 1970 e 1971) e 1500m (1966 e 1967) e recordista nacional de 1500m (1968), ano após ano, brindava o Carnaval do Benfica com os seus 'fabulosos espectáculos de «strip-tease» - para todas as idades'. O pândego atleta era 'figura indispensável em qualquer sítio onde haja alegria', 'a sua vivacidade e alegria eram contagiantes e, só de olhar para ele, o riso saía espontâneo'.
No Museu Benfica - Cosme Damião, na área 3. Orgulho eclético, está exposto o troféu do Campeonato Nacional de Pista, conquistado pela equipa do Benfica 13 de Agosto de 1967. Nessa prova, Carlos Tavares auxiliou a conquista colectiva ao vencer a prova de 1500m."

Mafalda Esturrenho, in O Benfica