terça-feira, 11 de agosto de 2015

Em terra de ninguém

"O problema do Benfica na Supertaça não foi tanto o resultado, mas os sinais dados pela exibição - as estatísticas, aliás, não enganam (38 ataques para o Sporting e apenas 18 para o Benfica). A equipa revelou que estava numa terra de ninguém: já não se exibiu com as ideias de Jorge Jesus e não foi capaz de apresentar um sistema alternativo ou, pelo menos, complementar. O Benfica já não é o de Jesus, mas está bem longe de ser o que Rui Vitória idealizou.
E aqui reside a questão central. Vitória já verbalizou o que pretende para a equipa, mas não se têm vislumbrado esses princípios de jogo na forma como o Benfica se tem apresentado em campo. Não se tem visto uma equipa capaz de controlar o jogo com bola (a principal lacuna da era Jesus), nem uma equipa com uma organização ofensiva mais pausada, ajudando com isso as transições defensivas. O Benfica perdeu o que de bom tinha com Jesus e, até ver, não ganhou o que Rui Vitória anunciou.
Há, contudo, uma frase a ecoar por cima de tudo isto. Na apresentação do novo treinador. Luís Filipe Vieira garantiu: "Rui Vitória vai ter as mesmas condições que outros tiveram". Ora isto implica ter jogadores de qualidade e jogadores que façam sentido para o novo sistema de jogo. Até ver, ainda não é claro qual é o sistema, mas continuam a faltar, pelo menos, dois jogadores para entrar no onze titular (um ala e um lateral-esquerdo). Mas, como espero ver no domingo, bastará acrescentar a dinâmica e a intensidade que estiveram ausentes no Algarve para tudo começar a mudar."

Jesus e os anjinhos

"Jesus quis chatear e Vitória deixou-se chatear: em vez de jogar «à Benfica», com devia, continuou a jogar «à Guimarães», como mostrou. Encolheu-se e perdeu, vem nos livros.

Jorge Jesus precisava deste troféu, por ser mais um título que lhe engorda o currículo e por ter percebido que era muito importante que os jogadores leoninos o erguessem, como ergueram, no sentido de alimentar o seu infinito ego através de uma teia bem urdida e que, em síntese, sabendo que os ventos sopravam de feição, o elevou a uma categoria profissional jamais reclamada, espécie de treinador possuidor de estranhos e fantásticos poderes que lhe permitem, em simultâneo, treinar o actual clube (Sporting) e controlar o anterior (Benfica)... à distância.
Parece uma caricatura, mas não é. Se há casos em que o saber, a rotina e a experiência de um treinador influenciam o enredo e o resultado de um jogo, este foi um deles. Jesus sabia que a conjuntura lhe era favorável e esgrimiu-a com mestria, como fez no passado, umas vezes bem, outras mal. Pode não apreciar-se o estilo, mas desta vez não só funcionou em pleno como provocou um efeito devastador no vizinho da Segunda Circular. É um estilo que incomoda os adversários (lembram-se daquele gesto dirigido a Manuel Machado?), que não é ingénuo, nem sequer bem intencionado, mas que também não é injurioso, nem belisca a honorabilidade de quem quer que seja. É assim, sempre foi assim e só me espanta a aparente surpresa com que do outro lado se (não) reagiu ao folclore que animou o pré-jogo, com Jesus a deitar os foguetes, a recolher as canas e a proporcionar à família leonina uma festa como há muito não saboreava. O Sporting triunfou sem ponta de discussão e creio que ninguém ficaria escandalizado se o desfecho fosse mais desnivelado. A partir do jogo de apresentação, diante da Roma, só não viu quem não quis ver que estava ali a equipa-tipo com uma interpretação competitiva que, apesar de não ser uma fotocópia da filosofia de jogo desenvolvida no Benfica, revela, nos traços essenciais, aspectos comuns e suficientes para ajudarem a desenhar o perfil do novo leão. Em concreto, na final da Supertaça, Jesus desempenhou o seu papel com brilhantismo, sem culpa pelo bloqueio na estrutura de anjinhos que lhe coube agora defrontar (sublinhando que não meto os jogadores neste saco), a qual viu, ouviu e... virou a cara para o lado.
Afirmou Jesus que o Benfica teve medo e Vitória confirmou. Jesus sabe que este Benfica está mais fraco do que aquele que venceu o bicampeonato sob o seu comando e explorou esse fator com habilidade e cinismo, até. Interferiu no pensamento do treinador oponente por causa da história da paternidade das ideias. Jesus quis chatear e Vitória deixou-se chatear: em vez de jogar «à Benfica», como devia, continuou a jogar «à Guimarães», como mostrou. Encolheu-se e perdeu, é dos livros.
Observações finais:
1 - No Guimarães o caminho fazia-se caminhando, mas no Benfica faz-se ganhando. Rui Vitória deve adaptar imediatamente o discurso à nova realidade.
2 - O adjunto Arnaldo Teixeira deve obedecer ao recato que a sua posição aconselha e abster-se, com aqueles artefactos na cabeça como se tivesse acabado de chegar de Marte, de excessos que perturbem a autoridade do chefe. Além de o seu irrequietismo dar uma imagem de desassossego no banco de suplentes. No estádio pode não se notar, mas às câmaras não escapa nada. Raul José também utiliza essas aplicações, mas tem o cuidado de ser discreto.
3 - Chega! O incidente com Jonas deve ter feito ver a Jesus que, mesmo retendo agradáveis recordações dos seis anos que viveu no Benfica, é altura de erguer um biombo e, definitivamente, preocupar-se exclusivamente com os jogadores do Sporting. Deve ser ele a tomar a decisão, antes que mau resultado lhe bata à porta e alguém lho sugira ao ouvido...
4 - Rui Costa falou, acautelou as palavras e preocupou-se em destacar a grandeza da instituição. Declarou que o Benfica não está habituado a perder finais, acontece... Mas da mesma maneira que Jesus não se esqueceu de falar no golo mal anulado à sua equipa, será que o administrador benfiquista não podia ter expressado o seu desagrado por erro grosseiro do árbitro que ignorou uma grande penalidade sobre Gaitán? Os adeptos gostariam que o tivesse feito: anjinhos, mas não tanto!..."

