terça-feira, 25 de agosto de 2015

Com asas nos pés como Mercúrio...

"No estádio do Restelo, o campeão (Benfica) e o vencedor da Taça (Sporting, que 10 dias antes esmagara o Manchester United), batem-se pela posse da Taça Ouro da Imprensa. Era o domingo de Páscoa de 1964 e tudo foi tão fácil - 5-0! Eusébio marcou três.
Vinte anos após o primeiro ensaio de Supertaça do qual já falei nestas vossas páginas - Sporting (campeão) frente ao Benfica (vencedor da Taça) para a inauguração do estádio Nacional (Taça Império) - lança-se iniciativa idêntica e também ela com projecto esse baldado como a história veio a provar.
Estávamos em Março de 1964. Desta vez era o Benfica campeão e o Sporting o vencedor da Taça. Era uma Supertaça à portuguesa, mas quase podia ser uma Supertaça à europeia já que o Benfica fora bem recentemente vencedor da Taça dos Campeões e o Sporting não tardaria a conquistar a Taça das Taças.
Chamou-se «Taça de Ouro da Imprensa». E era a Casa da Imprensa de Lisboa a responsável pela ideia, marcando-se a peleja para 29 de Março, domingo de Páscoa, com a solene presença do Presidente da República e do presidente da Federação Portuguesa de Futebol, o inesquecível Francisco Mega.
O troféu a ser entregue ao vencedor por tão distintas personalidades valia cerca de 50 contos e consistia numa belíssima peça de ourivesaria. Como tal, esteve exposta na montra da Casa 'Travassos', no Rossio, deixando água na boca aos adeptos dos dois clubes.
Acertou-se: no caso de empate no final dos 90 minutos, um prolongamento de 20 dividido em duas partes de 10. Depois, séries de três grandes penalidades.

Não haveria empate. Bem pelo contrário!
Nesse domingo, pelas 16h00 em ponto, o estádio do Restelo estava à pinha.

As Produções Lança Moreira garantiram o relato dos acontecimentos para todo o País.
Lançam no éter a constituição dos conjuntos:
BENFICA - Costa Pereira; Cruz, Neto, Germano e Cavém; Coluna e Augusto Silva; José Augusto, Eusébio, Torres e Simões.
SPORTING - Carvalho; Saturnino, Alexandre Baptista, Alfredo e Hilário; Fernando Mendes e Pérides; Mascarenhas, Géo, Figueiredo e Morais.
E foi tão fácil. Tão fácil!
A perfeição também cansa...
Pleno de ânimo, de força e de pujança, confiante como nos grandes momentos europeus da sua história refulgente, os campeões nacionais puseram e dispuseram dos seus adversários, trucidando-os sem piedade.
- Que é feito do Sporting que há quinze dias empatou na Luz?, perguntavam alguns, recordando o 2-2 emocionante desse confronto para o Campeonato.
Talvez se tenha desfeito em pó com a ventania que nessa tarde soprou do Tejo e invadiu o Restelo e Belém, assobiando nos arrebiques manuelinos dos Jerónimos...
- Mas o que aconteceu ao Sporting que ainda há pouco mais de uma semana desfez o poderoso Machester United por 5-0?, questionavam outros, espantados pela forma como os 'leões' eram absolutamente subjugados pelos 'encarnados'.
Talvez se tenha perdido em excessos de orgulho com vitória tão estrepitosa, ignorando o poder daquela linha avançada na qual Eusébio, José Augusto e Simões não paravam um minuto, cabendo a Torres o trabalho mecânico de ariete que vai amolecendo os alicerces de uma defesa já de si pouco segura.
Quem não parecia minimamente preocupado com as dúvidas metódicas e filosóficas de muitos dos espectadores eram os jogadores do Benfica, imbuídos na tarefa de demolir o seu opositor.
Aos nove minutos, José Augusto oferece a Eusébio um golo estupendo! Erguem-se braços e bandeirinhas vermelhas.
Vento fortemente sobre o relvado e cai uma tempestade 'encarnada' sobre o grande área de Carvalho.

Pobre Carvalho! Pobre Alexandre Baptista! Pobre Alfredo!
Eusébio é Eusébio. O grande Eusébio! O Eusébio único!