Fernando Guerra, in A Bola

PS: O Fernando Guerra, tem as suas obsessões, goste-se ou não... discordo de muita coisa, a crónica de hoje, não é excepção (acho que existiram outras variáveis que ditaram a derrota na Supertaça...além daquela que ele destaca), mas concordo totalmente com o último ponto...!!!

Futebol de 'olhos em bico'

"Muitos clubes com problemas económicos decidiram apostar na formação nacional e a própria Federação, atenta o sucesso dos escalões jovens, apoia-os com várias medidas. O Sindicato, em parceria com a Liga, aceitou, excepcionalmente a redução de salários em troca da aposta nos jovens. Apesar disso, muitos outros clubes em situação difícil vêem nos investidores estrangeiros uma resposta mais fácil. Será assim?
Distinguido as boas das más práticas, não posso deixar de alertar para perigos dessa opção. Por um lado, a aquisição de clubes ou de capital de SAD por entidades e pessoas desconhecidas e sem qualquer escrutínio e, por outro, a aposta excessiva desses clubes em jovens estrangeiros. Por esta via, estão a entrar no futebol português pessoas pouco recomendáveis organizadas e que em nada desenvolvem o futebol. Verificamos também que depois dos jogadores africanos e sul-americanos as portas estão escancaradas aos chineses. Nada nos move contra os chineses, que são bem-vindos. O que nos preocupa é este caminho perigoso, sem escrutínio, que põe em causa o futuro dos nossos jovens. É grave quando isto acontece em clubes não profissionais, amadores, na cara de associações distritais, cuja missão é exactamente a de dar condições aos jovens da sua comunidade. Mais grave ainda, sem respeito pelos sucessos dos Sub-20 e sub-21, que convocam o talento nacional.
Quem acompanha a realidade do futebol sabe que os resultados combinados, o tráfico de jogadores, as 'comissões' ou os esquemas para contornar as exigências de entrada num país estrangeiro são problemas actuais. Preocupa-me que muitos dos que estão ligados a estas situações sejam pessoas do futebol e que se desculpem invocando desconhecimento. Nada fazer e depois culpar só os investidores não é aceitável. E também não é aceitável lavar as mãos dizendo que compete à polícia a luta contra a criminalidade. Há muito que pode e deve ser feito pelos agentes do futebol, razão pela qual, na defesa de todos, devam o Governo e a Federação, com apoio da Liga, Sindicato e Associações, criar regulamentação de acesso aos investidores. Tem de ser, porque alguns clubes e dirigentes andam cada vez mais de olhos em bico."

Joaquim Evangelista, in Record

O estranho caso dos marinheiros enjoados

"Houve um tempo em que os ingleses, só por o serem, serviam como adversários valiosos para qualquer equipa do Mundo. Mesmo que não passassem de uma tripulação de navio de passagem por Lisboa e a caminho de Casablanca e da Madeira...

Era uma vez um navio. Chamava-se SS Ardeola. SS quer dizer «Screw Steamer», propulsão a vapor, para se diferenciar dos entretanto desaparecido barcos de propulsão a pás. Enfim, inglesices.
O Ardeola era um navio elegante, de passageiros, com três mastros, construído em Dundee em 1912 e propriedade da Yeoward Line. Durou pouca a sua vida de transportador de ansiedades e de vaidades dos 80 figurões que se passeavam no deu deck de primeira classe. Rapidamente, o espírito prático falou mais alto. E o Ardeola transformou-se num cargueiro especializado no comércio de fruta na rota de Liverpool-Lisboa-Casablanca-Madeira-Canárias.
Ardeola é nome de pássaro, aparentado com a garça. Ao que consta, este Ardeola do qual hoje vos falo era já o terceiro com a mesma designação depois do desaparecimento dos dois outros homónimos anteriores, um deles, o primeiro afundado ao largo de Leixões. Mera informação sem importância de maior. Registado em Liverpool, onde reina outra passaroco misterioso, o «liverbird», que se traduzirá à letra por pássaro-do-fígado, esse que brilha nas camisolas do grande Liverpool, já tantas vezes adversário do Benfica, não ficaria o Ardeola isento de influência futebolística com direito a um episódio a merecer crónica dedicada aos que vão tendo a bondade de me ler.
Porque no dia 28 de Novembro de 1920, o SS Ardeola, de Liverpool, estava em Lisboa e a sua tripulação iria medir forças com os jogadores do Sport Lisboa e Benfica numa peleja de mais puro «association».
Estávamos na ressaca da I Grande Guerra.
A actividade do Futebol internacional morrera praticamente.
O Benfica, por exemplo e bem a propósito, depois de disputar oito jogos internacionais em 1916, viu-se reduzido a um em 1917 (frente aos ingleses do AMS Flavia), a mais um em 1918 (frente ao Sevilha) e a uns mais compostos nove em 1919. 1920 voltou a ser ano de vacas magras, um só confronto contra jogadores além fronteiras, precisamente aquele que aqui nos traz.
Em Novembro, um cabaz de Natal
E assim, no dia 28 de Novembro, o Benfica defronta uma equipa composta pela tripulação do SS Ardeola, de Liverpool.
Não estranhem: nesse tempo os ingleses tinham um prestígio tão imenso no que ao Futebol dizia respeito que jogar contra onze súbitos de sua majestade (Jorge VI na circunstância) era um orgulho para qualquer mortal, mesmo que os tais onze súbitos tivessem um conhecimento tão profundo do jogo como qualquer um de nós tem das malfadas «kidney pies», prato de resistência dos bons e velhos «pubs».
Enquanto em Portugal o primeiro jogo de Futebol teve como alicerces o famoso grupo britânico que, em Carcavelos dedicava as suas horas de trabalho ao lançamento do cabo submarino, dentro em breve responsável por nos colocar em condições de fazer chamadas interurbanas para o lado de lá do Atlântico, na América do Sul eram os marinheiros ingleses que arribavam aos portos de Santos, Rio de Janeiro, Kontevideu e Buenos Aires a espalharem pelo continente a paixão pelo pontapé na bola. E de tal ordem, imagine-se, que Buenos Aires albergou mesmo uma Liga de Futebol da Marinha Mercante composta por nada menos de 19 equipas.
Nenhuma delas era a do nosso Ardeola de Liverpool, como está bem de ver. A nave não se lançava a tão largo, ficava-se pelas costas da Europa e da África do Norte.
Quanto ao outro Liverpool, o Liverpool FC, preparava a construção de uma equipa tremenda que venceu o campeonato inglês em 1922 e 1923, conhecida pelas alcunha de «The Untouchables».
Mas deixemos isso. Voltemos ao mar. E aos marinheiros que desembarcavam em Lisboa e prometiam momentos de Futebol maravilhoso, inglês e brilahnte.
Um desastre!
Longe do balanço dos convezes, deu-lhes um estranho enjoo.
Ninguém conhecia os seus nomes e não era preciso. Sendo ingleses, deviam ser mestres em futebol. Não eram. Eram apenas marinheiros.
O Benfica e o público lisboeta já tinham sido levados ao engano três anos antes com a presença dos tripulantes do AMS Flavia, da Cunard Line, a empresa anglo-americana de correio marítimo. Tão desarrumados em campo, tão pouco capazes de tratar decentemente uma bola, viram-se goleados por 0-7.
Agora seria ainda mais calafriante.
O AMS Flavia foi torpedado no ano seguinte, em 1918, e dele não houve mais notícias. Agora, o SS Ardeola trazia Liverpool no nome e prometia algo de mais suculento.
Ora batatas! Vítor Gonçalves, José Simões, Ribeiro dos Reis, Belford e Jesus Crespo afundaram a equipa inglesa com onze golos. Onze! Sim: 11 a 1, foi o resultado. Lá está, um enjoo.
Foi de tal ordem a diferença que nem na «História do Sport Lisboa e Benfica» de Mário Fernando Oliveira e Carlos Rebelo da Silva o episódio tem direito a mais do que um simples parágrafo: «(...) um desafio realizado em 28  de Novembro de 1920, contra o Ardeola, equipa inglesa de Liverpool que estava de passagem em Lisboa. O Benfica destroçou os visitantes por completo, batendo-os por 11-1. A diferença dá bem ideia do desequilíbrio de valores. Foi um jogo sem história».
E só.
Terá servido de emenda. Os adversários passaram a ser escolhidos com mais critério e os ingleses deixaram de ser endeusados só por serem ingleses e ter sido um deles a inventar o Futebol.
Quanto ao SS Ardeola, teve uma vida de aventuras, levando a bordo muitos dos derrotados dessa tarde portuguesa. Viajou pelas costas da Adissínia aquando da invasão italiana, foi capturado pelas forças francesas de Vichy na II Guerra Mundial e entregue aos alemães, terminando na posse da marinha de Itália com o nome de Aderno. No dia 23 de Julho de 1943, foi torpedeado pelo submarino Torbay, da Royal Navy, em frente a Civitavecchia.
Tinham decorrido quase 23 anos sobre o desastre de Lisboa."