Sempre teve um prazer especial em defrontar o Sporting e, nessa tarde, está insubmisso como nunca.
Três minutos após o 1-0, faz o segundo golo. E continua a arrastar ondas de Futebol magnífico sobre o meio-campo e a defesa do Sporting.
É um lance seu que dá o 3-0 a Torres, aos 18 minutos. O resultado já é pesado e ainda há tanto tempo para jogar.
Uma tímida reacção põe finalmente Figueiredo perto de Costa Pereira, mas o desacerto é total. Os 'leões' são mansos, inoperantes.
Eusébio vai sendo Eusébio a toda a hora e por toda a parte.
Os jogadores do Benfica reclamam uma grande penalidade de Carvalho sobre ele. O árbitro Fernando Costa, ignora. Os jornais do dia seguinte apontar-lhe-ão o erro claro. Talvez o único digno de registo.
A sete minutos do intervalo, Eusébio corre, corre, corre. Corre vertiginosamente pelas costas de Hilário, seu amigo, seu irmão da Mafalala, que se limita a vê-lo cruzar para a área, para Torres e para o quarto golo.
Era a vez de o Sporting ter o vento, mas o vento limitou-se a fazer tremular uma equipa de papel.
Eusébio, por seu lado, ainda não estava saciado. Aos 10 minutos da segunda parte arranca de novo, de asas nos pés como Mercúrio, e chuta com a violência de um touro na arena, arremetendo contra um torneio distraído. A bola explode na baliza de Carvalho. O golo é lindo! Irretovável! O público levanta-se extasiado, dá largas à sua alegria, liberta a excitação dessa tarde de Março.
Agora sim, chega... A perfeição também  cansa. O Benfica reduz o ritmo, Coluna domina por completo o meio-campo auxiliado por Augusto Silva, Simões e José Augusto tornam-se mais firmes e menos voláteis, Eusébio parece satisfeito com o pecúlio dos seus três golos.
Fernando Mendes, o grande «capitão» do Sporting, lamentava-se: «Eles jogaram a correr e nós não. Por isso o Benfica foi um vencedor justo, embora talvez o resultado seja exagerado».
Lajos Czeizler, o treinador dos 'encarnados', aproveitava para recordar: «Já devíamos ter ganho o jogo da Luz para o Campeonato. Somos melhores e mostrámos isso mesmo».
A Taça de Ouro brilhava nas mãos dos Benfiquistas.
Tanto tempo seria preciso esperar por nova Supertaça...
Simões, derreado, sorria apenas: «Estou demasiado cansado até para me rir»."

Afonso de Melo, in O Benfica

De fazer cócegas a qualquer estômago

"Uma digressão que começou com o pequeno, o especial, o gorducho, o lesionado, o caril, a galinha e o bom vinho.

«Beijos, abraços, acenos daqui e dali. Sorrisos, muitos sorrisos. Não o ambiente cosmopolita dos aeroportos. Ambiente bem à portuguesa e até podia ser a partida de simples família. Mais um voo para o ultramar». O Sport Lisboa e Benfica partia para a sua sexta digressão a África.

Tinham passado exactamente vinte e três anos desde a sua primeira digressão àquele continente. Desta vez não eram os campeões latinos que ali se deslocavam. Eram os tricampeões nacionais e... era Eusébio!
A viagem decorreu entre 3 e 13 de Agosto de 1973, com passagens por Lourenço Marques (Moçambique), Luanda e Sá da Bandeira (Angola). A cidade natal de Eusébio recebeu a equipa 'encarnada' para o primeiro desafio. Do pós-jogo destacaram-se os elogios a Vítor Martins e Nené - '(...) o pequeno Vítor Martins que jogou como gente grande!', 'Nené é um tipo de jogador especial' - e as críticas à forma física de Toni - 'Toni está gorducho e anafado'. Quanto ao 'Pantera Negra', embora tenha marcado um golo e contribuído para a vitória do Benfica, não ficou satisfeito com a sua prestação: 'Fiquei triste por não ter jogado bem na minha terra! (...) Eu não rendi aquilo que seria de desejar e isso magoa-me, ao ponto de ficar triste, pois eu exibi-me frente aos meus conterrâneos e a eles eu queria dedicar as minhas «explosivas» actuações. Mas a minha recente lesão...'. Mal sabia ele que, daí a dois dias, uma nova lesão o faria regressar antecipadamente a Lisboa.

No fim do jogo, aguardava-os '(...) um jantar tipicamente africano'. 'Os sogros de Eusébio foram anfitriões (...) toda a comitiva do Benfica tomou parte num lauto repasto (...)' composto '(...) pelas seguintes iguarias: camarões fritos, caril de caranguejo, galinha à cafreal, regado a bom vinho (...) A ementa (à africana) era de fazer cócegas a qualquer estômago. Por mais débil ou falho de apetite!...'.
De barriga cheia, seguiram caminho para Angola. A digressão tinha que continuar.
A simbolizar esta digressão encontra, na área 26. Benfica universal do Museu do Benfica - Cosme Damião, a Para de Elefante, provavelmente um dos objectos mais inusitados em exposição."

Mafalda Esturrenho, in O Benfica