Afonso de Melo, in O Benfica

"Vamos fazer a Biblioteca do Benfica?"

"Como tantas outras obras no Benfica, sem os Sócios não teria sido possível criar a Biblioteca da Secção Cultural.

Em 1955, o Benfica começa o ano já no Estádio da Luz, sonho tornado realidade graças às contribuições dos Sócios. Os jogadores de Futebol têm uma nova casa mobilada com donativos, o Lar do Jogador. A Comissão Central do Novo Parque de Jogos continua a incentivar a massa associativa a participar nas iniciativas de angariação, '(...) para que o Parque de Jogos venha a ser a realidade que ansiamos!'. E essa massa associativa é cada vez maior, respondendo com entusiasmo à campanha dos 30.000 Sócios.
No final do ano, a recém-criada Secção Cultural aposta na tão desejada Biblioteca. No primeiro número do suplemento, Cultura e Desporto, é lançada '(...) uma sugestão... Aproveitando a proximidade das festas de fim de ano, celebremo-las, oferecendo cada um de nós um ou mais livros!... Seria o presente de Natal de todos os Sócios à Biblioteca e ao Benfica'. O pedido é simples: livros de todos os géneros e temáticas, de forma a 'oferecer leitura útil e instrutiva ou recreativa'. Em apenas três meses, ultrapassa-se os 500 volumes, oferta de Sócios e adeptos, editores e livreiros, a quem a Secção Cultural agradece '(...) em nome de quantos, em breve, no nosso Clube poderão ter à sua disposição livros de recreio e divulgação cultural'.
Mas o caminho a percorrer não foi fácil. Sem uma sala disponível, foram colocadas estantes na Secretaria, onde se disponibilizaram as 'primeiras centenas de livros' em regime de leitura domiciliária. Para comportar o crescente número de volumes, colocaram-se também estantes suspensas nos átrios das secções desportivas. Finalmente, na década de 60, obras de adaptação da sala de jogos de cartas permitiram criar uma sala de leitura, muito apreciada pelos Sócios. 'Havia uma grande calma à nossa volta. Que bom, depois de um dia de trabalho de arrelias, de nervossísmo, poder assim mergulhar-se num «banho», não digo de esquecimento, mas de elevação'.
Sucessora das antigas bibliotecas da Rua Capelo, da Delegação das Amoreiras e da primeira biblioteca da Rua Jardim do Regedor, contemporânea da biblioteca do Lar do Jogador, a Biblioteca da Secção Cultural foi uma presença reconfortante até ao encerramento da Secretaria.
Hoje, evocamo-la no Museu Benfica - Cosme Damião. Nas molduras, livros icónicos que espelham a diversidade da colecção. No móvel vitrina, uma pequena parcela da sensação de entrar na antiga sala de leitura. Um espaço que nos desperta memórias e emoções, como só os livros sabem fazer."

Rita Costa, in O Benfica